Caso Richthofen

É ilegal captar conversa entre cliente e advogado, diz MPF

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13 de junho de 2006, 12h09

A conversa entre Suzane von Richthofen e seus advogados, “captada clandestinamente” pelo programa Fantástico, é prova ilícita e deve ser retirada do processo. Essa é a opinião do Ministério Público Federal, em parecer do subprocurador-geral da República Jair Brandão de Souza Meira no pedido de Habeas Corpus ajuizado pela defesa de Suzane no Superior Tribunal de Justiça.

Para o MPF, a fita que contém a gravação deve ser retirada do processo. A defesa entrou com recurso contra decisão liminar do Tribunal de Justiça de São Paulo, que manteve a fita nos autos. O Ministério Público Federal acolheu o argumento dos advogados de Suzane, de que a gravação em que a ré aparece conversando com seu advogado é prova ilícita.

Na opinião do representante do MPF, embora tenha concordado em conceder a entrevista ao Fantástico, a conversa que deveria ser reservada entre ela e seus advogados foi captada clandestinamente. O subprocurador-geral explica que a comunicação entre advogado e cliente está resguardada pela Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia) e pela Constituição Federal. Com estes argumentos ele defende a concessão do Habeas Corpus (leia abaixo o parecer).

Segundo ele, o sigilo das comunicações dos advogados é direito “corolário da garantia constitucional à ampla defesa, gravada no inciso LV e, especialmente quanto aos acusados por crimes dolosos contra a vida, no inciso XXXVIII, letra “a”, ambos do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988”.

Duplo homicídio

Suzane Richthofen também entrou com agravo de instrumento no STJ contra decisão do TJ paulista, que negou recursos especiais para desqualificar os crimes pelos quais ela é acusada. Assim como Christian e Daniel Cravinhos, ela foi denunciada por duplo homicídio triplamente qualificado (motivo torpe, meio cruel e impossibilidade de defesa das vítimas). Na denúncia, ela também responde por fraude processual.

Ao ver negado seu pedido, Suzane entrou com embargos declaratórios e embargos infringentes. Contra este último, rejeitado por unanimidade, a defesa interpôs um outro recurso especial, sustentando violação aos artigos 347 do Código Penal e 408 do Código de Processo Penal, insistindo no afastamento da denúncia de fraude processual.

Para Jair Brandão, o agravo não deve ser conhecido pelo STJ. Sobre o exame do afastamento da acusação do crime de fraude processual, o subprocurador-geral explica que o recurso especial é incompatível, pois implicaria revolvimento de fatos e provas. O Ministério Público alega também que a defesa não apresentou todas as peças processuais ao interpor o agravo no STJ.

Leia o parecer

Nº 4.836 — JM (2006/0115249-9)


HABEAS CORPUS Nº 59967/SP

IMPETRANTE : MÁRIO DE OLIVEIRA FILHO E OUTRO

IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

PACIENTE : SUZANE LOUISE VON RICHTHOFEN (PRESA)

RELATOR : MINISTRO NILSON NAVES – SEXTA TURMA

Recebido no gabinete em 08/06/06.

HABEAS CORPUS. Via de regra, não é cabível habeas corpus contra decisão que denega liminar em outro writ, salvo casos excepcionais de flagrante ilegalidade. Gravação clandestina de conversa privada entre cliente e seu advogado. Estatuto da Advocacia. Direito à comunicação. Sigilo profissional. Corolário da ampla defesa, constitucionalmente garantida. Ilicitude.

Parecer pela concessão da ordem, determinando-se o desentranhamento da fita de gravação dos autos da ação penal.

Trata-se de habeas corpus contra decisão proferida pelo Desembargador José Damião Pinheiro Machado Cogan, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que denegou a liminar pleiteada no HC n.º 971.732.3/8-00, impetrado em favor de SUZANE LOUISE VON RICHTHOFEN, objetivando seja retirada dos autos da ação penal a fita de gravação do programa “Fantástico”, da Rede Globo de Televisão, considerada pelos impetrantes prova ilícita.

2. Sustenta a defesa que o constrangimento ilegal é manifesto, a autorizar o conhecimento do presente mandamus, impetrado contra indeferimento de liminar, pois foi gravada de forma clandestina a conversa privada entre a paciente e seu advogado, destacando-se da impetração:

O artigo 6º da Lei Federal 8.906/94 garante a impossibilidade da interceptação das comunicações do advogado e o artigo 7º, inciso II, garante ser indevassável a conversa entre advogado e cliente, sendo esta acobertada pelo sigilo, pelo caráter reservado e pessoal.

Ora, a ilicitude da prova conseguida pela interceptação espúria da conversa havida entre o defensor e sua cliente, é patente e irrespondível, constituindo-se em prova ilícita.

A Carta Política de 88 determina a impossibilidade da utilização da prova ilícita em qualquer procedimento, quer judicial ou extrajudicial, sob pena de se ferir de morte o devido processo legal.

(…)

Flagrante a vulneração às normas constitucionais e infraconstitucionais com a manutenção da prova ilícita nos autos principais, assim como, inquestionável o constrangimento ilegal imposto pelo indeferimento da liminar diante de gritante situação de violência contra a Paciente, revertendo esse somatório em prejuízos irreversíveis à sua defesa no julgamento perante o 1º Tribunal do Júri de São Paulo, neste momento em pleno andamento.


3. Às fls. 38, o Ministro Relator determinou a remessa dos autos ao Ministério Público Federal para manifestação.

É o que há para relatar.

4. Preliminarmente, cumpre salientar que, via de regra, não é cabível habeas corpus contra indeferimento de liminar em outro writ. Contudo, em casos excepcionais de flagrante ilegalidade admite-se a utilização do remédio heróico para afastar o constrangimento ilegal, como se vê dos seguintes julgados dessa E. Corte Superior:

CRIMINAL. HC. LAVAGEM DE DINHEIRO. PRISÃO PREVENTIVA. WRIT CONTRA ATO DE DESEMBARGADOR. INDEFERIMENTO DE LIMINAR. FLAGRANTE ILEGALIDADE NÃO EVIDENCIADA. ORDEM NÃO CONHECIDA.

I – Não cabe habeas corpus contra indeferimento de liminar, a não ser que reste demonstrada flagrante ilegalidade no ato atacado, sob pena de indevida supressão de instância.

II – Hipótese na qual não restou evidenciada a estreita exceptio, na medida em que o decreto prisional encontra-se devidamente fundamentado no fato dos pacientes residirem em região fronteiriça, revelando a necessidade da custódia como garantia da aplicação da lei penal, em atenção ao art. 312 da Lei Processual Adjetiva e respaldo na jurisprudência desta Corte.

III – Ordem não conhecida.

(HC 54947/MS; HABEAS CORPUS 2006/0035968-3; Relator: Ministro GILSON DIPP (1111); Órgão Julgador: T5 – QUINTA TURMA; Data do Julgamento: 18/04/2006; Data da Publicação/Fonte: DJ 08/05/2006, p. 267)

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. INDEFERIMENTO DE LIMINAR NO WRIT ORIGINÁRIO. MANIFESTA ILEGALIDADE. CABIMENTO DE HABEAS CORPUS PERANTE O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ. PATOLOGIA CONSIDERADA INCOMPATÍVEL COM A VIDA EXTRA-UTERINA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. GESTAÇÃO NO TERMO FINAL PARA A REALIZAÇÃO DO PARTO. ORDEM PREJUDICADA.

1. A via do habeas corpus é adequada para pleitear a interrupção de gravidez fora das hipóteses previstas no Código Penal (art. 128, incs. I e II), tendo em vista a real ameaça à constrição à liberdade ambulatorial, caso a gestante venha a interromper a gravidez sem a autorização judicial.

2. Consoante entendimento desta Corte, é admitida a impetração de habeas corpus contra decisão denegatória de liminar em outro writ quando presente flagrante ilegalidade.

3. Não há como desconsiderar a preocupação do legislador ordinário com a proteção e a preservação da vida e da saúde psicológica da mulher ao tratar do aborto no Código Penal, mesmo que em detrimento da vida de um feto saudável, potencialmente capaz de transformar-se numa pessoa (CP, art. 128, incs. I e II), o que impõe reflexões com os olhos voltados para a Constituição Federal, em especial ao princípio da dignidade da pessoa humana.

4. Havendo diagnóstico médico definitivo atestando a inviabilidade de vida após o período normal de gestação, a indução antecipada do parto não tipifica o crime de aborto, uma vez que amorte do feto é inevitável, em decorrência da própria patologia.


5. Contudo, considerando que a gestação da paciente se encontra em estágio avançado, tendo atingido o termo final para a realização do parto, deve ser reconhecida a perda de objeto da presente impetração.

6. Ordem prejudicada.

(HC 56572/SP; HABEAS CORPUS 2006/0062671-4; Relator: Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA (1128); Órgão Julgador: T5 – QUINTA TURMA; Data do Julgamento: 25/04/2006; Data da Publicação/Fonte: DJ 15/05/2006, p. 273). (Sem grifos nos originais)

5. Quanto à possibilidade de impugnar a inserção de provas ilícitas em procedimento penal pela via do habeas corpus, assim já decidiu o Supremo Tribunal Federal, no HC n.º 80.949-9, DJ de 14/12/01, Relator Ministro Sepúlveda Pertence:

Habeas corpus: cabimento: prova ilícita.

Admissibilidade, em tese, do habeas corpus para impugnar a inserção de provas ilícitas em procedimento penal e postular o seu desentranhamento sempre que, da impetraçãi, possa advir condenação a pena priva de liberdade.

6. No mérito, a pretensão merece ser acolhida.

7. Com efeito, o Estatuto da Advocacia – Lei n.º 8.906/94 -, assim dispõe em seu artigo 7º, inciso II, verbis:

Art. 7º São direitos do advogado:

(…)

II – ter respeitada, em nome da liberdade de defesa e do sigilo profissional, a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, de seus arquivos e dados, de sua correspondência e de suas comunicações, inclusive telefônicas ou afins, salvo caso de busca ou apreensão determinada por magistrado e acompanhada de representante da OAB; (Sem grifos no texto original)

8. Esse direito é corolário da garantia constitucional à ampla defesa, gravada no inciso LV e, especialmente quanto aos acusados por crimes dolosos contra a vida, no inciso XXXVIII, letra “a”, ambos do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988.

9. In casu, embora tenha a paciente concordado em conceder a entrevista ao programa televisivo “Fantástico”, a conversa que haveria de ser reservada entre ela e seus advogados foi captada clandestinamente.

10. A relevância do tema e os elementos existentes nos autos, autorizam a conclusão de que houve violação de um direito garantido tanto por Lei Federal quanto pela Constituição da República, que, vale acrescentar, veda a utilização, no processo, de provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, inc. LVI), tudo de forma a assegurar um processo penal voltado para a busca da verdade real, mas garantidor dos direitos fundamentais dos acusados.

Assim, considerando ilícita a gravação contida na fita que se pretende ver retirada dos autos da ação penal, a ordem deve ser concedida, determinando-se o seu desentranhamento.

Brasília, 12 de junho de 2006.

JAIR BRANDÃO DE SOUZA MEIRA

Subprocurador-Geral da República

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