Leão amigo

Entrevista: Roberto Pasqualin

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11 de junho de 2006, 7h00

Roberto Pasqualin - por SpaccaSpacca" data-GUID="roberto_pasqualin.png">Pagar imposto é uma questão de cidadania. Na Grécia antiga, quem não pagava imposto não tinha direito de votar. Nas modernas sociedades, os excluídos sociais estão fora também do alcance dos arrecadadores de impostos. Por isso, o cidadão deveria sentir satisfação e orgulho de pagar imposto.

Num país com carga tributária das mais altas do mundo e com serviços públicos da mais baixa qualidade, a sugestão pode parecer um insulto. Mas não é o que entende o advogado tributarista Roberto Pasqualin. Para ele, pagar imposto é um exercício de afirmação do cidadão. “A qualidade dos serviços públicos depende do desempenho do governo, não dos impostos que pagamos”, sustentou ele, em entrevista à Consultor Jurídico.

Sua opinião, no entanto, não é um aval ao sistema tributário vigente. Muito pelo contrário. Pasqualin concorda que a legislação tributária é confusa, muda a toda hora, o contribuinte gasta horrores para poder cumprir suas obrigações e, mesmo assim, quando precisa do fisco, fica na mão. Considerado em uma pesquisa o mais burocrático entre 155 países, não é por acaso que o fisco brasileiro tem como símbolo um animal selvagem e voraz.

Pasqualin sonha com uma reforma tributária que reduza o número de impostos, que crie impostos com qualidade e que amplie a base de contribuintes. Sabedor de que este é um sonho distante da realidade, ele resolveu lutar pelo que acha possível.

Como membro do Comitê de Legislação da Câmara Americana de Comércio, Pasqualin promove campanha para reduzir a carga tributária indireta do empresário, ou seja, o custo que as empresas têm para pagar o imposto e se manter regularizadas perante a Receita Federal. E isso custa caro no Brasil.

A campanha centrou seus esforços na racionalização da CND, a Certidão Negativa de Débitos, da Receita Federal, que toda empresa precisa para fazer qualquer negócio. Só que está cada vez mais difícil tirar a CND, porque a Receita resolveu transformá-la numa ferramenta de arrecadação, segundo Pasqualin.

Aos 58 anos, 40 dos quais dedicados ao Direito Tributário, Roberto Pasqualin passou pelas mais importantes sociedades de advogados do país até se estabelecer em seu próprio escritório, o Pasqualin Advogados. Além do escritório, Pasqualin se dedica também ao Instituto Spiralis, uma entidade de apoio e fortalecimento do terceiro setor.

Leia a entrevista

ConJur — Qual é a reforma tributária possível de se fazer hoje?

Roberto Pasqualin — É difícil responder a essa pergunta. O Lula diz que a reforma tributária possível é a que foi aprovada em 2003. Mas isso não foi reforma nenhuma. Eu acho que o que precisamos fazer é o impossível virar possível. Se não, nada de qualidade será feito, a não ser remendos como têm sido feito até hoje.

ConJur — Quais objetivos devem nortear essa reforma?

Roberto Pasqualin — Antes de tudo, o sistema tem de ser simplificado. O segundo ponto é a qualidade dos tributos. Por exemplo, onde o ISS deve ser pago? Isso tem de ser discutido qualitativamente, e não politicamente. Outra questão é a segurança jurídica. Hoje, uma das coisas mais difíceis na área tributária é acompanhar a legislação. O sistema tem de ser imune a modificações pontuais. Os incentivos fiscais têm de ser reduzidos à exceção da exceção, porque geram um desequilíbrio econômico enorme: guerra fiscal e concorrência desleal, por exemplo. Um aspecto importante é a transparência. O contribuinte tem de saber quanto de imposto está pagando na cerveja que ele toma. É necessário estabelecer um equilibro na relação hoje tão desequilibrada entre contribuinte e governo.

ConJur — Ou seja, fazer o contrário de tudo que foi feito até hoje?

Roberto Pasqualin — Hoje, nós não temos um sistema tributário. O que temos é um colcha de retalhos: cada governo faz o que quer. Além disso, a legislação é confusa e dá margem para interpretações. O sistema tributário tem de ser simples. Não precisamos de 12 impostos. Talvez cinco ou seis sejam suficientes. O ideal seria o imposto único, mas ele tem o defeito de deixar o sistema tributário totalmente dependente dos bancos. De repente, os bancos podem entrar em greve e paralisar o sistema.

ConJur — Quando se fala de tributos, fica de um lado o contribuinte querendo pagar menos e, de outro, o governo querendo arrecadar mais. Nesse contexto, é possível fazer qualquer tipo de reforma tributária?

Roberto Pasqualin — Existe a possibilidade de atender as duas partes simultaneamente. No estado de São Paulo, tivemos a comprovação de que isto é possível. O ex-governador Geraldo Alckmin diminuiu a alíquota de 200 produtos e conseguiu aumentar a arrecadação. Atendeu os dois lados.


ConJur — Qual é a mágica?

Roberto Pasqualin — É muito simples. Mais de 50% dos empresários são informais, ou seja, não pagam um centavo de imposto. A idéia é trazer todos eles para dentro do sistema tributário, fazer com que todos se tornem contribuintes. Se for cobrado dele um valor que compense, ele não vai querer ficar informal e correr o risco de ser pego. Mas se a cobrança for muito alta, ele preferirá ficar informal. Se imposto fosse bom, não seria imposto, seria voluntário. Por isso, o imposto tem de ter uma característica que leve o contribuinte quase que a contribuir automaticamente, como acontece com a CPMF. O cidadão tem de gostar de pagar imposto. A cidadania passa por isso. Na Grécia, só votava quem pagava imposto.

ConJur — Mas, para gostar de pagar o imposto, o contribuinte tem de ter o retorno — saúde, educação, segurança.

Roberto Pasqualin — Não estou falando de retorno. O contribuinte não compra o serviço público, que é bom ou ruim dependendo do governo e não do imposto que ele paga. A parte do contribuinte é contribuir para que haja o serviço. Se ele acha esse serviço ruim, que troque de governo. O cidadão tem de se orgulhar de pagar imposto e isso só vai acontecer quando tivermos um sistema inteligente, simples e fácil de operacionalizar. Para mim, esse orgulho é o catalisador da grande reforma tributária. Caso contrário, vamos continuar na mesma.

ConJur — Quem deve pagar imposto?

Roberto Pasqualin — Todo cidadão deve pagar. O excluído não é um cidadão. Ele tem direitos de cidadania, mas não exerce. Tem de ver quem produziu riqueza no país para tributar. Salário-mínimo e cesta básica não são riquezas. Isso é utópico, mas é necessário ter o princípio na cabeça para poder ir atrás e fazer uma reforma tributária de qualidade.

ConJur — Qual é o princípio do imposto?

Roberto Pasqualin — A idéia é de que cada um dê para o Estado um pedaço da sua riqueza. Por isso eu sou contra o imposto sobre a propriedade, porque ela é uma riqueza construída depois de um ganho, que já foi tributado. Cobrar imposto sobre a propriedade é cobrar duas vezes. O mesmo vale para o IPVA, IPTU e para o Imposto de Renda descontado dos trabalhadores. Renda é acréscimo de patrimônio. Salário não é acréscimo de patrimônio.

ConJur — Essa reforma tributária que o senhor descreveu é viável?

Roberto Pasqualin — Não há uma liderança política no Brasil forte o suficiente para aprovar todas as alterações necessárias de uma vez só. Por isso, nós da Câmara Americana de Comércio estamos tentando focar em uma determinada parte desta reforma. Estamos voltados para as mudanças necessárias na carga tributária das empresas, ou seja, o custo da burocracia que a empresa tem para pagar tributos e atender à fiscalização do fisco. Dentro dessa carga, concentramos nossas atenções nas CNDs — Certidões Negativas de Débito. Com a informatização da Receita Federal, está cada vez mais difícil obter a CND e, sem ela, o empresário não pode fazer quase nada.

ConJur — Piorou com a informatização?

Roberto Pasqualin — Devia ser o contrário, não é? Mas foi criada a “conta corrente” de cada empresa, onde são listados os supostos débitos. Com a informática, essa lista é atualizada com muita rapidez. O lançamento é automático. Quando o empresário acaba de resolver uma lista de 10 pendências, já tem outras cinco esperando. Outro fator que prejudica é a burocracia. Para o empresário comprovar que pagou as 10 pendências, mas que o pagamento não havia sido registrado por troca de algarismo na guia de pagamento, por exemplo, ele tem de mandar a queixa e a comprovação para a Receita. Lá, eles fazem o que chamamos de “envelopamento”: põe tudo no envelope para, um dia, alguém abrir.

ConJur — Como as empresas lidam com isso?

Roberto Pasqualin — Elas aumentam o número de pessoas nos departamentos fiscais. Isso gera emprego improdutivo, mas é emprego. Contratam também consultoria externa de escritório de contabilidade, escritório de despachante e de advocacia. Tudo isso aumenta o custo da administração tributária das empresas, o que eu chamo de carga tributária indireta. Outra alternativa é recorrer ao Judiciário pedindo um liminar para obter a CND. O Judiciário, então, substitui o trabalho da Receita.

ConJur — O que a Receita ganha ao dificultar a emissão de CNDs?

Roberto Pasqualin — A certidão virou uma ferramenta de cobrança ilegal. Quem precisa de CND não pode ter pendência. A certidão não é uma obrigação do contribuinte, e sim um direito. Mas, acabou virando uma chantagem tributária. Eu já vi contribuinte pagando duas vezes o mesmo imposto para obter a certidão.

ConJur — Quando existe processo administrativo para averiguar o pagamento ou não do imposto, o contribuinte tem de esperar a solução para obter sua CND?


Roberto Pasqualin — Não. Quando o processo é aberto, a obrigação de pagar o imposto é suspensa e o contribuinte consegue a certidão. O impedimento é quando não tem esse processo. Como eu disse, às vezes, uma troca de código da guia de recolhimento prejudica. O contribuinte deve tanto de PIS, mas preenche com o código da Cofins e paga. Para a Receita, ele continua devendo o PIS. Para solucionar isso, manda a comprovação do equívoco e vai para o envelopamento.

ConJur — Por que isso acontece?

Roberto Pasqualin — A Secretaria da Receita Federal é uma máquina de arrecadação. Sua função é arrecadar, e não fazer política tributária.

ConJur — Não existem medidas para facilitar a vida do contribuinte?

Roberto Pasqualin — A Receita já recebeu diversas sugestões das empresas para facilitar o trâmite tributário e algumas delas foram adotadas. Por exemplo, a CND voltou a valer para a empresa como um todo. Durante um tempo, a matriz tinha de ter uma certidão e cada filial, uma. A Procuradoria da Fazenda Nacional também adotou uma portaria que diz que, se o contribuinte apresentar a prova de que pagou a pendência e, em 30 dias, isso não for avaliado, o débito é cancelado. A Receita não é só um demônio. Tem medidas boas, mas são poucas e não são aplicadas de maneira uniforme. É impressionante a diversidade de procedimentos entre as repartições da mesma Receita. Depende muito do servidor que está de plantão, se ele é um sujeito bem ou mal humorado.

ConJur — Essa dificuldade de relacionamento entre contribuinte e Receita começou quando?

Roberto Pasqualin — Não é recente, mas está piorando por causa do fenômeno da informatização. O que acontecia antes com 100 empresas, hoje pode ocorrer com um milhão. Basta apertar um botão.

ConJur — Quais são as propostas do Comitê de Legislação da Câmara Americana de Comércio para facilitar a emissão de CNDs?

Roberto Pasqualin — Decidimos centrar nossa energia em três pontos. Primeiro, impedir que pendência posterior ao pedido da certidão impeça a sua emissão. Ou seja, se o contribuinte pede a CND no dia 10 de junho, tudo o que aparecer depois não afetará esta certidão. O segundo ponto é fazer com que todos os pedidos de revisão de cobrança, os envelopamentos, possam suspender a cobrança. O terceiro ponto é prolongar a validade das Certidões Negativas de Débito. Hoje, a certidão vale por seis meses. Queremos que comece a valer por um ano. Isso diminuiria em 50% o trabalho que as empresas têm para obter a CND.

ConJur — Essas propostas têm de passar pelo Congresso ou podem ser feitas administrativamente pela Receita?

Roberto Pasqualin — Estamos ainda deliberando sobre isso. Sabemos que, se for para o Congresso, não vai adiantar, porque ele vai ficar parado até o final do ano por causa das eleições. Essa validade de 180 dias, por exemplo, não está estabelecida em lei. Aliás, não o prazo não está fixado em nenhum lugar.Pensamos, então, em recorrer ao Executivo, onde temos três níveis: o presidencial, por meio de um decreto do presidente da República; o ministerial, ou seja, o ministro regulamenta por meio de um portaria; ou ainda no nível dos órgãos diretos, por meio de instrução normativa da Receita, da Previdência e da Procuradora da Fazenda Nacional. O que eu acho importante é que está sendo criado um movimento cívico empresarial em torno da CND. Existem diversas organizações se articulando em torno disso.

ConJur — É possível estimar qual o prejuízo das empresas causado pela dificuldade de obter a CND?

Roberto Pasqualin — É muito difícil medir isso. Tem uma pesquisa do IFC — International Finance Corporation, publicada em 2005, que mostra que, entre os 155 países pesquisados, o Brasil está em último lugar no quesito número de horas de trabalho para pagar imposto. As empresas têm o custo para contratar uma consultoria porque, aqui no país, a legislação muda numa velocidade enorme. O empresário não consegue atuar minimamente dentro da lei sem ter uma consultoria. Mesmo assim, não tem ninguém que não tenha problemas com a Receita. É uma característica do sistema tributário brasileiro. Ele é altamente burocrático.

ConJur — Complexo e volátil?

Roberto Pasqualin — Sim. Não só a lei propriamente dita muda, como a regulamentação infralegal também. É muito difícil, às vezes, até para quem é técnico entender o que ele tem de fazer. Vou usar o exemplo do imposto sobre a propriedade. Quem tem um sítio dentro da cidade paga IPTU ou ITR [Imposto sobre Propriedade Territorial Rural]? Muitas vezes, a discussão chega ao Judiciário, que é quem dá a última palavra. Mas o Judiciário também tem decisões contraditórias. Por isso, temos um problema sério de insegurança jurídica.

ConJur — Outro caso parecido é o do ISS e a questão do local de recolhimento do imposto.

Roberto Pasqualin — Durante vários anos, desde 1968, o ISS era pago na sede do prestador de serviço, como manda a legislação. Mas o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o imposto tem de ser pago no local da prestação. Como o empresário de São Paulo vai pagar o imposto em Manaus, se ele não tem inscrição municipal lá porque sua empresa fica na capital paulista? Tudo isso gera uma insegurança para o contribuinte que quer pagar o imposto, mas não sabe onde.

ConJur — Isso só acontece por que a legislação é confusa?

Roberto Pasqualin — Sim. Ela permite interpretações diferentes. Essa do Superior Tribunal de Justiça sobre o local de recolhimento do ISS é equivocada. É esse inferno tributário que nós vivemos hoje.

ConJur — Qual a opinião do senhor sobre a polêmica lei paulistana do ISS que os prestadores de serviços de outras cidades se cadastrarem para atuar na capital?

Roberto Pasqualin — Essa lei é inconstitucional. Ela obriga o contribuinte a se sujeitar ao controle de outra cidade que não a sua. É mais ou menos como se o Canadá exigisse que os contribuintes brasileiros se cadastrassem lá. Nem o Canadá nem São Paulo podem fazer isso. Uma medida deste tipo pode levar à dupla tributação se a cidade de direito também exigir o imposto. Entre os países, temos os tratados internacionais para evitar a dupla tributação. No Brasil, temos a Constituição Federal que diz que o ISS é devido no município da sede do prestador de serviço. A fiscalização não pode ser usada como desculpa para esta lei paulistana, porque existem outras formas de fiscalizar sem a necessidade do cadastro. Tem ainda a discussão em torno das alíquotas do ICMS, imposto de competência estadual. Desde 1967, é adotada a prática da alíquota diferenciada entre estado de origem e de destino. Com esta prática, quem consome, o destino, paga mais e quem produz, a origem, paga menos. Essa é uma discussão política. Tecnicamente, todas as circulações de mercadoria deveriam estar sujeitas à mesma alíquota.

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