Papel institucional

MP pode pleitear tratamento médico a um único paciente

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14 de junho de 2006, 14h16

O Ministério Público do Rio Grande do Sul teve reconhecida a sua legitimidade para pleitear a realização imediata de exame médico em favor de um único paciente. A decisão é da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça e vai em sentido contrário à jurisprudência predominante na Corte.

Os ministros decidiram com base no artigo 227 da Constituição Federal, que prevê que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à saúde”.

O Ministério Público gaúcho conseguiu, em primeira instância, tutela antecipada para que o estado do Rio Grande do Sul arcasse com as despesas de um exame de endoscopia digestiva em favor de Ernesto Andrés Vargas Villanueva. Segundo a decisão, o descumprimento da determinação acarretaria o seqüestro dos valores necessários à realização do exame.

O estado recorreu ao Tribunal de Justiça gaúcho, que acolheu o recurso por entender que o MP não é parte legítima para propor Ação Civil Pública postulando, em nome próprio, direitos individuais alheios.

O Ministério Público apresentou recurso ao Superior Tribunal de Justiça. Sustentou que entre as suas incumbências está a de promover, privativamente, o inquérito civil e a Ação Civil Pública para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e a outros interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos.

Além disso, alegou que a Constituição Federal deu ao MP a legitimidade para defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis.

O ministro Luiz Fux, relator do recurso no STJ, destacou que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança o direito à saúde. Portanto, o Ministério Público tem a incumbência de promover a defesa dos interesses individuais indisponíveis, podendo, para tanto, exercer outras atribuições previstas em lei, desde que compatíveis com sua finalidade institucional.

“O direito à saúde, insculpido na Constituição Federal é direito indisponível, em função do bem comum maior a proteger, derivado da própria forma impositiva dos preceitos e ordem pública que regulam a matéria”, concluiu.

Resp 738.782

Leia a íntegra da decisão

RECURSO ESPECIAL Nº 738.782 – RS (2005⁄0053686-1)

RELATOR : MINISTRO LUIZ FUX

RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

RECORRIDO: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

PROCURADOR : MARCOS TUBINO BORTOLAN E OUTROS

INTERES.: E A V V

REPR.POR: ANTONIO ORBERTO VARGAS SANCHEZ

EMENTA

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO A MENOR. SAÚDE. DIREITO INDIVIDUAL INDISPONÍVEL. ART. 227 DA CF⁄88. LEGITIMATIO AD CAUSAM DO PARQUET. ART. 127 DA CF⁄88.

1. Recurso especial interposto contra acórdão que decidiu pela ilegitimidade ativa do Ministério Público para pleitear, via ação civil pública, em favor de menor, o fornecimento de medicamento.

2. Deveras, o Ministério Público está legitimado a defender os interesses transindividuais, quais sejam os difusos, os coletivos e os individuais homogêneos.

3. É que a Carta de 1988, ao evidenciar a importância da cidadania no controle dos atos da administração, com a eleição dos valores imateriais do art. 37, da CF como tuteláveis judicialmente, coadjuvados por uma série de instrumentos processuais de defesa dos interesses transindividuais, criou um microsistema de tutela de interesses difusos referentes à probidade da administração pública, nele encartando-se a Ação Popular, a Ação Civil Pública e o Mandado de Segurança Coletivo, como instrumentos concorrentes na defesa desses direitos eclipsados por cláusulas pétreas.

4. Deveras, é mister conferir que a nova ordem constitucional erigiu um autêntico ‘concurso de ações’ entre os instrumentos de tutela dos interesses transindividuais e, a fortiori, legitimou o Ministério Público para o manejo dos mesmos.

5. Legitimatio ad causam do Ministério Público à luz da dicção final do disposto no art. 127 da CF, que o habilita a demandar em prol de interesses indisponíveis.

6. Sob esse enfoque, assento o meu posicionamento na confinação ideológica e analógica com o que se concluiu no RE n.º 248.889⁄SP para externar que a Constituição Federal dispõe no art. 227 que: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” Conseqüentemente a Carta Federal outorgou ao Ministério Público a incumbência de promover a defesa dos interesses individuais indisponíveis, podendo, para tanto, exercer outras atribuições previstas em lei, desde que compatível com sua finalidade institucional (CF, arts. 127 e 129).


7. O direito à saúde, insculpido na Constituição Federal é direito indisponível, em função do bem comum, maior a proteger, derivado da própria força impositiva dos preceitos de ordem pública que regulam a matéria.

8. Outrossim, a Lei n. 25, inciso IV, letra “a” da Lei 8.625⁄93, consubstancia a autorização legal a que se refere o art. 6.º do CPC, configurando a legalidade da legitimação extraordinária cognominada por Chiovenda como “substituição processual”.

9. Impõe-se, contudo, ressalvar que a jurisprudência predominante do E. STJ entende incabível a ação individual capitaneada pelo MP (Precedentes: REsp n.º 706.652⁄SP, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 18⁄04⁄2005; REsp n.º 664.139⁄RS, Segunda Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 20⁄06⁄2005; e REsp n.º 240.033⁄CE, Primeira Turma, Rel. Min. José Delgado, DJ de 18⁄09⁄2000).

10. Recurso especial provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da PRIMEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Teori Albino Zavascki, Denise Arruda, José Delgado e Francisco Falcão votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 21 de março de 2006 (Data do Julgamento)

MINISTRO LUIZ FUX

Relator

RECURSO ESPECIAL Nº 738.782 – RS (2005⁄0053686-1)

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO LUIZ FUX (Relator): Trata-se de recurso especial interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, com fulcro no art. 105, inciso III, alínea, “a”, da Carta Maior, no intuito de ver reformado acórdão prolatado pelo E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, sob o fundamento de o mesmo ter malferido o disposto nos arts. 6.º e 267, VI, do Código de Processo Civil e 25, inciso IV, alínea “a” da Lei 8.625⁄93.

Noticiam os autos que o ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, ora recorrido, interpôs recurso de agravo de instrumento (CPC, art. 522) contra decisão do juízo de primeiro grau à fl. 28, que, nos autos de ação civil pública promovida em seu desfavor pelo ora recorrente, deferiu a antecipação da tutela pretendida, ordenando realização de exame tipo endoscopia digestiva em favor de ERNESTO ANDRES VARGAS VILLANUEVA, internado na Santa Casa de Misericórdia, sob pena de seqüestro dos valores necessários à realização do exame.

O i. Des. relator do feito na origem, negou seguimento ao agravo de instrumento interposto, extinguindo o feito sem julgamento do mérito, sob o fundamento de não ser o Ministério Público parte legítima para a propositura de ação civil pública postulando em nome próprio, direitos individuais alheios, com fim de garantir tratamento médico urgente à cidadão.

A Quarta Câmara Cível do E. TJ⁄RS, por unanimidade de votos dos seus integrantes, negou provimento a agravo regimental manejado pelo ora recorrente em face da decisão monocrática proferida, restando assim ementado o aresto então prolatado:

“AGRAVO INTERNO. DECISÃO MONOCRÁTICA (AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA – TRATAMENTO MÉDICO. INTERNAÇÃO HOSPITALAR,. REALIZAÇÃO DE EXAME. ENDOSCOPIA DIGESTIVA ALTA.. AÇÃO ORDINÁRIA C⁄C TUTELA ANTECIPADA. DEFERIMENTO NA ORIGEM. INTERPOSIÇÃO DA AÇÃO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO.

POSTULAÇÃO DE DIREITO INDIVIDUAL EM NOME PRÓPRIO. IMPOSSIBILIDADE. ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. INTELIGÊNCIA DO ART. 6º, DO CPC. AGRAVO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO. INCABIMENTO. EXTINÇÃO DO PROCESSO. ART. 267, VI DO CPC, NA ORIGEM.

NEGADO SEGUIMENTO AO AGRAVO DE INSTRUMENTO.EXTINÇÃO DO PROCESSO NA ORIGEM.) INTELIGÊNCIA E APLICAÇÃO DO ARTIGO 557, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (COM A ALTERAÇÃO DA LEI Nº 9.756, DE 17.12.1998). JULGAMENTO QUE SE MANTÉM.

AGRAVO NÃO PROVIDO.” (fls. 91)

O Ministério Público Estadual, irresignado com o teor do v. acórdão prolatado, interpôs o recurso especial que ora se apresenta, sustentando a contrariedade dos arts. 267, VI, do CPC e 25, inciso IV, letra “a” da Lei 8.625⁄93, que assim dispõem:

“Art. 267.Extingue-se o processo, sem julgamento do mérito:

(…)

VI – quando não concorrer qualquer das condições da ação, como possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual.”

“Art. 25. Além das funções previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei Orgânica e em outras leis, incumbe, ainda, ao Ministério Público:

I – propor ação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais, em face à Constituição Estadual;

II – promover a representação de inconstitucionalidade para efeito de intervenção do Estado nos Municípios;


III – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

IV – promover o inquérito civil e a ação civil pública, na forma da lei:

a) para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, e a outros interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos. (…)”

Aduz o Parquet, em sua irresignação recursal, que com o advento da Constituição Federal vigente, ao definir o Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, em seu art. 127, caput, conferiu ao mesmo a legitimidade para a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Ressalta ainda que nos termos do art. 129 da Carta Constitucional restou-lhe conferido dever de zelar pelo direito à saúde.

O ora recorrido apresentou contra-razões ao apelo nobre, às fls.123⁄133.

Na origem, em exame prévio de admissibilidade, tanto o presente recurso especial, quanto o recurso extraordinário também manejado pelo ora recorrente (fls.149⁄150), restaram admitidos.

É o relatório.

RECURSO ESPECIAL Nº 738.782 – RS (2005⁄0053686-1)

EMENTA

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO A MENOR. SAÚDE. DIREITO INDIVIDUAL INDISPONÍVEL. ART. 227 DA CF⁄88. LEGITIMATIO AD CAUSAM DO PARQUET. ART. 127 DA CF⁄88.

1. Recurso especial interposto contra acórdão que decidiu pela ilegitimidade ativa do Ministério Público para pleitear, via ação civil pública, em favor de menor, o fornecimento de medicamento.

2. Deveras, o Ministério Público está legitimado a defender os interesses transindividuais, quais sejam os difusos, os coletivos e os individuais homogêneos.

3. É que a Carta de 1988, ao evidenciar a importância da cidadania no controle dos atos da administração, com a eleição dos valores imateriais do art. 37, da CF como tuteláveis judicialmente, coadjuvados por uma série de instrumentos processuais de defesa dos interesses transindividuais, criou um microsistema de tutela de interesses difusos referentes à probidade da administração pública, nele encartando-se a Ação Popular, a Ação Civil Pública e o Mandado de Segurança Coletivo, como instrumentos concorrentes na defesa desses direitos eclipsados por cláusulas pétreas.

4. Deveras, é mister conferir que a nova ordem constitucional erigiu um autêntico ‘concurso de ações’ entre os instrumentos de tutela dos interesses transindividuais e, a fortiori, legitimou o Ministério Público para o manejo dos mesmos.

5. Legitimatio ad causam do Ministério Público à luz da dicção final do disposto no art. 127 da CF, que o habilita a demandar em prol de interesses indisponíveis.

6. Sob esse enfoque, assento o meu posicionamento na confinação ideológica e analógica com o que se concluiu no RE n.º 248.889⁄SP para externar que a Constituição Federal dispõe no art. 227 que: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Conseqüentemente a Carta Federal outorgou ao Ministério Público a incumbência de promover a defesa dos interesses individuais indisponíveis, podendo, para tanto, exercer outras atribuições previstas em lei, desde que compatível com sua finalidade institucional (CF, arts. 127 e 129).

7. O direito à saúde, insculpido na Constituição Federal é direito indisponível, em função do bem comum, maior a proteger, derivado da própria força impositiva dos preceitos de ordem pública que regulam a matéria.

8. Outrossim, a Lei n. 25, inciso IV, letra “a” da Lei 8.625⁄93, consubstancia a autorização legal a que se refere o art. 6.º do CPC, configurando a legalidade da legitimação extraordinária cognominada por Chiovenda como “substituição processual”.

9. Impõe-se, contudo, ressalvar que a jurisprudência predominante do E. STJ entende incabível a ação individual capitaneada pelo MP (Precedentes: REsp n.º 706.652⁄SP, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 18⁄04⁄2005; REsp n.º 664.139⁄RS, Segunda Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 20⁄06⁄2005; e REsp n.º 240.033⁄CE, Primeira Turma, Rel. Min. José Delgado, DJ de 18⁄09⁄2000).

10. Recurso especial provido.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO LUIZ FUX (Relator): Prequestionada a matéria federal ventilada e restando devidamente preenchidos os demais pressupostos de admissibilidade recursal, revela-se merecedor de conhecimento o presente apelo nobre.


Merecem acolhida as pretensões do recorrente.

É de sabença que o art. 227, caput, da Constituição Federal de 1988 garante à criança e ao adolescente absoluta prioridade quanto à garantia do direito à saúde, senão vejamos:

“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (grifo nosso)

Muito embora a matéria pareça gravitar única e exclusivamente em sede constitucional, o que retiraria a competência deste Superior Tribunal de Justiça para aferir a legitimidade da decisão recorrida no âmbito do recurso especial, a realidade é que a questão vem traçada na legislação nos arts. 267, VI, do CPC e 25, inciso IV, letra “a” da Lei 8.625⁄93, que assim dispõem:

“Art. 267.Extingue-se o processo, sem julgamento do mérito:

(…)

VI – quando não concorrer qualquer das condições da ação, como possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual.”

“Art. 25. Além das funções previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei Orgânica e em outras leis, incumbe, ainda, ao Ministério Público:

I – propor ação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais, em face à Constituição Estadual;

II – promover a representação de inconstitucionalidade para efeito de intervenção do Estado nos Municípios;

III – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

IV – promover o inquérito civil e a ação civil pública, na forma da lei:

a) para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, e a outros interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos. (…)”

Deveras, a controvérsia a ser dirimida nos presentes autos cinge-se à legitimidade do Ministério Público para pleitear em ação civil pública a determinação imediata de realização de exame médico (endoscopia digestiva) em favor de um único paciente.

Como cediço, a ação civil pública está centrada na violação a direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Hugo Nigro Mazilli, discorrendo sobre o tema da legitimidade do Ministério Público, afirma:

“A possibilidade de o Ministério Público agir como autor no processo civil supõe autorização taxativa na lei, salvo as hipóteses de legitimação genérica nas ações civis públicas em defesa de interesses transindividuais.” (“A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo”, 16.ª ed., p. 90)

É que a Carta de 1988, ao evidenciar a importância da cidadania no controle dos atos da administração, com a eleição dos valores imateriais do art. 37, da CF como tuteláveis judicialmente, coadjuvados por uma série de instrumentos processuais de defesa dos interesses transindividuais, criou um micro-sistema de tutela de interesses difusos referentes à probidade da administração pública, nele encartando-se a Ação Popular, a Ação Civil Pública e o Mandado de Segurança Coletivo, como instrumentos concorrentes na defesa desses direitos eclipsados por cláusulas pétreas.

Deveras, é mister conferir que nova ordem constitucional erigiu um autêntico ‘concurso de ações’ entre os instrumentos de tutela dos interesses transindividuais e, a fortiori, legitimou o Ministério Público para o manejo dos mesmos.

In casu, segundo a jurisprudência predominante deste Sodalício, a hipótese não se amolda a interesse transindividual a legitimar a atuação do Ministério Público, mas apenas interesse material particular de menor. As decisões desta Corte neste sentido tem assentado que não se coaduna com a ação civil pública, objeto mediato individual, mas tão-somente transindividual. À guisa de exemplo, vale conferir:

“PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA: LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO – NULIDADE ABSOLUTA NÃO ARGÜIDA – LIMITES DO RECURSO ESPECIAL.

1. O prequestionamento é exigência indispensável ao conhecimento do recurso especial, fora do qual não se pode reconhecer sequer as nulidades absolutas.

2. A mais recente posição doutrinária admite sejam reconhecidas nulidades absolutas ex officio, por ser matéria de ordem pública. Assim, se ultrapassado o juízo de conhecimento, por outros fundamentos, abre-se a via do especial (Súmula 456⁄STF).

3. Hipótese em que se conhece do especial por violação do art. 535, II, do CPC e por negativa de vigência ao art. 11, V, da Lei 9.394⁄96, ensejando o reconhecimento ex officio da ilegitimidade do Ministério Público para, via ação civil pública, defender interesse individual de menor.


4. Na ação civil pública atua o parquet como substituto processual da sociedade e, como tal, pode defender o interesse de todas as crianças do Município para terem assistência educacional.

5. Ilegitimidade que se configura a partir da escolha de apenas dois menores para proteger, assumindo o Ministério Público papel de representante e não de substituto processual.

6. Recurso especial parcialmente provido.” (REsp n.º 706.652⁄SP, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 18⁄04⁄2005)

“PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA: LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO – NULIDADE ABSOLUTA NÃO ARGÜIDA – LIMITES DO RECURSO ESPECIAL.

(…) 3. Hipótese em que se conhece do especial por violação do art. 535, II, do CPC e por negativa de vigência ao art. 11, V, da Lei 9.394⁄96, ensejando o reconhecimento ex officio da ilegitimidade do Ministério Público para, via ação civil pública, defender interesse individual de menor.

4. Na ação civil pública atua o parquet como substituto processual da sociedade e, como tal, pode defender o interesse de todas as crianças do Município para terem assistência educacional.

5. Ilegitimidade que se configura a partir da escolha de apenas dois menores para proteger, assumindo o Ministério Público papel de representante e não de substituto processual.

6. Recurso especial provido.” (REsp n.º 466.861⁄SP, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ de 29⁄11⁄2004)

“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. MENOR.CARENTE.

1. Na esteira do artigo 129 da Constituição Federal, a legislação infraconstitucional, inclusive a própria Lei Orgânica, preconiza que o Ministério Público tem legitimidade ativa ad causam para propor ação civil pública para a proteção de interesses difusos e coletivos, como regra. Em relação aos interesses individuais, exige que também sejam indisponíveis e homogêneos. No caso em exame, pretende-se que seja reconhecida a sua legitimidade para agir como representante de pessoa individualizada, suprimindo-se o requisito da homogeneidade.

2. O interesse do menor carente deve ser postulado pela Defensoria Pública, a quem foi outorgada a competência funcional para a “orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados na forma do art. 5º, LXXIV”. Não tem o Ministério Público legitimidade para propor ação civil pública, objetivando resguardar interesses individuais, no caso de um menor carente.

3. Recurso especial improvido.” (REsp n.º 664.139⁄RS, Segunda Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 20⁄06⁄2005)

A despeito do posicionamento exarado nos recentes julgados, tenho que, à luz da dicção final do art. 127 da Carta Maior, legitimado está o Parquet, a demandar em prol de interesses indisponíveis como o que ora se afigura. Resta assim redigido o referido dispositivo:

“Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.”

Sob esse enfoque, assento o meu posicionamento na confinação ideológica e analógica com o que se concluiu no RE n.º 248.889⁄SP, para externar que a Constituição Federal dispõe no art. 227 que:

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Conseqüentemente a Carta Federal outorgou ao Ministério Público a incumbência de promover a defesa dos interesses individuais indisponíveis, podendo, para tanto, exercer outras atribuições previstas em lei, desde que compatível com sua finalidade institucional (CF, arts. 127 e 129).

O direito à saúde, insculpido na Constituição Federal é direito indisponível, em função do bem comum, maior a proteger, derivado da própria força impositiva dos preceitos de ordem pública que regulam a matéria.

Outrossim, a Lei n. 25, inciso IV, letra “a” da Lei 8.625⁄93, consubstancia a autorização legal a que se refere o art. 6.º do CPC, configurando a legalidade da legitimação extraordinária cognominada por Chiovenda como “substituição processual”.

Ex positis, DOU PROVIMENTO ao presente recurso especial.

É como voto.

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