Regras da sobriedade

Beber e dirigir é infração, não importa quantidade de álcool

Autor

  • Damásio de Jesus

    é especialista em Direito Penal advogado e professor do Damásio de Jesus autor de mais de 20 obras ex-procurador de Justiça e tem representado o Brasil junto à Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Penal das Nações Unidas/ONU.

19 de junho de 2006, 20h23

O artigo 306 do CTB — Código de Trânsito Brasileiro, ao disciplinar o crime de embriaguez ao volante, não insere como elemento normativo do tipo o nível de tolerância na ingestão de substância alcoólica ou de efeito análogo (taxa de alcoolemia), como se vê em sua descrição legal:

“Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem: (…)”.

Ao definir a infração administrativa, porém, o artigo 165 do CTB tolerava a presença de até seis decigramas de substância alcoólica por litro de sangue:

“Dirigir sob a influência de álcool, em nível superior a seis decigramas por litro de sangue, ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica: (…)”.

Quanto ao crime, havia duas posições:

1ª) Não há o delito do artigo 306 quando a presença de álcool ou substância análoga no sangue não ultrapassa seis decigramas por litro.1

2ª) O tipo delituoso do artigo 306 exige apenas que o sujeito conduza veículo automotor de forma anormal, “sob a influência de álcool”, não havendo limite legal, de modo que existe crime na hipótese, por exemplo, de o sujeito dirigir um automóvel, irregularmente, sob a influência de cinco decigramas de substância etílica por litro de sangue. Segundo o mesmo princípio, não há crime quando o motorista, embora provada a presença de mais de seis decigramas por litro de sangue, dirige normalmente o veículo.

Adotamos a segunda posição, entendimento seguido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (ACrim n. 1.109.085, 10.ª Câm., rel. Des. Breno Guimarães, JTJ, 42:78).

Não foi aceita, durante a tramitação do Projeto de Lei 73/94, que deu origem à Lei 9.503/97, a proposta de introdução na figura típica do limite legal de tolerância.2

Em relação à infração administrativa, o tipo não exige que a condução seja anormal. Mas, em sua feição original, requeria que o motorista portasse mais de seis decigramas de substância etílica por litro de sangue.

Adotado o sistema do CTB, no tocante às definições típicas da infração administrativa e do crime de embriaguez ao volante (artigos 165 e 306, respectivamente), não havia como deixar de reconhecer grave contraste no tratamento dos dois fatos. Assim, um motorista com 6,1 decigramas de álcool por litro de sangue, dirigindo seu veículo regularmente, respondia pela infração administrativa, mas não pelo crime. Em outra ocasião, embora apresentando cinco decigramas, mas conduzindo-o anormalmente, cometia o delito, porém não a infração administrativa do artigo 165.

O legislador, percebendo a mencionada impropriedade, editou a Lei 11.275, de 7 de fevereiro de 2006, que alterou a redação do artigo 165.

Ao definir a infração administrativa, a fim de evitar o erro na tipificação dos fatos, omitiu o elemento normativo extra-penal referente ao limite da taxa de alcoolemia, não constando mais a exigência de mais de seis decigramas de substância etílica por litro de sangue:

“Artigo 165 — Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica: (…)”.

Dessa maneira, de acordo com a nova lei, para a existência da infração meramente administrativa, não é mais necessário que o motorista apresente mais de seis decigramas de substância etílica ou de efeito semelhante por litro de sangue, bastando que dirija veículo automotor “sob a influência de álcool ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”. Hoje, para que o condutor responda pela infração administrativa, é suficiente que dirija sob a influência de substância alcoólica ou de entorpecente, ainda que não supere o extinto limite legal de alcoolemia.

Nos termos do artigo 277, caput, do CTB, com a redação da Lei 11.275/06: “Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool, será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo Contran, permitam certificar seu estado”. De acordo com o seu parágrafo 1º, “medida correspondente aplica-se no caso de suspeita de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos”.

E se houver recusa do motorista a se submeter a testes, perícias e exames? Nesse caso, determina o parágrafo 2º que “(…) a infração poderá ser caracterizada mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas pelo agente de trânsito acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor, resultantes do consumo de álcool ou entorpecentes, apresentados pelo condutor”.

Significa que o motorista, conforme tranqüila jurisprudência, não está obrigado a se deixar submeter a testes (bafômetro), perícias e exames, produzindo prova contra si mesmo, cabendo à autoridade a demonstração do fato por meio de outros instrumentos permitidos em lei.

De ficar consignado que a modificação da redação do artigo 165 do CTB não alterou os conceitos típicos do crime de embriaguez ao volante (artigo 306), que continua a exigir a influência da substância inebriante na condução do veículo, independentemente da taxa de alcoolemia, manifestada em manobras que reduzem o nível de segurança no trânsito.

Notas de rodapé

1 – Nesse sentido: PIRES, Ariosvaldo de Campos; SALES, Sheila J. Selim de. Crimes de trânsito na Lei n. 9.503/97. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. n. 38.2.3, p. 220.

2 – No sentido de deixar essa matéria à apreciação do juiz, silenciando o texto sobre o limite permissivo: PIRES, Ariosvaldo de Campos. Parecer sobre o Projeto de Lei 73/94, que instituiu o CTB, oferecido ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, 23 de julho de 1996. No mesmo sentido: PAVÓN, Pilar Gómez. El delito de conducción bajo la influencia de bebidas alcohólicas, drogas tóxicas o estupefacientes. Barcelona: Bosch, 1998 p. 51-52. Adotando nossa posição: PINHEIRO, Geraldo de Faria Lemos. A embriaguez no Código de Trânsito Brasileiro. Boletim IBCCrim. São Paulo, outubro de 1999, 83:3 e 4.

Autores

  • é especialista em Direito Penal, advogado e professor do Damásio de Jesus, autor de mais de 20 obras, ex-procurador de Justiça e tem representado o Brasil junto à Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Penal das Nações Unidas/ONU.

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