Herança da monarquia

Como regularizar condomínio situado em área pública

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11 de junho de 2006, 7h00

De início, imperioso assinalar, em rápidas pinceladas, a história do registro das terras no Brasil, remontando ao seu descobrimento, quando integravam o domínio de Portugal. Já em 1534, a Coroa, no escopo de incentivar a ocupação do solo brasileiro, criou as capitanias hereditárias doando grandes porções de terras a alguns poucos beneficiários, o que certamente fracassou.

Em 1548, instituiu-se o regime das sesmarias visando obrigar os proprietários a cultivar suas terras, eis que o país passava por grave crise econômica e social, destacando-se a carência de gêneros alimentícios. Porém, continuadamente, somente os abastados as recebiam, originando até hoje o que denominam de grandes latifúndios, encerrando-se em 1822, por ato de D. Pedro I.

Sucederam-se outras normas, com relevância para a Lei 601/1850, regulamentada pelo Decreto 1.318/1854, estabelecendo que, salvo as terras concedidas pelas sesmarias e outras concessões revalidadas, dentre elas a conhecida legitimação de posse, as remanescentes seriam devolutas, portanto públicas. Em suma, mesmo aqueles que ocupavam terras públicas e não detinham justo título poderiam obtê-lo, pelo Estado, nos termos da nova legislação, instituindo a obrigatoriedade do conhecido Registro Paroquial. Ou seja, todos os possuidores, quaisquer que fossem os títulos, deveriam registrá-los para adquirir o domínio. Deste modo, aquelas áreas cujos detentores que não cumpriram estes preceitos são terras públicas.

Adentrando especificadamente ao tema proposto, analisemos alguns aspectos pertinentes aos condomínios situados em áreas públicas, ditos irregulares, proliferando-se no território nacional, objeto de inumeráveis discussões doutrinárias e ações judiciais, angustiando milhares de cidadãos que nelas construíram e residem com seus familiares.

Com efeito, no cotejo dos princípios e normas jurídicas em vigor, a venda direta aos ocupantes que alguns cultos estudiosos do direito defendem se nos apresenta inconstitucional, permita discordar, pois ainda que de boa-fé, invadiram ou adquiriram de quem não era o dono, usufruindo o bem público por vários anos, sem qualquer autorização, pagamento, sequer contraprestação ou alvará de construção expedido pela administração.

Ressalte-se, por oportuno, que a relação jurídica entre cedente e cessionário é de índole pessoal, inoponível contra a administração, não lhes concedendo a lei o direito de seqüela, de natureza real (artigos 443 e 1.228 do Código Civil). E ninguém se escusa de cumprir a lei, ainda que pelo desconhecimento (artigo 3º da LICC).

O argumento por vezes usado de que a administração foi omissa na ocupação irregular e desordenada, o que ensejaria um “direito reconhecido” implicitamente, também não nos convence. Anote-se, o Estado, conquanto rigoroso no exercício do poder de polícia, é deveras dificultado pelo número insuficiente de servidores e escassez de recursos quanto à fiscalização adequada, carecendo do devido aparelhamento, mormente outrora. De outra banda, a omissão na prática de atos vinculados ou o não ajuizamento de ações pelas entidades legitimadas não é fato gerador de direito referente aos bens públicos, de natureza imprescritível.

Averbamos, não se pode confundir o “interesse” de parcela duma coletividade com o “direito” de toda a sociedade, conceitos distintos e antagônicos.

Ainda a respeito, sobressai de eminentes e conceituados juristas a tese da não exigibilidade de procedimento licitatório, fulcrando-se na aplicação da analogia, citando como paradigma a venda dos imóveis funcionais da União, em 1990, onde foi autorizada a alienação direta aos servidores, por lei federal. Todavia, tratou-se de uma exceção devidamente fundamentada.

Primeiro porque, na criação de Brasília, referidos “funcionários” vinham de outros Estados, e o aspecto da moradia era relevante para incentivar a mudança. Segundo, os imóveis tinham de ser mantidos pela administração e gerava ônus vultoso ao erário. Por último, e o mais importante, é que eram legítimos ocupantes, devidamente autorizados para tanto, possuindo Termo de Ocupação concedido pela administração.

Em conseqüência, não existe precedente jurídico aplicável à espécie, a fim de que se excluam tais bens de prévia licitação aberta. Nem a edição de nova lei federal direcionada e específica, ou até alteração na lei de licitações, tem esse poder autorizativo, quiçá Constituições Estaduais, Lei Orgânica ou legislação local, concessa vênia.

Continuando, no foco, outros operadores do Direito pugnam que a solução estaria na mera aplicação da legitimação de posse, prevista no Estatuto da Terra (Lei 4.504/64). Ocorre que, historicamente, sua finalidade é outra, sendo uma das formas de aquisição direta da propriedade pública pertinente a glebas rurais produtivas permeada por outros contornos — não obstante a grande parte dos condomínios se localizar em áreas urbanas — ainda assim, prescindiria de licitação, porquanto, nesses casos, este instituto jurídico não foi recepcionado pela novel Carta de 88.

Noutro prisma, a recente elevação da moradia a direito social como preceito constitucional prevista no artigo 6º da CF não se sobrepõe ao direito de igualdade de todos perante a lei e ao princípio da licitação dos bens públicos desafetáveis. Exegese contrária consubstanciaria em incentivo às invasões, pois todos saberiam que, depois de alguns anos, conseguiriam a chancela do Estado para legalizar aquilo, em tese, juridicamente impossível. Correríamos o risco de criar um caos social.

Mas diante desta notória e evidente situação de fato irreversível, de cunho social, de respeitável parcela da população brasileira, existe uma solução jurídica, sem se contrapor ao ordenamento pátrio? Cremos que sim. Seria uma emenda constitucional específica, originária do Congresso Nacional, como disposição transitória, no exercício do Poder derivado, autorizando, excepcionalmente, a União, aos Estados, o Distrito Federal e aos municípios a alienar esses bens públicos, concedendo o direito de preferência da compra direta aos atuais ocupantes, ao preço de mercado. Os imóveis remanescentes, nessas áreas, seriam objeto de licitação aberta.

Certamente, impende salientar, caberia a cada ente, em respeito à autonomia da federação, aplicar ou não a regra e, se acolhida, disciplinar e regulamentar, por lei, os condomínios que se enquadrariam, fixando critérios, segundo a conveniência, oportunidade e discricionariedade do legislador e da administração.

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