Os homens do Direito

Moreira Alves foi a âncora do Supremo na transição democrática

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26 de junho de 2006, 14h25

Certamente para quem define José Carlos Moreira Alves como o ministro mais conservador que já passou pelo Supremo Tribunal Federal é difícil decidir se lhe faltou coragem para mudar a direção da Corte ou se sobrou para manter as coisas como estavam. Mas as vozes são uníssonas quando se trata de reconhecer a importância do ex-ministro para a consolidação da Constituição Federal de 1988.

Moreira Alves foi nomeado para o Supremo em junho de 1975, pelo presidente general Ernesto Geisel, e lá permaneceu até 2003, aposentado compulsoriamente. Esteve na mais alta Corte da Justiça brasileira em épocas decisivas para a história, principalmente na consolidação da democracia no país.

Na função de presidente do STF, em fevereiro de 1987, foi ele quem declarou instalada a Assembléia Nacional Constituinte. Uma vez publicada a Constituição de 1988, foi um dos responsáveis, talvez a voz mais alta, na formação da interpretação da nova legislação pelo Judiciário.

Recentemente, quando os ministros Eros Grau e Gilmar Mendes deram um passo decisivo na efetiva aplicação do Mandado de Injunção, votando pelo caráter mandamental da norma, o nome de Moreira Alves foi lembrado. Quando os ministros do Supremo decidiram que as sociedades civis de profissionais liberais devem pagar Cofins, pois lei ordinária pode sim revogar isenção concedida por lei complementar se o assunto tratado é de competência ordinária, aí também estava a voz de Moreira Alves. No primeiro caso, o lado conservador do ex-ministro falou mais alto. No segundo, pode-se arriscar dizer que foi uma pequena veia revolucionária que permitiu o entendimento.

Não existe dúvida de que Moreira Alves foi uma liderança durante os quase 28 anos em que esteve no Supremo. Colegas e admiradores contam quão difícil era discordar do então ministro, tamanha sua capacidade de argumentação. Muitos o responsabilizam por atrasar mudanças no tribunal que só começaram a ocorrer depois da sua saída.

“Moreira Alves não nutria muito boa vontade em relação à Constituição de 88 e, de certa forma, liderou o Supremo em sentido contrário à efetivação de algumas de suas inovações”, afirma o advogado constitucionalista Luís Roberto Barroso.

Cada um na sua

Como ministro do Supremo, Moreira Alves cuidou para não tornar o tribunal um substituto do Legislativo. Não é a função do Judiciário legislar, dizia ele. Essa visão explica sua relutância em aplicar o Mandado de Injunção. O dispositivo foi estabelecido pela Constituição para garantir que nenhum direito constitucional seja relegado por falta de regulamentação. Por meio dele, o Supremo pode determinar que o Congresso cumpra sua função de legislar ou pode ele mesmo estabelecer a regulamentação temporária.

Para essa segunda atribuição, Moreira Alves disse não. Defendeu sempre que cada Poder da República desempenhasse estritamente seu papel. Nem mesmo ordenou ao Congresso que regulamentasse os dispositivos. Na sua época, o Mandado de Injunção tinha apenas caráter declaratório.

Foi ele quem defendeu — e venceu a briga — que o Supremo não pode atuar como legislador positivo, apenas como negativo. Ou seja, ao Judiciário cabe apenas a função de dizer que determinada lei fere a Constituição. Ou, ainda, que se a legislação for interpretada de tal forma, contrariará a Constituição. Mas, para Moreira Alves, não pode o STF decidir qual é a interpretação constitucional da norma aprovada pelo Congresso.

Moreira Alves participou da consolidação do Supremo Tribunal Federal como controlador da constitucionalidade. Defendeu sempre que esse controle era político, pois estava determinado a analisar atos dos outros Poderes. Por isso, deveria ser excepcional.

O advogado Luís Roberto Barroso lembra como era restritiva a posição do ex-ministro sobre o acesso de entidades de classe e sindicatos ao Supremo por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade. “A perda de uma liderança que tinha uma visão mais tradicional talvez tenha permitido ao Supremo expandir a sua atuação.”

Foi Moreira Alves quem defendeu o conceito hoje tão enraizado na mente da magistratura de que não há hierarquia entre os direitos estabelecidos na Constituição. Ele foi decisivo na flexibilização do radicalismo do controle de constitucionalidade. Além dos extremos — lei constitucional e lei inconstitucional — defendeu um meio-termo, a condição de “ainda constitucional”. Por exemplo, quando defendeu que era constitucional a fixação do prazo dobrado para as Defensorias Públicas enquanto elas não estivessem bem estruturadas.

Gato por lebre

Aos 73 anos, Moreira Alves não parece se sentir confortável com o carimbo de conservador que sua atuação no Supremo lhe rendeu. O ex-ministro pode responder ao incômodo adjetivo com alguma das mudanças que provocou na Corte Suprema.

Moreira Alves defendeu a idéia de que lei ordinária não pode revogar lei complementar. Para ele, o que deve ser preservado é a natureza do conteúdo da legislação. Se este for ordinário, mesmo estando em lei complementar, pode ser revogado por lei ordinária.

Até hoje, a posição decisiva do ex-ministro não só se reflete na jurisprudência, como fincou suas raízes na legislação. Especula-se que ele seja um dos autores do texto do projeto de lei que deu origem à Lei da Alienação Fiduciária. Ao equiparar o devedor de alienação fiduciária ao depositário infiel e, consequentemente, permitir também a prisão do primeiro, a legislação ampliou a esfera de alcance da prisão civil. A equiparação sempre foi fortemente defendida por Moreira Alves.

Mesmo assim, a primeira característica a que se associa o nome de Moreira Alves é o conservadorismo. Mas, talvez, esse estigma não seja de todo ruim. Basta mudar o foco. “O simples papel que Moreira Alves desenvolveu no controle de constitucionalidade parece suficiente para mostrar que não se tratava de um conservador no sentido vulgar do termo”, defende Gilmar Mendes, ministro do Supremo, amigo e discípulo de Moreira Alves e autor de Moreira Alves e o Controle da Constitucionalidade no Brasil. É só mudar a forma de enxergar seu trabalho.

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