Hora da virada

AGU tem potencial, mas está aprisionada pela legislação

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22 de junho de 2006, 13h38

Não seria exagerado dizer que, desde quando os descobridores, na busca de ouro, especiarias e pau-brasil, tentaram seduzir os nativos com quinquilharias, vem o Brasil atravessando crises éticas.

A percepção desta atual crise, de certo modo restrita ainda aos veículos de comunicação, é, sem dúvida, mais bem-vinda que o “dar de ombros”, a falsa indignação ou o descarado deboche. Perdidas para a vida as últimas vestais, possam ser extraídas boas lições disso que alguns ilustram como um “mar de lama” e buscados mecanismos para o aperfeiçoamento das instituições.

Neste contexto, penso que o Parlamento, enredado tanto quanto o Executivo nessa crise, deve voltar seus olhos para a advocacia pública, mais precisamente para a Advocacia-Geral da União. Não por menos, dia desses, certo líder da oposição sinalizava no sentido de dar mais poderes à AGU como resposta à corrupção.

Responsável pela defesa do patrimônio público e pela recuperação e economia de bilhões de reais para o país — mais de R$ 150 bilhões apenas no governo atual —, a AGU está presente nos momentos fundamentais da atividade governamental, da arrecadação das receitas à efetivação das políticas públicas, representando o país, ainda, nas discussões jurídicas no plano internacional.

No exercício da atividade de consultoria e assessoramento ao Poder Executivo, faz-se presente em todos os Ministérios, realizando o controle da juridicidade dos atos da administração pública, que consiste em confrontá-los com a lei e os princípios e regras inscritos na Constituição, o que é da essência de um Estado de Direito.

Desenvolvida sob condições adequadas, esta atuação tem potencial para reduzir sensivelmente os desvios na atividade pública e elevar o padrão ético da República. Se tal ainda não ocorre no patamar esperado, é porque a AGU encontra-se aprisionada por uma legislação inservível, de certo modo associada à visão patrimonialista que ainda persiste no Estado brasileiro.

Criada pela Constituição de 1988 a partir de uma das costelas do Ministério Público Federal, com vistas principalmente a resolver o inconveniente bifrontismo que consistia na atuação daquele órgão como advogado da sociedade, sendo-o ao mesmo tempo do Estado, à AGU, possivelmente por receio de que pudesse vir a se tornar tão “ameaçadora” quanto aquele, foi recusada a necessária autonomia.

Na mesma trilha, a Lei Complementar 73/93 (Lei Orgânica da AGU) privou os membros da novel instituição das prerrogativas necessárias ao exercício pleno da função de advogados do Estado, cuidando ainda de amordaçá-los, ao restringir a possibilidade de darem entrevistas. Não bastasse isso, os membros da AGU, sujeitos a regime de dedicação exclusiva, percebem remuneração de cerca de 40% daqueles pagos aos membros do Ministério Público Federal (até o final da década de 1990, segundo dados disponíveis, um procurador da Fazenda Nacional, membro da AGU, percebia valor superior ao pago a um juiz federal).

Caberia, portanto, a pergunta: a quem assusta uma advocacia de Estado atuante, independente, forte e valorizada? É dizer, a quem interessa a fragilização de uma instituição vocacionada à defesa das rendas e do patrimônio público federal e ao controle da juridicidade dos atos da administração.

Anote-se que, embora não expressamente concedida a necessária autonomia no plano constitucional, teve o constituinte, contudo, a preocupação de situar a AGU, assim como o Ministério Público e a Defensoria Pública, fora de qualquer do Poderes tradicionais, inserindo-a em capítulo próprio (Capítulo IV — Das funções essenciais à Justiça) do Título IV (Da organização dos poderes), o que permitiu que fosse identificado nas “Funções essenciais à Justiça” um novo centro do poder estatal, um “poder em formação”.

É certo que nem o Ministério Público nem a Defensoria Pública, tampouco a AGU, são integradas por anjos ou uma casta elite. Estando sujeitos às mesmas dificuldades de outras instituições, parece induvidoso, contudo, que a forma de seleção de seus quadros, por rigorosos concursos públicos de provas e de títulos, permite o ingresso de cidadãos não apenas objetivamente bem qualificados como simpáticos às mais diversas ideologias, o que as torna, a princípio, menos propícias a aparelhamentos partidários, à subserviência e práticas clientelistas.

De outra parte, atuam sob o império da lei, tendo a Constituição por ápice, o que favorece a formação de uma cultura voltada para o interesse público, sem prejuízo de que eventuais desvios e excessos tenham que ser resolvidos no âmbito do Poder Judiciário e atualmente também, no caso do parquet, do Conselho Nacional do Ministério Público, exemplo de aperfeiçoamento institucional de que procuramos tratar aqui.

Não bastasse, contudo, o amordaçamento a priori de seus membros, a lei permite que as funções mais elevadas da AGU possam ser exercidas por pessoas estranhas aos seus quadros e, às vezes, ao próprio serviço público, dos quais sequer exige sejam advogados.

Realmente, a instituição abriu-se, na cúpula, aos cargos em comissão e funções de confiança, outro grande problema associado a uma visão patrimonialista de Estado, na mesma senda das pretensões de eliminar ou flexibilizar o concurso como única forma de ingresso no serviço público compatível com o ideal republicano. Não por menos, a redução desses cargos e funções foi uma das recomendações que emergiram do pacote anticorrupção da CPMI dos Correios.

Por essa via, constata-se, em alguns Ministérios, situações em que atividades de consultoria e assessoramento, privativas de membros efetivos das carreiras da AGU, chegam a ser desempenhadas por pessoas não objetivamente qualificadas e/ou devedoras de favores e simpatias. Aqui a situação chega a ser tão grave quanto a prática do nepotismo, que se tem procurado debelar por alterações legislativas e culturais.

É importante considerar, sem precisarmos nos demorar em tipologias weberianas ou nas contribuições de Sergio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, que a existência de servidores estáveis, admitidos por concurso público específico, consagra o modelo legal-burocrático que corresponde à superação do Estado patrimonialista — solo fértil à corrupção, inclusive de valores —, com tudo aquilo que implica (nepotismo, clientelismo, apadrinhamentos, etc.).

Não por menos, acabar com o serviço público assim integrado, como pretendem alguns, constitui crime contra o ideal republicano, tanto quanto eleger os servidores públicos como os responsáveis pelos piores males do país ou legar à iniciativa privada o papel fundamental de construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

A dupla vinculação das consultorias (à AGU, tecnicamente, e aos Ministérios, administrativamente) é outro fator que favorece a interferência política. Felizmente, no momento atual, a AGU tem como chefe alguém dotado de elevado senso de responsabilidade e que vem insistindo na natureza eminentemente técnica das atribuições da instituição, o que, embora não elimine totalmente tentativas de ingerência, impede ao menos seja ela cooptada por interesses políticos menores.

Esta situação, contudo, não se encontra assegurada juridicamente, tanto mais porque não se exige a participação do Senado no processo de escolha do advogado-geral da União, tampouco que o indicado seja egresso de uma das carreiras da instituição. É dizer, a opção pela atuação eminentemente técnico-jurídica da AGU e de seus membros é questão não resolvida estruturalmente, o que se faz urgente e necessário.

O aperfeiçoamento da AGU, tornando-a apta a um controle de juridicidade mais efetivo, não tem por pretensão, portanto, cercear o exercício da discricionariedade pelos governantes, retirando-lhes a capacidade de tomar as decisões políticas necessárias, para o que foram democraticamente eleitos, mas aceitar a existência de limitações constitucionais e legais previamente estabelecidas pela mesma vontade democrática e que, como bem lembrado pela recém-empossada presidente do Supremo Tribunal Federal, “não há autoridade dotada de poderes ilimitados nem imune à devida fiscalização, controle e responsabilização”.

Desta forma, o aperfeiçoamento da AGU poderá se constituir uma contribuição fundamental para que as crises sejam menos sistêmicas e fazer com que o Estado, independentemente do tamanho que tenha, seja ético e forte o suficiente para impedir que grupos de interesse dele se assenhorem. Fica aqui, portanto, o exemplo dos chineses para quem crise e oportunidade são idéias que se contém no mesmo ideograma.

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