Sem defesa

Entrevista: Holden Macedo

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18 de junho de 2006, 20h55

Holden Macedo - por SpaccaSpacca" data-GUID="holden_macedo.png">A Constituição estabelece que todo cidadão tem direito a assistência jurídica, integral e gratuita. Quem não pode arcar com as custas do processo sem comprometer a manutenção familiar, deve ser defendido pelo Estado. A missão, na esfera federal, cabe à Defensoria Pública da União. Nos estados, aos respectivos governos. A previsão constitucional vigora há 17 anos. Mas até agora é negligenciada e improvisada, com a ressalva de locais onde as exceções se devem ao esforço pessoal de uns poucos.

A Defensoria da União deve atender aqueles que ganham menos de dois salários mínimos, o que representa, segundo o último senso do IBGE, 92 milhões de brasileiros. Os defensores públicos da União, 106 ao todo, para atender toda essa população, estão em greve desde o dia 17 de março deste ano. Reivindicam mais braços, mais força, subsídios, melhorias na infra-estrutura material e de pessoal, além da melhoria nos salários, é claro.

A tarefa da Defensoria Pública, 80% dela, refere-se a questões previdenciárias. O restante engloba defesa em processo penal e ações contra o Sistema Financeiro da Habitação e Sistema Financeiro Imobiliário, contra a Caixa Econômica Federal. Mais de 90% dos mutuários encontra-se em dívida com seus financiamentos habitacionais e acabam recorrendo à Defensoria.

Algo que mal funciona, agora está quase parado com a greve dos defensores da União. Pagos para atuar, basicamente, contra a União, os defensores se vêem na contingência de uma paralisação que, levada às últimas circunstâncias, favorece o patrão. Neste momento, atendem apenas a pedidos urgentes como os de liberdade e socorro médico. Holden Macedo, presidente da Associação Nacional dos Defesores Públicos da União, chama a atenção para esse paradoxo. Em entrevista à revista Consultor Jurídico, o dirigente classista reclama a falta de atenção oficial para tema tão importante da nacionalidade.

“Os paulistas sentiram as rebeliões nos presídios em São Paulo. O sistema penitenciário está explodindo há mais de 20 anos. Se não há condição de pagar um advogado, é preciso ter Defensoria Pública nos presídios, para tratar individualmente da fiscalização e do cumprimento da pena de cada apenado”, afirma.

Segundo Macedo, no estado do Rio de Janeiro, onde vivem 15 milhões de habitantes, mais de um terço da população paulista, há, proporcionalmente, menos presos. E a explicação é o fato de se ter no Rio uma defensoria pública maior e mais eficiente que em São Paulo.

“No estado do Rio de Janeiro há menos rebeliões em presídios do que em São Paulo, porque no Rio tem menos presos. E tem menos presos graças ao resultado da atuação forte da Defensoria Pública. São Paulo está colhendo a omissão que plantou ao não efetivar a Defensoria”, explica.

Aos 29 anos de idade, Holden Macedo é defensor público desde 2001 e comanda a entidade com 120 associados. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Macedo também é pós-graduado em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual. Atualmente é professor de Direito Processual Civil e Prática Processual Civil no Fortium — Centro de Estudos Jurídicos e no Instituto de Educação Superior de Brasília.

Como defensor público da União da classe especial atua perante os tribunais superiores e, hoje, presta assistência jurídica no Supremo Tribunal Federal junto ao gabinete do defensor público-geral.

Leia a entrevista

ConJur — Qual é a situação da Defensoria Pública da União?

Holden Macedo — A Defensoria Pública da União está na UTI. Temos apenas 106 defensores públicos trabalhando em todo o país para cumprir a missão designada pela Constituição, de prestar assistência jurídica, integral e gratuita, àqueles que não têm condições de pagar um advogado. Segundo dados do último censo do IBGE, as pessoas sem essas condições são mais de 92 milhões. Essa é a clientela potencial da Defensoria Pública da União e de todas as defensorias estaduais. São aquelas pessoas que ganham menos de dois salários mínimos.

ConJur — Pouca estrutura e muita demanda…

Holden Macedo — No que diz respeito à estrutura material e de pessoal, hoje a DPU não dispõe de nenhum servidor público no quadro de apoio. Os poucos que temos são remanejados de outros órgãos, porque a Lei 9.020/95 dá à Defensoria o poder de requisitar servidores de outros órgãos. Na estrutura da administração superior, na ponta da instituição, não temos praticamente nenhum servidor público. O defensor público bate escanteio e corre para a área para cabecear. Ou seja, ele dá um despacho no processo, ele mesmo redige o ofício, imprime, coloca num envelope e vai ao correio postar. Quanto à infra-estrutura material, a DPU se considera privilegiada. Tem Defensoria Pública nos estados que não tem computador, não tem nem papel, não tem tonner para impressão. Nós ainda pleiteamos carro de apoio para pegar um processo na Justiça e voltar, para levar os defensores às audiências. Mais de 80% das unidades da DPU é alugada e algumas estão com prédios pouco habitáveis, como a DPU no Ceará, em Fortaleza, e Pará, com estruturas precárias, infiltrações, sem ar condicionado.


ConJur — O senhor conhece a situação das defensorias públicas estaduais?

Holden Macedo — O quadro geral tem melhorado bastante, inclusive em estados que se recusavam a implantar a Defensoria, como São Paulo e Goiás. Eles criaram a lei que organiza a Defensoria Pública, que agora espera a implantação de forma efetiva. Hoje, o único estado que ainda descumpre escancaradamente a Constituição é Santa Catarina. Eles não querem ter defensoria. Tem um artigo na Constituição do estado de Santa Catarina dizendo que a Defensoria Pública é a advocacia dativa em convênio com a OAB e ponto final.

ConJur — Existem estados em que a Defensoria Pública funciona de fato?

Holden Macedo — Se fossemos fazer um ranking de Defensoria Pública, a melhor do país é de Mato Grosso do Sul. Depois Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, com uma estrutura muito boa. O estado do Rio de Janeiro tem cerca de 700 defensores públicos. Temos os extremos. Piauí e Maranhão têm as piores defensorias públicas do Brasil em termos de números de defensores por habitantes, de infra-estrutura material e de pessoal. Com a Emenda Constitucional 45 [Reforma do Judiciário], a tendência é que isso melhore. Outra crítica da associação é que hoje apenas as defensorias estaduais têm autonomia administrativa e orçamentária. Mesmo com essa autonomia, há governadores que não querem implantar defensoria. É uma luta diária.

ConJur — Que instrumentos jurídicos tem um defensor?

Holden Macedo — Ação individual. Ele pode também representar uma associação, o que não é muito comum, mas com a legitimidade da associação pode entrar com Ação Civil Pública. Hoje temos que representar cada um individualmente abarrotando o Judiciário, gastando recurso público, perdendo tempo com coisa que já não precisa mais.

ConJur — Qual é a grande demanda da Defensoria Pública da União?

Holden Macedo — Entre 70 e 80% da demanda da Defensoria Pública refere-se a causas previdenciárias. O restante é defesa em processo penal e um contingente enorme de ações que diz respeito ao fracassado Sistema Financeiro da Habitação e ao Sistema Financeiro Imobiliário, geridos pela Caixa Econômica Federal. Mais de 90% dos mutuários encontra-se em dívida com seus financiamentos habitacionais e acaba recorrendo à Defensoria quando tem o seu imóvel leiloado extra-judicialmente e quando a sua prestação mensal cresce a níveis impagáveis.

ConJur — Entramos naquela antiga questão. Se o Estado cumprisse seu papel não precisaríamos de tantos defensores para litigar contra o próprio Estado.

Holden Macedo — A maior parte de nossas ações tem como parte contrária a União, suas autarquias, o INSS, o Incra — em ações de regularização fundiária —, empresas públicas como Caixa Econômica Federal e a Embrapa. Por exemplo, foi criado um benefício chamado amparo assistencial para idosos e deficientes físicos que não podem prover a própria subsistência. Foi editada a Lei Orgânica da Assistência Social e o veio amparo assistencial, que se tornou um dos mais descumpridos pelo INSS. O governo implantou um benefício para favorecer quem ganha um quarto do salário mínimo, mas o INSS, que é uma autarquia governamental, não concede muitos benefícios que a Defensoria entende que seriam cabidos. Aí entra outro importante papel da Defensoria Pública, que trabalha como um instrumento para assegurar que programas governamentais sejam cumpridos.

ConJur — Qual seria o modelo ideal de Defensoria?

Holden Macedo — O estado de Mato Grosso do Sul está muito perto desse modelo. Mato Grosso do Sul foi o primeiro estado a cumprir a Reforma do Judiciário, promulgada em dezembro de 2004, no que dizia respeito à implantação da Defensoria. No ano passado, aprovou uma mudança na Constituição estadual dando à Defensoria Pública a iniciativa de projeto de lei, por exemplo. Há um defensor público por juiz. A remuneração da carreira é próxima ou equivalente ao que ganha hoje um membro do Ministério Público. Hoje, por exemplo, há um projeto de lei que pede a criação de 169 cargos para defensor público da União que tramita já faz quatro anos, esperando uma resolução. Na Defensoria de Mato Grosso do Sul isso é diferente: o defensor-geral, por meio de minuta, manda diretamente para a Assembléia Legislativa, que avalia o pedido, aprova ou não e fim. A DPU ainda tem de passar por uma etapa no Executivo que é difícil.

ConJur — Existe uma luta de muitos setores da sociedade pelo fortalecimento da Defensoria Pública. O que a associação está fazendo nesse sentido?

Holden Macedo — A Associação tem lutado em duas frentes: a jurídica e a política. Na frente jurídica, nós ingressamos com Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão [ADI 3.622] contra o presidente da República que não implantou definitivamente a DPU. Temos ainda algumas representações oferecidas ao Ministério Público Federal, que tem mostrado efetividade, e pelo menos dez ações civis públicas ajuizadas em todo o país onde se questiona a ausência de um defensor público na União perante um juiz federal.


ConJur — E na frente política?

Holden Macedo — No plano político tentamos sensibilizar os parlamentares. Há uma Proposta de Emenda Constitucional [PEC 487/05] do deputado Roberto Freire (PPS-PE) que melhora o regime jurídico aplicado à Defensoria Pública. Essa PEC tem o condão de quase nos assemelhar, em termos de regime jurídico, ao Ministério Público, dando as prerrogativas próprias que eles têm. Com isso, temos a esperança de ser a próxima instituição jurídica a deslanchar no cenário nacional. Nós também apoiamos — e até pretendemos figurar como assistente litisconsorcial — ações populares como a de um cidadão do Distrito Federal onde ele pede que sejam declarados nulos todos os convênios de prestação de assistência jurídica selados entre estados, a União e a seccional da OAB, faculdades e escritórios modelos. Escritório modelo de faculdade é para ensinar aluno, não para prestar assistência jurídica. Por que utilizar o pobre como tubo de ensaio para ensinar acadêmico de Direito?

ConJur — O que a associação pensa desses convênios?

Holden Macedo — Criticamos a sistemática de convênios e de prestação de assistência jurídica por escritório modelo de faculdade. Não quero dizer que todos os escritórios prestam má assistência, mas o sistema está errado. É tarefa do Executivo dar assistência jurídica ao necessitado, não é do Judiciário, que na omissão inconstitucional do Executivo se arroga em fazer uma política pública que não está no seu âmbito. Esse sistema de convênios é ruim porque perpetua o descumprimento da Constituição. Nós estamos improvisando há 17 anos. Na sistemática dos convênios, os interesses dos pobres, muitas vezes, são colocados em última análise. Há até a hipótese de que esses convênios existam apenas para dar mercado de trabalho para advogado. Ao manter os convênios, o Estado está dando dinheiro público para que se descumpra a Constituição. O dinheiro público para prestar assistência jurídica só deve ir para a Defensoria Pública.

ConJur — Os defensores públicos da União estão em greve desde o dia 27 de março deste ano. Este é o melhor caminho para se pleitear melhores condições de trabalho e salário?

Holden Macedo — Infelizmente, a rigor, greve sempre vai prejudicar alguém. Mesmo porque se fizer greve e ninguém sentir, não adianta. A greve é um instrumento legítimo de pressão, salvaguardado inclusive por convenções internacionais. O governo federal dificilmente negocia. Já estamos chegando perto do prazo final, 30 de junho, e ainda estamos negociando. O governo não disse sim ou não. Ressalvo que a greve na Defensoria Pública da União respeita por analogia a lei de greve do serviço privado. Então, 30% da força de trabalho está à disposição do órgão para atender os casos de urgência envolvendo, por exemplo, direito à vida e à liberdade. Continuamos a entrar com pedidos de Mandado de Segurança para a concessão de medicamentos ou de Habeas Corpus para relaxamento e revogação de prisão. No presente momento, para DPU a greve é a única saída.

ConJur — Vocês tentaram outras alternativas antes da greve?

Holden Macedo — Sim. Nós não seriamos levianos de adotar como primeira opção a greve. A greve é sempre a última alternativa. Nós já tentamos sensibilizar o governo federal de outras formas. O próprio Ministério da Justiça nos deu um apoio muito grande. O Sérgio Renault, subchefe de assuntos jurídicos da Casa Civil, também nos ouviu, compreendeu o problema, mas não nos deu um posicionamento do que seria feito. Agradecemos muito a ele, mas até agora nada foi feito na prática. A greve é um sinal de alerta para ver se o governo sente a importância da DPU e do respeito que tem de ser dado a uma instituição como essa. Se esse é um governo que almeja o bem-estar social, nada mais importante do que dar acesso à Justiça à população.

ConJur — Quais são as reivindicações da categoria?

Holden Macedo — São quatro. Primeiro, a criação de mais cargos de defensor público da União. Há um projeto parado há quatro anos no Poder Executivo que cria 169 cargos de defensor público da União. Basta ter visão política e entender que isso é essencial para a população e tiraria a Defensoria da União da UTI. A segunda reivindicação é por subsídios. O artigo 135 da Constituição que diz que defensor público da União, advogado público federal, procuradores federais, procuradores da Fazenda Nacional, advogados da União, devem ser remunerados por subsídios. Também pedimos patamares dignos de remuneração. Hoje, o defensor público da União e advogado público federal recebem um terço do salário de juízes e membros do Ministério Público Federal. É uma situação insustentável. E também pleiteamos que seja implantada uma unidade da Defensoria Pública da União onde exista uma Vara da Justiça Federal ou do Trabalho. Isso porque o juiz é inerte, não pode sair resolvendo conflitos de interesse na rua. Ele depende de agentes provocadores. Quem são esses agentes provocadores? É o Ministério Público, que defende o interesse da sociedade. É o advogado público, que defende o interesse do Estado e o defensor público, que defende o interesse do necessitado. E, por último, o advogado privado.

ConJur — Quanto ganha um defensor público?

Holden Macedo — O defensor público da União ganha em torno de R$ 8,5 mil, salário inicial bruto. Hoje, um juiz federal de primeiro grau ganha cerca de R$ 20,5 mil. Existe um projeto muito consciente tramitando há um ano. Segundo o projeto, em 2009 nós chegaríamos perto do que ganham os juízes, com R$ 19,9 mil. A proposta é de aumento gradual ano a ano produzindo um impacto orçamentário de cerca de R$ 1 bilhão.

ConJur — O senhor comentou que a Defensoria Pública bem instalada, em boas condições, poderia evitar ou amenizar certas situações como a onda de violência deflagrada em São Paulo pelo crime organizado. Como seria isso?

Holden Macedo — Os paulistas sentiram as rebeliões nos presídios em São Paulo. O sistema penitenciário está explodindo há mais de 20 anos. Está tudo errado. Desde a falta de estatísticas até a infra-estrutura. Os agentes penitenciários são mal remunerados, os presídios não tem estrutura, nem lugares. Onde a capacidade é para 30 pessoas, tem 230 presos.

ConJur — Qual o papel da Defensoria Pública nesse contexto?

Holden Macedo — Na maior parte das vezes, quem vai preso perde laços familiares e não tem condições financeiras. São raros os presídios que propiciam trabalho e uma remuneração mínima, que ainda assim não é suficiente para contratar um advogado. Se não há condição de pagar um advogado, é preciso ter Defensoria Pública nos presídios, para tratar individualmente da fiscalização e do cumprimento da pena de cada apenado. No estado do Rio de Janeiro há menos rebeliões em presídios do que em São Paulo, porque no Rio tem menos presos. E tem menos presos graças ao resultado da atuação forte da Defensoria Pública. São Paulo está colhendo a omissão que plantou ao não efetivar a Defensoria.

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