Nota promissória

CNJ age como se toda resolução sua fosse constitucional

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12 de junho de 2006, 18h21

Ainda que se concorde que possa haver tribunais estaduais que pratiquem abusos administrativos, a rigor de um ordenamento político constitucional que pretenda ser reconhecido como democrático, esses abusos jamais poderiam ser objeto de resoluções administrativas genéricas como as expedidas pelo CNJ.

Deveria o CNJ, se quisesse conquistar alguma simpatia dos tribunais estaduais, agir por meio do devido procedimento administrativo correcional disciplinar legalmente instaurado contra os agentes públicos desertores da legalidade e moralidade administrativa permitindo, primeiro, que o acusado se defenda e, em segundo lugar, evitando o desgaste injusto e indevido da função jurisdicional de segundo grau perante a opinião pública.

Entretanto, não o é que tem feito o CNJ com suas resoluções administrativas que desbordam o âmbito restrito e constitucional de sua natureza jurídica. Por meio desse instrumento administrativo, o CNJ vem agindo livre e autoritariamente como se as duas decisões do STF que lhe garantiram o funcionamento e autoridade para expedir resoluções fossem consideradas como uma nota promissória assinada em branco. Em outras palavras, como se toda resolução expedida pelo órgão goze da presunção absoluta de constitucionalidade. É o mesmo que dizer que o CNJ se tornou o único poder isento de qualquer controle de constitucionalidade e legalidade de seus atos.

Evidentemente o ex-ministro do STF e ex-presidente do CNJ, Nelson Jobim, político que sempre foi e político daqueles que só pensam em mandar, foi o grande executor desse trágico exercício de poder do CNJ, a ponto de os membros do conselho, de regra, decidirem quase sempre de forma unânime, deixando a viva sensação de que seus membros agem levados por um único compromisso ideológico, qual seja a de unificar definitivamente as administrações dos tribunais estaduais.

Exatamente com esse vezo autoritário é que veio a última Resolução 16, para regular as eleições internas nos tribunais estaduais, isso depois de 13 desembargadores de São Paulo que, com assento privativo no chamado Órgão Especial, sentirem-se ameaçados com a possibilidade de vir a ser aplicado o artigo 93, inciso XI, da Constituição Federal que determina que a existência de um Órgão Especial dentro de um tribunal dependa, em primeiro lugar, de delegação do tribunal pleno que, no caso de São Paulo, é constituído por 360 desembargadores e, em segundo lugar, da exata discriminação da competência desse mesmo Órgão especial caso ele venha a ter existência.

Para o leigo, é de todo necessário que ele entenda que o atual Órgão Especial do TJ-SP é formado por 25 desembargadores mais antigos e a estes compete a função maior de decidir questões administrativas internas e jurisdicionais em última instância estadual.

Acontece que esse sistema oligárquico foi extinto pela regra emendada do artigo 93, inciso XI, da Constituição Federal, que estabelece que o governo do tribunal compete ao tribunal pleno. E nem seria possível que não fosse dessa forma, posto que o órgão público político Tribunal de Justiça se constitui e se materializa a partir do colegiado dos desembargadores que o vivifica por meio de suas ações funcionais e jurisdicionais, não havendo muito mais o que dizer da disposição constitucional contida no supra referido preceito.

Os 13 desembargadores que integram o atual Órgão Especial do TJ-SP, por assim não pensarem, obtiveram do CNJ, de imediato, decisão liminar, como se fosse o CNJ, um órgão jurisdicional, suspendendo as eleições para o órgão especial em todos os tribunais do país e 30 dias depois regulando, por meio da Resolução 16, as eleições nos tribunais, resolução esta que é praticamente um espelho do que disseram e pediram os 13 desembargadores.

Enfim, a Resolução 16 mais não fez do que consolidar o governo oligárquico do órgão público Tribunal de Justiça, deixando de lado, talvez propositadamente as duas fundamentais questões acima postas pelo citado artigo 93, XI, da Constituição Federal: (1) A maioria dos 360 desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo concorda que haja um Órgão Especial composto por apenas 25 desembargadores, (2) com competência privativa para decidir questões administrativas e jurisdicionais, ainda que aquelas possam tratar de interesses coletivos de todos os desembargadores ou de ações que digam respeito ao interesse do próprio Estado? É esta a luta surda que se trava nos tribunais estaduais do país.

O governo da maioria ou o continuísmo do governo oligárquico que está aí desde quando instalada a jurisdição de segundo grau no estado e que sobreviveu incólume a Reforma do Judiciário de 1977?

Para esconder essas duas premissas constitucionais inarredáveis, foram elaboradas mirabolantes justificativas jurídicas com o intuito de sustentar o continuísmo.


Daí a Resolução 16, do CNJ, “autorizar” a eleição de desembargadores para as vagas que se abriram no referido órgão a partir do início do ano, mas não tocar na questão da convocação do tribunal pleno para decidir sobre a questão da existência Órgão Especial, como se o artigo 93, inciso XI, da CF, não existisse.

Não é demais dizer que as resoluções do CNJ, em especial essa Resolução 16, retratam o que está acontecendo no ápice do poder no Brasil. Nesse universo cultural em que a ideologia do capital/consumo domina e reduz a compreensão da vida pelo indivíduo aos limites da sua profissão e seu rotineiro lazer, é terreno fértil para germinarem e prosperarem as idéias totalitárias mistificadoras e que fazem com que toda essa lama esparramada pelo partido que está no governo e que cobriu toda a nação seja encarada com extraordinária indiferença pelo homem e eleitor humilde, ou então, até com cinismo, por uma parte significativa dos homens e mulheres votantes deste imenso país.

São “ordens” como esta do CNJ, de cima para baixo, que perpetua a alienação, o comodismo, a anomia, a lisonja, a conivência, estimula a bajulação canina, a existência eterna dos áulicos palacianos e implanta a dominação oligárquica, ou mais precisamente a dominação de grupos e subgrupos, muitas vezes pequenos, mas com uma enorme capacidade para isolar aqueles que se opõem às suas ideologias de dominação, posto que hábeis, versáteis e profissionais na arte de enganar, persuadir falsear e mistificar a realidade.

A Resolução 16 só contribui para que esse estado ilusório de democracia dentro dos tribunais predomine. Para o leigo, parece que ela está impondo um regime administrativo democrático aos tribunais, promovendo a realização de eleições para o Órgão Especial. Ledo engano. Ela está consolidando a existência desse órgão oligárquico mantendo a largo o foco principal da questão que é a participação de todos os desembargadores, órgãos constituintes do Poder Judiciário estadual e únicos legitimados para decidirem sobre o destino político administrativo a ser conferido ao próprio Tribunal de Justiça, no exato princípio exposto pelo artigo 93, inciso XI, da CF.

Sob o aspecto prático, a Resolução 16, colocando em discussão a forma pela qual se dará a eleição para o Órgão Especial, desvia os olhos dos desembargadores para o fato importante, histórico e decisivo que é a sua própria autonomia funcional, expressa no seu direito constitucional de decidir, antes de tudo e já, sobre as duas premissas acima colocadas.

Chegam a firmar alguns líderes sem nenhum constrangimento que essa questão da convocação do Pleno para decidir sobre a permanência ou existência do Órgão Especial é um tema que já deu o que tinha que dar e que tal discussão perdeu a sua importância; ou então a afirmação que revela a inteira subserviência do seu autor, ao dizer que a Resolução do CNJ poderia ter sido pior, como se não existisse mais nada a ser feito.

Isso porque entendem estes pragmáticos que afinal de contas já conseguimos pelos menos eleger seis desembargadores que serão nossos representantes perante o Órgão Especial. Desculpe-me, mas esse raciocínio é risível, para não escrever outro adjetivo mais grosseiro. Como pode o desembargador eleger seu par como seu representante no Órgão Especial se ele próprio e o eleito formam e constituem o próprio tribunal? Que história é essa de um órgão colegiado máximo do Poder Judiciário estadual se reunir para eleger representantes no Órgão Especial?

Que história é essa do Tribunal de Justiça se fazer representar dentro do Órgão Especial? Isso só vem a demonstrar o autoritarismo dessa Resolução 16 e que os membros do CNJ não refletiram um momento sequer sobre a diferença jurídica ontológica entre representação e delegação. Os desembargadores são os únicos e legítimos detentores do poder administrativo e jurisdicional no estado federado e só eles podem, se quiserem, delegar ou não esses poderes a um Órgão Especial, ou qualquer outro órgão interno ao tribunal.

A delegação implica em que o desembargador abra mão do seu poder de decidir, transferindo-o para outro órgão, coisa absolutamente diferente de representação política. Por isso que delegação exige deliberação em sessão pública aberta com a oitiva de todos os desembargadores que queiram se manifestar, ou seja, só há delegação por ato de vontade própria do órgão colegiado, expressa na decisão da maioria.

Já na representação política não há delegação, mas apenas o direito do representante falar em nome do representado, coisa que é impossível acontecer sem antes o tribunal pleno, formado por todos os desembargadores decidir, por meio da sua maioria, que abrem mão do poder e o delegam a um órgão menor. Primeiro a delegação ao órgão menor, depois a representação dentro desse órgão.


Justifica o CNJ a sua resolução dispondo que ela valerá até a vinda do Estatuto da Magistratura. Acontece que esses democratas esquecem que qualquer aluno do primeiro ano de uma boa faculdade de Direito sabe que não se confundem leis orgânicas formais com leis materiais que regulam direitos e deveres. Estatuto é lei que declara direitos e impõe deveres ao funcionário, no caso, aos juízes, sendo absolutamente inconstitucional que o referido estatuto prometido possa vir a impor direitos e deveres ao órgão público político considerado como Poder de Estado.

Desculpem-me os membros do CNJ, mas justificar dessa maneira a expedição da Resolução 16 é presumir que, nós os juizes, nada sabemos sobre o processo legislativo e da natureza das leis, matéria afeta à teoria geral legislativa. Não é simplesmente arbítrio puro dizer que as eleições nos tribunais são reguladas até a chegada do Estatuto da Magistratura? Mas quem quer enxergar esses desvios? A AMB? A AJD? a Anamatra? A Ajufe, a Apamagis?

Os juristas brasileiros, com raríssimas e honrosas exceções, sabem que desde que o presidente Lula assumiu o governo da República, as maiores teratologias jurídicas constitucionais vem sendo cometidas, em nome de um esquerdismo caolho e de um moralismo de inspetor de quarteirão. Quero só ver o Estatuto da Magistratura dizendo que os órgãos do Poder Judiciário, os Tribunais de Justiça deverão agir assim ou assado. Quero só ver.

Aliás, alerto para quem não sabe a existência da preciosa lição de Celso Bandeira de Mello ao ensinar que um órgão constitucional pode se defender por via de Mandado de Segurança contra a atuação arbitrária de outro órgão. Nada impede que a maioria dos desembargadores de São Paulo, ingresse no Supremo Tribunal Federal com Mandado de Segurança para manter o direito líquido e certo constitucional do Tribunal de Justiça de São Paulo ser um órgão constitucionalmente autônomo e independente como diz a Constituição Federal.

Mas há aqueles que se dizem democratas de carteirinha, mas que na realidade não fazem mais do que o jogo da ideologia dominante no Brasil desde que o PT assumiu o poder: a ideologia do centralismo democrático. O exemplo mais gritante desse democratismo foi a fala do presidente da Associação Juizes para a Democracia, no jornal O Estado de S. Paulo, dizendo que é impraticável no Tribunal de Justiça de São Paulo sessões administrativas com 360 desembargadores. Com a autoridade de um autêntico magister dixit democrata, o senhor juiz de direito Marcelo Semer defende la democracia, pero no mucho!

Seria oportuna a pergunta ao senhor ministro da Justiça que disse e redisse que iria democratizar e modernizar o Poder Judiciário instalando um CNJ para controlar os abusos dos tribunais: senhor ministro, quem é que controla esse abuso democrático cometido pela Resolução 16 de consolidar a oligarquia na direção dos Tribunais de Justiça, ou seja, consolidar por mais 30 anos (lembre-se de 1977?) a existência desse Órgão Especial, ditando as ordens dentro do tribunal e que não raro decide, pelo menos aqui em São Paulo, pendências administrativas por meio de um simples: Indeferido V.U.?

Foi essa a Reforma do Judiciário sonhada pelo ministro Márcio Thomaz Bastos, coadjuvado pela AJD e recentemente endossada pela AMB que viria para cumprir com a missão de “democratizar o Judiciário” e abrir a nossa “caixa preta”? Aliás, quem tiver curiosidade para ler os jornais da AJD verá que as idéias todas aprovadas pelo Congresso Nacional, sendo a principal delas, o CNJ, partiu dessa democrata e imparcial associação com os seus compromissos socialistas totalitários, como deixou bem claro no Fórum Social de Porto Alegre quando proclamou que é dever do juiz consciente lutar contra o poder econômico.

Para a AJD, o juiz deve ser um socialista revolucionário. Por isso é que não faltou membro da AJD defendendo por escrito, no jornal da AJD, o presidente Lula quando este disse que era necessário “abrir a caixa preta do Judiciário”, assim como se derramando em elogios ao senhor ministro da Justiça como o homem corajoso que iria promover uma radical reforma do Poder Judiciário.

Enfim, isso o que está acontecendo nas Justiças Estaduais, essa luta pelo continuísmo oligárquico. Em São Paulo, a velha ordem administrativa oligárquica se uniu a internacionalmente desacreditada ideologia do centralismo democrático de forma a se manterem nas cátedras do Órgão Especial, exercendo o poder uniformizador, em harmonia absoluta com o CNJ.

Por certo que não deve faltar desembargador estadual no Brasil todo (só em São Paulo, são 13), nem presidente de Tribunal de Justiça, nem presidente de associação estadual de juizes, que não esteja esfregando as mãos com essa Resolução 16. Afinal, é muito mais fácil manter-se no poder fazendo política com 25 desembargadores do que, como em São Paulo, com 335.

É triste, muito triste isso que estamos assistindo: essa hipocrisia de falar em exercício da democracia, de direitos humanos, de defesa das minorias, de ajuda a miséria quando tudo isso não passa do mais egoísta e pérfido engodo a que estamos todos e em todos cantos e lugares do Brasil, de uma forma ou de outra, sendo submetidos.

Eis a farsa democrática! Para nós, os juizes estaduais, o CNJ expede uma resolução para democratizar as eleições nos tribunais, mas desde que não sejam ouvidos os desembargadores sobre se desejam que exista ou subsista o Órgão Especial. É essa a grande jogada das oligarquias.

Portanto, a quem o CNJ está enganando com essa mal redigida Resolução 16? A todos nós, desembargadores eleitores, que continuaremos dentro de nossa própria casa o que sempre fomos, meros expectadores dos colegas que ocupam posições de mando decidem a nosso respeito.

Encerro este artigo mais uma vez reiterando que não tenho a menor pretensão de me candidatar a nada dentro ou fora do tribunal. Escrevo apenas para expressar a minha indignação contra essa ideologia totalitária que está tomando conta de forma absoluta do Judiciário brasileiro e do Brasil, tentando pelo menos, no que me diz respeito, dizer que estou obrigado a obedecer ao que me impõem, mas que eu sei exatamente porque me impõem e o objetivo dessa imposição. Isso me desobriga perante a minha consciência de juiz que tenta, com muita honestidade e trabalho, defender a liberdade do outro, posto que penso que aquele que não cuida de sua liberdade, não tem competência alguma para cuidar da liberdade do outro!

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