Longe de influências

É dever do juiz defender a sua independência na hora de julgar

Autores

  • Jorge Luiz Souto Maior

    é professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

  • Marcos Neves Fava

    é juiz do Trabalho Substituto na 2ª Região mestre em direito do trabalho pela USP diretor de Direitos e Prerrogativas da Anamatra — Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho — para o biênio 2005-07.

17 de junho de 2006, 11h39

“Da dignidade do juiz depende a dignidade do direito. O direito valerá, em um país e em um momento histórico determinados, o que valham os juízes como homens. No dia em que os juízes têm medo, nenhum cidadão pode dormir tranqüilo.” (Eduardo Couture).

Quando se fala em independência do juiz tem-se logo a idéia de que se está cuidando de uma prerrogativa particular do juiz. Não é bem isto.

Embora hoje em dia a opinião pública venha sendo levada, pelos meios de comunicação, a confundir “garantias da magistratura” com “privilégios dos juízes”, é certo que as três garantias constantes do Texto Constitucional mostram-se essenciais ao exercício das funções do juiz, a saber: vitaliciedade, irredutibilidade de vencimentos e inamovibilidade. A Carta Política é clara ao instituí-las em seu artigo 95, incisos I, II e III.

Chamam-se garantias de independência[1] , eis que visam a promover julgamentos isentos de pressão, seja da sociedade organizada, seja dos interesses de grupos políticos ou econômicos, seja dos próprios órgãos jurisdicionais. Seu conjunto, somado à imunidade do Juiz ao proferir suas decisões[2], conformam o perfil da independência no exercício da magistratura.

A independência do juiz, primeiro, é uma garantia do próprio Estado de Direito, pelo qual se atribuiu ao Poder Judiciário a atribuição de dizer o direito, direito este que será fixado por normas jurídicas elaboradas pelo Poder Legislativo, com inserção, ao longo dos anos, de valores sociais e humanos, incorporados ao direito pela noção de princípios jurídicos. A independência do juiz, para dizer o direito, é estabelecida pela própria ordem jurídica como forma de garantir ao cidadão que o Estado de Direito será respeitado e usado como defesa contra todo o tipo de usurpação. Neste sentido, a independência do juiz é, igualmente, garante do regime democrático.

Importante, ademais, destacar que a questão da independência dos juízes tratou-se mesmo de uma conquista da cidadania, pois nem sempre foi a independência um atributo do ato de julgar. Dalmo de Abreu Dallari, assim se pronuncia a respeito: “Essa idéia de independência da magistratura não é muito antiga. Há quem pense que isso acompanhou sempre a própria idéia de magistratura — eu ouvi uma vez alguma coisa assim no Tribunal de Justiça de São Paulo — o que é um grande equívoco. São fatos, fenômenos novos, situações novas, que estão chegando há pouco e que provocam crise, provocam conflitos. Paralelamente a isso verifica-se, nesse ambiente de mudanças, o crescimento da idéia de direitos humanos. Há um aspecto da história da magistratura que eu vou mencionar quase que entre parênteses, é uma coisa que corre paralelamente à história européia, mas fica lá num plano isolado, que é o aparecimento de uma magistratura independente, de fato independente, nos Estados Unidos.

É oportuno lembrar a atitude política dos Estados Unidos durante todo século XIX, ficando numa posição de isolamento do resto do mundo, sem participar de guerras ou alianças. Também o seu direito tinha outro fundamento, pois era basicamente o direito costumeiro e por isso não se refletiu nos direitos de estilo e tradição romanística, mas é muito interessante esse aspecto da história dos Estados Unidos.“[3]

No Brasil, por exemplo, no período imperial, a composição do Judiciária se fez de modo a manter sob controle os juízes a fim de “manter uma estrita dependência com relação às luta eleitorais entre facções das classes dominantes escravistas”[4]. A Constituição de 1824 conferia ao imperados a possibilidade de suspender juízes e não consagrou a garantia da inamovabilidade. Assim, segundo Décio Saes, citando Carlos Maximiliano, em um só dia, em 1843, por motivos políticos, procedeu-se a remoção de 53 juízes[5]. O vergonhoso artigo 177 da Constituição da República de 1937 preceituava que o juiz poderia ser removido “no interesse público ou por conveniência do regime”, igualmente como regularam os atos institucionais, no golpe seguinte (de 1964), números 1, 2 e 5, revelando-se claramente o caráter precário da independência de que poderiam gozar os magistrados de então.


Historicamente, foi com a Constituição americana, que, efetivamente, se consagrou a separação de poderes, conferindo autonomia ao Poder Judiciário, que a noção de independência da magistratura foi incorporada ao ordenamento jurídico: “Desde o começo da vida norte-americana já se discutia a questão da independência dos juizes. Quando os norte-americanos aplicaram na prática, inserindo na Constituição, o sistema de separação de poderes, a coisa talvez mais importante que eles fizeram naquele momento foi ampliar as idéias anteriores para valorizar o Judiciário, para dar ao Judiciário autonomia e atribuir-lhe a categoria de poder político. E comum a gente ler nos manuais que a separação de poderes foi invenção de Montesquieu, o que é absolutamente equivocado.

A defesa dessa idéia já aparece em Aristóteles e depois ressurge com um autor italiano do século XV, Giovanni Gravina e depois reaparece com Maquiavel. (….) Os norte-americanos avançaram muito em relação a isso. Tinham o temor do absolutismo, mas também tinham a lembrança, pela sua própria origem de uma espécie de absolutismo do Parlamento, que tinha ocorrido na Inglaterra. E, por isso conceberam o sistema que foi chamado de “freios e contrapesos”, que é o que está na Constituição americana, segundo o qual todo o Poder Legislativo cabe ao Congresso, o Congresso é quem legisla. Até hoje o presidente dos EUA não tem iniciativa de projetos de lei. A participação dele é relativamente pequena em termos de legislação e o Executivo, então, é o executor das leis.

A idéia era essa: o Poder Legislativo fixa as normas e o Executivo é obrigado a agir nos limites dessas normas, a fazer aquilo que a norma determina e a não fazer aquilo que a norma proíbe. Mas os constituintes norte-americanos acrescentaram um terceiro poder político, que foi o Judiciário. Segundo essa concepção, o Judiciário é o elemento de equilíbrio, ele é o controlador do respeito à Constituição. Desde o início da vida norte-americana essa questão foi muito ressaltada e muito cedo se chamou a atenção para a importância que o Judiciário assumia. E extremamente interessante e muito referida, às vezes com certa ligeireza, a famosa decisão do juiz Marshall no caso Marbury versus Madison, no ano de 1803. O que foi realmente que Marshall fez que foi tão importante? Uma afirmação da competência do Judiciário para controle de constitucionalidade dos atos dos outros dois poderes. Sim, isto também. Mas o que de fato aconteceu foi que durante o período de implantação do Estado norte-americano já apareceu a idéia de que era fundamental que houvesse um Judiciário independente. E aí aparece a idéia do Judiciário constitucionalmente independente, do Judiciário que vai garantir os direitos fundamentais, inclusive contra os eventuais abusos do próprio Legislativo, do juiz que para isso precisa ser independente”.[6]

A independência dos juízes, portanto, foi fixada como fator essencial da proteção dos direitos fundamentais, inserindo-se como importante fator de construção e efetivação dos direitos humanos. Novamente é Dalmo Dallari que assim recorda: “Mas a partir daí surge o problema da eficácia das normas de direitos humanos. Agora elas têm eficácia jurídica, mas como garantir na prática esta eficácia? E aí que se começa a ressaltar a extraordinária importância dos juizes para o cumprimento deste papel. Em muitas obras já se fala nisso, em muitos tratados isto foi mencionado e os próprios pactos de direitos humanos mencionam a necessidade da independência do juiz, ao mesmo tempo em que falam na garantia de julgamento independente e imparcial como um dos direitos humanos fundamentais. (….)

Para concluir, acho que há necessidade de nós reconhecermos, primeiro, que é fundamental a independência da magistratura. E voltando à minha questão: a independência da magistratura é importante para quem? Será que não é um privilégio do juiz querer ser independente? Peço licença para ler uma frase do meu livro O Poder dos Juizes, onde eu trato desta questão. Eu digo isto: “longe de ser um privilégio para o juiz, a independência da magistratura é necessária para o povo, que precisa de juizes independentes e imparciais para harmonização pacífica e justa dos conflitos de Direito”[7].

Exatamente por isto, é possível verificar a consagração da independência do juiz em diversos dispositivos internacionais ligados aos Direitos Humanos. Declaração Universal Dos Direitos do Homem, 1948:

Artigo 10: Todo o homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.


Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, 1948:

Artigo XVIII – Toda pessoa pode recorrer aos tribunais para fazer respeitar os seus direitos. Deve poder contar, outrossim, com processo simples e breve, mediante o qual a justiça a proteja contra atos de autoridade que violem, em seu prejuízo, quaisquer dos direitos fundamentais consagrados constitucionalmente. Pacto de São José da Costa Rica, 1969:

Artigo 8º – Garantias judiciais.

1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

Artigo 1º – Obrigação de respeitar os direitos.

1. Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

Em nível supranacional também pode ser citada a Recomendação n. (94) 12, do Comitê dos Ministros do Conselho da Europa, de 13 de outubro de 1994, que trata da independência dos juízes[8].

Também é possível verificar a consignação da idéia da independência dos juízes na Constituição de vários países, além, naturalmente, dos Estados Unidos, que fora, conforme antes mencionado, o propulsor da garantia Alemanha: “Os juízes são independentes e somente se submetem à lei” (art. 97).

Áustria: “Os juízes são independentes no exercício de suas funções judiciárias” (art. 87)

Dinarmarca: “No exercício de suas funções os magistrados devem se conformar à lei.” (art. 64)

Espanha: “A justiça emana do povo e ela é administrada em nome do rei por juízes e magistrados que constituem o poder judiciário e são independentes, inamovíveis, responsáveis e submetidos exclusivamente ao império da lei.” (art. 117). “Toda pessoa tem o direito de obter a proteção efetiva dos juízes e tribunais para exercer seus direitos e seus interesses legítimos, sem que em nenhum caso esta proteção possa lhe ser recusada” (art. 24)

França: “O presidente da República é garante da independência da autoridade judiciária. Ele é assistido pelo Conselho superior da magistratura. Uma lei orgãnica traz estatuto dos magistrados. Os magistrados de carreira são inamovíveis.” (art. 64)

Grécia: “A justiça é composta por tribunais constituídos de magistrados de carreira que possuem independência funcional e pessoal.” (art. 87-1) “No exercício de suas funções, os magistrados são submetidos somente à Constituição e às leis; eles não são, em nenhum caso, obrigados a se submeter a disposições contrárias à Constituição.” (art. 87-2)


Irlanda: “Os juízes são independentes no exercício de suas funções judiciárias e submetidos somente à presente Constituição e à lei.” (art. 35-2)

Itália: “A justiça é exercida em nome do povo. Os juízes se submetem apenas à lei.” (art. 101)

Portugal: “Os juízes são inamovíveis. Eles não poderão ser multados, suspensos, postos em disponibilidade ou exonerados de suas funções fora dos casos previstos pela lei.” (art. 218-1) “Os juízes não podem ser tidos por responsáveis de suas decisões, salvo exceções consignadas na lei.” (art. 218-2)

Assim, tem inteira razão Jean-Claude Javillier, quando diz que “não há nenhuma sociedade democrática sem uma independência da magistratura: ela é a garantia de uma efetividade das normas protetoras dos direitos essenciais do homem”[9].

Neste mesmo sentido, conclui Fábio Konder Comparato: “A independência funcional da magistratura, assim entendida, é uma garantia institucional do regime democrático. O conceito institucional foi elaborado pela doutrina publicista alemã à época da República de Weimar, para designar as fontes de organização dos Poderes Público, cuja função é assegurar o respeito aos direitos subjetivos fundamentais, declarados na Constituição.”[10]

Há, no entanto, uma outra dimensão da independência do juiz que o atinge na condição de pessoa humana. O juiz está jungido à ordem jurídica e suas posições, sempre fundamentadas, devem respeitar os limites do direito, que, diga-se de passagem, diante das grandes possibilidades argumentativas que lhe são conferidas pela noção de princípios jurídicos e pelas técnicas de interpretação, não são tão restritos como muitas vezes equivocadamente se imagina. Mas, nesta segunda dimensão o que se tem em vista não é isto e sim o fato de que a decisão do juiz pode ser avaliada quanto ao aspecto de saber se ela extrapola ou não os limites do instrumento que tem em mãos, que é o direito, até porque em nome da própria independência o juiz pode acabar agindo de modo a negligenciar os direitos fundamentais do cidadão, mas não se poderá ir além, determinando ao juiz que pense de um modo determinado.

O mais relevante passo que se deu na evolução do processo a partir da era medieval foi a inserção do convencimento racional do juiz como base do funcionamento da própria Justiça. Isto resta bem claro pela evolução da prova judiciária. Inicialmente, no tempo das ordálias, a sorte do próprio acusado decidia o processo, porque não havia prova propriamente dita, mas um sorteio, aplicando-se o direito a partir do resultado aleatório do sistema. Em seguida, a prova foi quantificada, e o juiz precisava apenas saber contar. Duas testemunhas do autor, uma do réu: venceu o autor a causa. Este procedimento vigorou entre nós, com a vigência das Ordenações Reinóis no início do Brasil Colônia.

O patamar a que chegamos e que se estabelece até os dias atuais é o do livre convencimento racional do juiz. Não importa o número de testemunhas, tampouco a qualidade formal da prova, mantendo-se o juiz desprendido para julgar consoante os movimentos de sua consciência, apoiada no direito vigente, desde que apresente seus fundamentos racionais. Suas razões de decidir. Os motivos pelos quais, do vasto campo de possibilidades que se espraia no universo do ordenamento, porque aplicou esta, mas não aquela, porque se afetou por este princípio, superando aquele outro.

Eis o limite da atuação do juiz: a necessidade de fundamentação de suas decisões, comando, aliás, com sede constitucional – artigo 93, IX.

Para corrigir equívocos jurídicos do juiz, isto é, para avaliar os limites do exercício da função jurisdicional, foi que se estabeleceram, no próprio ordenamento jurídico, garantias aos cidadãos, que são: a necessidade de que as decisões judiciais sejam fundamentadas, o devido processo legal (possibilidade de ampla defesa e contraditório), em certas situações, o duplo grau de jurisdição, e, ainda, mecanismos de correção das de possíveis arbitrariedades do juiz (mandado de segurança, por exemplo).


As decisões proferidas pelo juiz estão sujeitas ao crivo da própria sociedade, a quem a ordem jurídica confere mecanismos institucionais para correção. Para isto são sempre públicas e fundamentadas.

Assim, desde que atendido o princípio constitucional da fundamentação de suas decisões, a partir de argumentos jurídicos, nenhum juiz pode ser punido pelo fato de que suas decisões foram consideradas equivocadas, pois a divergência de entendimentos, aliás, é natural dentro de um regime democrático, que tem como pressuposto de organização o direito, ainda mais sabendo-se, como se sabe, que o direito, sendo um dado cultural, construído por valores e palavras, pode dar margem a interpretações divergentes. Além disso, tendo o direito um conteúdo ético e um necessário sentimento de justiça, o maior equívoco que pode cometer um juiz é deixar-se levar pelos formalismos da lei, não extraindo, assim, toda instrumentalidade conferida pelo direito para que esses valores, essenciais à sociedade, sejam efetivados.

Esta compreensão mais ampla do direito, aliás, é importantíssima, como elemento de preservação dos direitos humanos (em todas as suas dimensões), do regime democrático e das garantias conferidas pela cidadania, pois a própria lei, em certas circunstâncias históricas determinadas, pode acabar desprezando tais valores, instituindo, como já se viu na história, tribunais de exceção, agressão ao princípio da irretroatividade da lei penal, perseguição política, julgamentos sumários por questão ideológica (apenas para citar alguns exemplos), e a resistência dos juízes, com apoio em sua independência, é a força fundamental com a qual a sociedade pode contar.

Sob um ponto de vista da organização interna dos tribunais, a independência do juiz transforma-se em uma garantia pessoal para que o juiz seja, efetivamente, livre de qualquer ingerência da própria estrutura judiciária. Cuida-se do respeito à dignidade do que julga, bem capitada pela lição de Calamandrei: “Não conheço qualquer ofício em que, mais do que no de juiz, se exija tão grande noção de vil dignidade, esse sentimento que manda procurar na própria consciência, mais do que nas ordens alheias, a justificação do modo de proceder, assumindo as respectivas responsabilidades.”[11]

Como diz Flávio Dino, “A independência dos Juízes não é submetida somente a ameaças vindas de fora da instituição judiciária. Pressões internas, oriundas dos órgãos de cúpula do Poder, também podem comprometer a imparcialidade que se almeja como fator de legitimação das decisões judiciais. Esta possibilidade de subordinação pode concretizar-se por intermédio de interferências diretas no ato de julgar — invadindo-se a esfera competencial do Juiz de primeira instância — ou por métodos indiretos — como o mau uso do poder administrativo para impelir ao alinhamento eventuais dissidentes dos padrões estabelecidos pelos órgãos de cúpula. Atualmente no Brasil, a primeira hipótese é de difícil realização. Quanto à segunda, o mesmo não pode ser dito. Além da ‘natural’ tendência de todas as instituições a moldar consciências e comportamentos, as chances de ocorrerem tentativas de ‘enquadramento’ mediante desvio de poder administrativo são significativas, à vista da monopolização das competências desta natureza pelos Tribunais.”[12]

No mesmo sentido, Fábio Konder Comparato: “…dizem-se independentes os magistrados, quando não há subordinação hierárquica entre eles, não obstante a multiciplidade de instâncias e graus de jurisdição. Com efeito, ao contrário da forma como é estruturada a administração pública, os magistrados não dão nem recebem ordens, uns dos outros.”[13]

Essa independência do juiz, para proferir suas decisões, sem qualquer tipo de pressão interna, acaba, por via reflexa, representando a efetivação da noção da independência institucional da magistratura como garante do Estado de Direito, ainda mais quando se tenha à vista o Estado Social e os seus conseqüentes direitos humanos de segunda geração (os direitos sociais).


Quando a estrutura judiciária “determina” ao juiz que profira decisão em um certo sentido tem-se a completa desconsideração de toda a evolução da humanidade no sentido da construção de um Estado de Direito, consubstanciando-se, portanto, em ato que sequer precisa ser declarado nulo para que não tenha eficácia, pois despido, naturalmente, de qualquer autoridade. Todo atentado à independência do juiz é nulo de pleno direito, não precisando ser, judicialmente, declarado como tal, para que o juiz possa rechaçá-lo.

Se imaginássemos que, diante de um ato externo ou interno de agressão à sua independência, o juiz tivesse que se socorrer de uma tutela jurisdicional, para preservar sua garantia institucional, seria o mesmo que dizer que a independência, em concreto, não existe, pois admitiríamos a hipótese de que ela poderia ser afastada “ad nutum” por qualquer tipo de ato arbitrário ou, ainda, advindo de coação política ou econômica.

Assim, incontestável que o juiz possui a autotutela de sua garantia da independência e, pelos motivos já expostos, tem o dever de exercê-la. Isto significa que a garantia somente pode ser questionada, em processo regular, que se desenvolva com respeito ao amplo contraditório, quando se alegue que o juiz, em nome da independência, exorbita os limites do ordenamento jurídico, para obtenção de algum benefício pessoal. De todo modo, mesmo nesta situação o resultado nunca poderá ser a “determinação” de que o juiz profira uma decisão em certo sentido. Ou seja, em termos recursais, o efeito da decisão de segundo grau é substituir a decisão de primeiro grau. Em termos disciplinares, o efeito é a aplicação de sanções ao juiz. Em nenhuma das duas hipóteses se tem como resultado, portanto, a imposição ao juiz de um certo modo de dizer o direito.

Em suma, nenhum cidadão ou organização privada, nenhum governante ou instituição pública, nenhum poder constituído ou seus membros, pode impor ao juiz um modo de dizer o direito, pois isto contraria a própria essência na qual se funda o Estado democrático de direito, como visto acima, e também porque interfere naquilo que é próprio de todo ser humano: a sua consciência.

Nem por meio do sistema recursal próprio, nem mediante a utilização de meios impróprios de modificação do julgado, como a ação rescisória, o mandado de segurança, possível é que alguém, ou alguma instituição, determine ao juiz qual deva ser seu julgamento. Isto se torna ainda mais impossível, quando da utilização da correição parcial, expediente decidido monocraticamente pelo juiz corregedor regional, depois de provocação da parte contra ato não reformável por recurso próprio, que constitua error in procedendo e traga manifesto prejuízo aos litigantes, porque decorrente da violação do devido processo legal por parte do magistrado de primeira instância. Nem por meio de decisão em correição parcial, repita-se, é possível conceber que um juiz diga ao outro qual deve ser sua decisão, ainda mais porque este tipo de procedimento, de caráter administrativo, se dá sem contraditório e sem previsão de qualquer espécie de recurso para o magistrado.

O juiz, insista-se, não é independente para fazer o que bem entende. Ele responde por seus atos e omissões, tendo, portanto, sempre graves responsabilidades. Mas, sua atuação não é mecânica. Suas decisões expressam sentimentos e valores, respeitando sempre os limites do direito e o dever de fundamentação. Sua conduta é determinada pelo direito. Seu soberano é a sociedade. Seus valores supremos: o humanismo, a justiça e a ética.

A defesa de sua independência, pelo juiz, é, portanto, fator essencial para a preservação do Estado democrático de direito, que está sempre ameaçado por interesses particulares de toda ordem, já que, como é sabido, as instituições podem ser perfeitas, já os homens…

Diante de uma tal ameaça o juiz, por conseguinte, tem o dever de se rebelar, de reagir, de não ceder, de reafirmar, enfim, a sua independência, pois é isto que a humanidade, que debruçou sobre o direito toda a regulação das relações de poder, espera dele. Um juiz que, por conveniência, se curva ao entendimento de outros juízes, proferindo decisões contrárias à sua convicção jurídica; que, por comodidade, aplica uma lei que fere a Constituição ou algum preceito dos direitos humanos ou direitos fundamentais; que, por receio de qualquer natureza ou medo, acaba cumprindo uma “ordem” ilegal; ou, que, meramente, se abstém de “denunciar” as ameaças que sofra com relação à sua independência; que não exerce com liberdade e responsabilidade as suas atribuições, deixa de ser digno da função que exerce, perde, enfim, na essência, a designação de um autêntico magistrado e quem perde com isto é toda sociedade.


Em certa medida, fora esta, ademais, uma das principais preocupações dos juízes trabalhistas, reunidos no VIII Congresso Nacional dos Magistrados do Trabalho, no qual firmou-se posição no sentido de que: "Os juízes devem lutar pela defesa de suas prerrogativas constitucionais e pelo exercício independente e imparcial da jurisdição, que são garantias da plena cidadania."[14]

Em outras palavras, um juiz somente pode ser repreendido quando descumpre o dever de lutar por sua independência ou porque fere, ele próprio, a regra da independência (artigos 312 e ss. do Código Penal).

Lembre-se, a propósito, que a própria ONU, em 1994, aprovou a Recomendação número 41. Como explica Dalmo de Abreu Dallari, “Por esta resolução, a Comissão de Direitos Humanos decidiu recomendar a criação do cargo de relator especial sobre a independência do Poder Judiciário. Isso quer dizer que se considerava tão importante que houvesse o Judiciário independente, reconhecia-se que isso era indispensável para a garantia dos direitos, e por isso foi designado um Relator Especial permanente.”

Esclarece o mesmo autor:

“A Comissão de Direitos Humanos da ONU, que funciona em Genebra, fez esta recomendação ao Ecosoc — o Conselho Econômico e Social — e o Conselho aprovou a proposta. E desde então existe este relator. Anualmente ele apresenta o seu relatório, mas permanentemente faz o acompanhamento da situação da independência da magistratura no mundo. E é interessante verificar — eu sintetizo aqui em três itens — os objetivos que foram atribuídos a este Relator Especial: 1) investigar denuncias sobre restrições à indepen­dência da magistratura e informar o Conselho Econômico e Social sobre suas conclusões; 2) Identificar e registrar atentados à independência dos magis­trados, advogados e pessoal auxiliar da Justiça, identificar e registrar progres­sos realizados na proteção e fomento dessa independência; 3) fazer recomen­dações para aperfeiçoar a proteção do Judiciário e da garantia dos direitos pelo Judiciário.

Isso está implantado desde 1994 e, como uma seqüência procurando reforçar esse trabalho e dar publicidade a ele, a Comissão Internacional de Juristas, uma ONG com sede em Genebra que assessora a ONU para Direitos Humanos, no ano de 1971 , criou um Centro para a Independência de Juizes e Advogados. Aliás, nesse caso juízes não é a expressão mais adequada. Melhor seria magistrados, porque tanto na Itália quanto na França, a magistratura incluiu também o Ministério Público. Então é o Centro para a Independência da Magistratura e dos Advogados.

Um dado importante é que anualmente a Comissão Internacional de Juristas publica uni relatório sobre a situação da independência de magistrados e advogados 110 mundo. O último publicado foi sobre o ano de 1999 e nele constam vários casos de ofensas, agressões, restrições a magistrados e advogados no Brasil.”[15]

Assim, somados todos esses fatores, torna-se inevitável que um juiz, que tenha a consciência do importante papel que cumpre na sociedade, que não se deixe levar por nenhum tipo de influência, externa ou interna, para proferir, com independência, as suas decisões. A defesa de sua independência constitui, como se pôde inferir, imprescindível dever do magistrado. Afinal, “o Juiz, no seu juízo, não tem amigos. Nem inimigos. Nem superiores, nem subordinados. Tem, isso sim, de buscar o justo, aplicando a norma. O que se almeja, na decisão judicial, é a satisfação de interesses individuais lesados. Pelo Estado ou por outro indivíduo”.[16]


[1]. Curso de Direito Constitucional. Manoel Gonçalves Ferreira Filho – Saraiva, 1987, páginas 244/45

[2]. O artigo 42 da Lei Orgânica da Magistratura – Lei Complementar 35-1979 – assegura que: “Salvo os casos de impropriedade ou excesso de linguagem, o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir.


[3]. Independência da Magistratura e Direitos Humanos – http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/dalmodallari/dallari21.html.

[4]. Décio Saes, A Formação do Estado Burguês no Brasil – 1888-1981 – , Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985, p. 123.

[5]. Ob. cit., p. 123.

[6]. Dalmo de Abreu Dallari, Independência da Magistratura e Direitos Humanos – http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/dalmodallari/dallari21.html.

[7]. Texto citado acima.

[8]. Riccardo MONACO, Droit et justice, mélanges en l’honneur de Nicolas VALTICOS, sous la direction de René-Jean DUPUY, Editions A. Pedone, Paris, p. 27.

[9]. « Il n’est aucune société démocratique sans une indépendance de la magistrature : elle est la garantie d’une effectivité des normes protectrices des droits essentiels de l’homme. » (“ Recherche sur les Conflits du Travail »), thèse pour le doctorat en droit, à l’Université de Paris, p. 735.

[10]. “O Poder Judiciário no regime democrático, Revista Estudos Avançados, 18 (51), 2004, p. 152.

[11] Piero Calamandrei – in Eles os juízes vistos por nós os advogados, apud Dalmo de Abreu Dallari, O poder dos Juízes, Saraiva, 1996, página 59.

[12]. “O Conselho Nacional de Justiça: missões e primeiros passos”, artigo publicado originalmente em 22 de agosto de 2005 no site da Editora Impetus http://www.editoraimpetus.com.br.

[13]. “O Poder Judiciário no regime democrático”, Revista de Estudos Avançados 18 (51), 2004, p. 151.

[14]. Item 1., da Carta de Fortaleza.

[15]. Texto citado acima.

[16] Michel Temmer, in Constituição e Política São Paulo: Malheiros, 1999, página 77.

Autores

  • Brave

    é juiz do trabalho, titular da 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí (SP), livre-docente em Direito do Trabalho pela USP e membro da Associação Juízes para a Democracia.

  • Brave

    é juiz do Trabalho Substituto na 2ª Região, mestre em direito do trabalho pela USP, diretor de Direitos e Prerrogativas da Anamatra — Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho — para o biênio 2005-07.

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