Mundo de faz-de-conta

Exigência de duas pessoas para formar sociedade é prejudicial

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27 de junho de 2006, 15h44

A questão da aceitação, pelo Direito brasileiro, da empresa individual de responsabilidade limitada, também conhecida como sociedade unipessoal, é atual e gera muitas polêmicas. Hoje, depois de muito discutida a tese e de várias experiências em torno do tema, a XII Diretiva Comunitária da Europa admitiu, em 21 de dezembro de 1989, a figura da sociedade unipessoal limitada na sua responsabilidade, com o objetivo de fomentar a economia européia.

Embora recente e esculpido por técnicas legislativas modernas, o Código Civil Brasileiro de 2002 não reconhece a figura da sociedade unipessoal. O legislador preferiu manter a exigibilidade da união de, ao menos, dois sócios para a constituição de uma sociedade, permanecendo a concepção de tratar-se de um contrato, o qual não pode ser estabelecido de forma unilateral.

Desta forma, historicamente e ainda hoje, o ordenamento jurídico brasileiro não permite que se limite a responsabilidade do empresário individual, valendo para este, portanto, a responsabilidade ilimitada.

A respeito da importância da limitação da responsabilidade, preleciona Fábio Ulhoa Coelho, afirmando que “a limitação da responsabilidade dos sócios é um mecanismo de socialização, entre os agentes econômicos, do risco de insucesso, presente em qualquer empresa. Trata-se de condição necessária ao desenvolvimento de atividades empresárias, no regime capitalista, pois a responsabilidade ilimitada desencoraja investimentos em empresas menos conservadoras”1.

Destarte, o Direito deve sim estabelecer mecanismos de limitação de perdas para fomentar a exploração da atividade econômica, já que os bens e serviços necessários ou úteis à pessoa humana produzem-se em empresas.

No entanto, segundo a legislação pátria, para que se tenha direito à limitação da responsabilidade, é necessário que duas ou mais pessoas unam capital e trabalho e constituam uma sociedade.

Esta regra, que objetiva, num primeiro momento, proteger terceiros contra a atuação de empresários individuais que pudessem vir a usar a personalidade jurídica de sua empresa para fins ilícitos, se revela ineficaz e prejudicial.

Ineficaz, pois estimula uma conduta que é justamente aquela que procura evitar, qual seja, a conduta ilícita. Ora, sabemos da existência das sociedades fictícias, ou seja, empresas que, formalmente, são definidas como sociedades de responsabilidade limitada, mas que, na prática, são sociedades (posto que têm personalidade jurídica própria, não podendo ser consideradas empresa individual) formadas por um único sócio, que exerce individualmente a atividade empresarial — os outros sócios têm importância meramente formal, sendo, na realidade, verdadeiros “testas-de-ferro” ou “laranjas”, que apenas emprestam seus nomes para configurar a tipologia legal exigida no intuito de utilizar a limitação da responsabilidade. Ainda, como prefere a doutrina alemã2, são os chamados “homens de palha”.

Desta forma, para que possa gozar do benefício da responsabilidade limitada, o empresário que deseja atuar sozinho é obrigado a usar de artifícios, aproveitando-se de falhas ou de lacunas na legislação e assim são criadas as sociedades fictícias.

Contudo, o artifício de se constituir sociedades “faz de conta” gera enorme burocracia pois, além de tornar mais complexo o exame dos atos constitutivos por parte das juntas comerciais, exige alterações nos contratos, também sujeitas a exames mais apurados nas juntas, para uma série de atos relativos ao funcionamento da empresa. Além disso, causa também desnecessárias pendências judiciais, decorrentes de disputas com sócios que, embora com participação insignificante no capital da empresa, podem dificultar inúmeras operações.

Assim, a exigência da união de, ao menos, duas pessoas para a formação de uma sociedade, além de ineficaz, é prejudicial porque, a nosso ver, trata-se de posicionamento conservador de negar incentivos à formação de novas empresas, novas oportunidades de trabalho e, conseqüentemente, de fomento à economia. É, portanto, uma questão que diz respeito não somente à comunidade jurídica, mas atinge o interesse econômico — social como um todo. Por meio da limitação da responsabilidade, o sujeito da empresa individual encontrará, na integralização do capital, a afetação máxima que pode sofrer, fator que se mostra preponderante para o desenvolvimento econômico e social.

Ora, vivenciamos uma tendência global de redução de postos de trabalho no sentido tradicional, qual seja, o da grande empresa que emprega uma massa enorme de trabalhadores. A terceirização e a redução do tamanho das organizações apontam para o aumento significativo da adoção de um sistema denominado self made, ou seja, o empreendedorismo passa a ser solução econômica para as pessoas e para as economias modernas, de tal sorte que o número de pequenas e micro-empresas tende a crescer de forma bastante elevada.

Dentro deste contexto, nota-se a importância da discussão acerca da possibilidade de admitir que o empresário possa organizar-se de forma individual, limitando o risco do seu empreendimento, fomentando a criação de novas empresas, legalmente constituídas e que encontrem possibilidades de atuação em pequenos nichos de mercado.

O problema surge quando pensamos nos interesses de terceiros que se relacionam com o estabelecimento, antevendo-se possíveis fraudes por parte do empresário. Neste sentido, uma análise da legislação alienígena, que reconheça o instituto em comento, pode ser útil para delinear os contornos jurídicos de um eficaz regramento jurídico pátrio sobre o assunto.

Tomemos por base a legislação de Portugal, de forte cunho conservador-contratualista, mas que introduziu a sociedade unipessoal em seu ordenamento jurídico. A fim de assegurar os interesses dos terceiros que se relacionam com o estabelecimento, a legislação portuguesa prevê que devem figurar no estatuto da empresa ou estabelecimento de responsabilidade limitada normas que: 1) assegurem a efetiva realização do capital com que o mesmo estabelecimento se constitui; 2) que fixem um capital inicial mínimo suficientemente elevado para evitar o recurso à limitação de responsabilidade em empreendimentos que, pelo seu porte, a não justifiquem; 3) que garantam a adequada publicidade dos vários atos concernentes à constituição, funcionamento e extinção da empresa ou estabelecimento de responsabilidade limitada; 4) que consagrem a autonomia patrimonial dos bens destinados pelo comerciante à empresa, em termos de estes só virem a responder pelas dívidas contraídas na respectiva exploração e de, por outro lado, tais dívidas serem unicamente garantidas por esses bens; 5) que assegurem a efetividade da separação patrimonial, prevendo que o comerciante passe a responder com a totalidade dos seus bens pelas dívidas comerciais, sempre que não respeite aquela separação; 6) que imponham ao comerciante a obrigação de manter uma escrituração e contabilidade adequadas a revelar, ano a ano, com exatidão e verdade, os resultados da sua exploração.

Assim, o que pretendemos é que o legislador consagre uma instituição estruturada de molde a servir aos interesses do empreendedor empresário, sem, contudo, descuidar da proteção dos interesses de terceiros (contendo normas destinadas a evitar ou reprimir abusos que a introdução dessa instituição no ordenamento jurídico poderia propiciar).

Com efeito, é importante a adoção de uma técnica legislativa que permita ao empreendedor em nome individual destacar do seu patrimônio geral uma parte dos seus bens para destinar à atividade empresarial, sendo conseqüentemente necessário reconhecer a empresa individual de responsabilidade limitada como um patrimônio separado.

Ademais, deve-se cuidar para que uma pessoa só possa ser titular de um único estabelecimento individual de responsabilidade limitada, como também é assegurado pela legislação portuguesa.

Vale frisar por fim que, no final do ano passado, ao defender a aprovação da Lei Geral da Micro e Pequena Empresa, o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, lembrou que, atualmente, cerca de 29% das novas empresas paulistas encerram suas atividades antes de completar um ano de atividade e 56% fecham em até cinco anos. No Brasil, 31% perecem no primeiro ano de vida e 60%, após cinco anos.

Paulo Skaf afirmou ainda que, a cada ano, cerca de 500 mil novas empresas são incorporadas à economia, 99% micro ou pequenas, as quais criam um milhão e meio de novos postos de trabalho.3 Na mesma oportunidade, o vice- presidente da República, José Alencar, reconheceu que a legislação atual empurra os pequenos negócios para a informalidade.

É lastimável conviver com a realidade apontada. Notamos facilmente que faltam mecanismos jurídicos modernos a facilitar não só a abertura das empresas, mas, principalmente, a proporcionar a sua sobrevivência. Daí constatarmos que não bastam incentivos fiscais. É preciso fornecer ao empresário mecanismos jurídicos condizentes com a realidade econômico-social do país, para que haja a possibilidade de opção pelo tipo societário que melhor se adequar às suas necessidades de empreendedor, seja por meio da constituição de sociedade, seja por meio da constituição de empresa individual que também promova a limitação de sua responsabilidade. Só assim não teremos mais de conviver com cerca de 99% de sociedades empresárias sendo constituídas com os citados “laranjas”, que foi a forma encontrada para ganhar a limitação da responsabilidade no âmbito da legislação pátria.

Portanto, esperamos que uma possível inserção da empresa individual de responsabilidade limitada no Direito brasileiro proporcione uma considerável desburocratização na criação e no funcionamento das empresas. Sobretudo das micro, pequenas e médias empresas, que ficarão livres de diversos trâmites administrativos inerentes às sociedades e dos possíveis percalços provocados pela existência de um sócio com participação fictícia no capital da empresa.

A maioria dos países da União Européia e os Estados Unidos já adotaram a empresa individual de responsabilidade limitada ou sociedade unipessoal. Nós continuaremos esperando até quando?

Notas de rodapé

1 – COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 5ª ed. São Paulo, Saraiva, 2002, v. 2;

2 – CORREIA, Antonio de Arruda Ferrer. Sociedades Fictícias e Unipessoais. Coimbra, Livraria Atlântida, 1958;

3 – Informações tiradas do site www.fiesp.com.br. Acesso em 27 de maio de 2006.

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