Palavra de ministro

Não cabe ao Judiciário interferir em relatórios de CPIs

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6 de junho de 2006, 19h56

A produção de relatórios parciais não pode ser qualificada como ato abusivo das CPIs. Tais relatórios são uma forma legítima de apresentação de resultados das atividades desenvolvidas ao longo do inquérito legislativo e permitem a necessária fiscalização social.

O entendimento é do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, que rejeitou pedido de Emílio Humberto Carazzi Sobrinho para que seu nome fosse excluído do relatório parcial da CPI dos Bingos.

Para Celso de Mello, “a divulgação de relatórios parciais – além de viabilizar, como sucedeu na espécie, o oferecimento de emendas (supressivas, aditivas ou modificativas) pelos congressistas – traduz, ainda, legítima expressão do necessário diálogo democrático que se estabelece entre a Comissão Parlamentar de Inquérito e os cidadãos da República”.

Segundo o ministro, não cabe ao Poder Judiciário interferir na elaboração do relatório, especialmente para ordenar a exclusão de nomes de pessoas. Celso de Mello ressaltou que eventual decisão a favor de pedido desse teor “qualificar-se-ia como um gesto de indevida interferência na esfera orgânica de outro Poder da República, pois não cabe, aos juízes e Tribunais, em sede mandamental, avaliar a materialidade e a autoria dos fatos que constituíram objeto do inquérito parlamentar”.

Ao final de seu voto, o ministro destacou que o Mandado de Segurança não é o instrumento adequado para o pedido. Segundo jurisprudência do STF, “o mandado de segurança não é meio idôneo para o exame de questões cujos fatos não sejam certos”.

Leia a decisão

MED. CAUT. EM MANDADO DE SEGURANÇA 25.995-7 DISTRITO FEDERAL

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

IMPETRANTE(S): EMÍLIO HUMBERTO CARAZZAI SOBRINHO

ADVOGADO(A/S): JULIANA TAVARES ALMEIDA E OUTRO(A/S)

IMPETRADO(A/S): PRESIDENTE DA COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO – CPI DOS BINGOS

DECISÃO: Busca-se, na presente sede mandamental, a exclusão do nome do impetrante “do rol de encaminhamentosa que se refere o “Relatório Parcial – CPI dos Bingos” (fls. 58/138), notadamente no ponto em que esse órgão de investigação parlamentar indica, ao Ministério Público Federal, o nome do autor desta ação de mandado de segurança (fls. 36, item n. 9), para efeito de apuração da suposta prática do delito de prevaricação (CP, art. 319) e de crimes tipificados na Lei nº 8.666/93 (que dispõe sobre a tutela penal das licitações e contratos da Administração Pública) e, ainda, para fins de responsabilização por alegado cometimento de atos de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92).

Cabe verificar, preliminarmente, se se revela admissível, ou não, a pretensão mandamental ora deduzida nesta sede processual.

Entendo que não, pois a produção de relatórios parciais, como no caso, constitui prática que não traduz nem se qualifica como ato abusivo das Comissões Parlamentares de Inquérito, cujos trabalhos – porque voltados ao esclarecimento de ocorrências anômalas que afetam, gravemente, o interesse geral da sociedade e do Estado – devem estar sujeitos a permanente escrutínio público, representando, por isso mesmo, forma legítima de apresentação de resultados das atividades desenvolvidas ao longo do inquérito legislativo, assim permitindo que a coletividade exerça, sobre tais órgãos de investigação, a necessária fiscalização social.

Na realidade, a divulgação de relatórios parciais – além de viabilizar, como sucedeu na espécie, o oferecimento de emendas (supressivas, aditivas ou modificativas) pelos congressistas – traduz, ainda, legítima expressão do necessário diálogo democrático que se estabelece entre a Comissão Parlamentar de Inquérito e os cidadãos da República, que têm direito público subjetivo à prestação de informações por parte dos órgãos parlamentares de representação popular, notadamente nos casos em que se registra – considerada a gravidade dos fatos sob investigação legislativa – direta repercussão sobre o interesse público.


No caso em exame, a CPI dos Bingos, exercendo uma competência que lhe foi deferida pela própria Constituição da República, praticou ato inerente às suas atribuições institucionais consistente na apresentação de relatório parcial de suas atividades, o que traduz direta conseqüência do complexo de poderes de que esse órgão de investigação parlamentar está juridicamente investido.

Tenho para mim, por isso mesmo, considerado o princípio da separação de poderes, que não cabe, ao Judiciário, interferir na elaboração do relatório consubstanciador das atividades de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, especialmente para ordenar, como ora postulado, a exclusão de nomes de pessoas (como o do impetrante, p. ex.) sobre quem se impõe, por efeito de deliberação desse órgão do Poder Legislativo, a apuração de eventual responsabilidade penal, civil e/ou administrativa.

Na realidade, a pretendida intervenção jurisdicional na própria definição do conteúdo do Relatório de uma CPI, se efetivada nos termos em que postulada, qualificar-se-ia como um gesto de indevida interferência na esfera orgânica de outro Poder da República, pois não cabe, aos juízes e Tribunais, em sede mandamental, avaliar a materialidade e a autoria dos fatos que constituíram objeto do inquérito parlamentar e de cuja suposta prática resultou a inclusão do nome de determinada pessoa (o impetrante, no caso) no Relatório consubstanciador das atividades investigatórias da Comissão Parlamentar de Inquérito.

Não custa rememorar, neste ponto, que a simples instauração da “persecutio criminis” – como aquela que poderá resultar do encaminhamento, ao Ministério Público, dos dados pertinentes ao ora impetrante – não constitui, em princípio, só por si, situação caracterizadora de injusto constrangimento (RTJ 78/138), notadamente quando iniciada por atos estatais consubstanciadores de descrição fática cujos elementos podem ajustar-se, ao menos em tese, ao tipo penal (RT 582/418 – RT 590/450).

Essa orientação – que se reflete no magistério jurisprudencial dos Tribunais (RT 598/321 – RT 603/365 – RT 610/321 – RT 639/296-297 – RT 729/590) – também encontra apoio na jurisprudência desta Suprema Corte:

A SIMPLES APURAÇÃO DE FATO DELITUOSO NÃO CONSTITUI, SÓ POR SI, SITUAÇÃO DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL.

Havendo suspeita fundada de crime, e existindo elementos idôneos de informação que autorizem a investigação penal do episódio delituoso, torna-se legítima a instauração de inquérito policial, eis que se impõe, ao Poder Público, a adoção de providências necessárias ao integral esclarecimento da verdade real, notadamente nos casos de delitos perseguíveis mediante ação penal pública incondicionada. Precedentes.

(RTJ 181/1039-1040, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Cumpre ressaltar, por necessário, que esta Suprema Corte, em decisões proferidas por eminentes Ministros que a compõem, já acentuou, por mais de uma vez, em face do mesmo contexto que se registra na espécie, que a simples inclusão do nome de determinada pessoa em Relatório Parcial de Comissão Parlamentar de Inquérito, para os fins a que refere a parte final do § 3º do art. 58 da Constituição, não configura ato lesivo ao direito daquele que se viu nominalmente referido pelo órgão de investigação legislativa (HC 81.308/PA, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – HC 88.680/DF, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA – MS 25.820-MC/DF, Rel. Min. CARLOS BRITTO), eis que o Ministério Público não está obrigado a adotar as providências que lhe são meramente recomendadas pela CPI.


Esse entendimentoque ressalta que as conclusões da CPI não vinculam o Ministério Público, que dispõe de autonomia para atuar como entender necessário, não estando obrigado, por isso mesmo, a adotar os atos recomendados pelo Relatório desse órgão de investigação parlamentar – tem o beneplácito desta Corte, como se vê da decisão que o eminente Ministro NÉRI DA SILVEIRA, como Relator, proferiu no MS 24.198/DF, na qual, após enfatizar o aspecto que ora venho de referir, extinguiu o processo mandamental, por revelar-se constitucionalmente inviável impedir-se a prática, pela CPI, dos atos de encerramento do inquérito legislativo:

5. (…) Não será viável, desse modo, coarctar a ação da Comissão Parlamentar de Inquérito, no que concerne à apuração de fatos, no exercício de sua competência, e à formulação de eventuais conclusões em torno de nomes. Decerto, aí, não há julgamento a vincular o Ministério Público ou o Poder Judiciário.

6. Com efeito, a circunstância de o nome do impetrante figurar no relatório final da CPI mencionada, com ‘recomendação’ dirigida ao Ministério Público, quanto a eventuais procedimentos, por si só, não implica, em princípio, ilegalidade ou abuso de poder, reparável na via do mandado de segurança. Conforme referido, pelos próprios impetrantes, ‘o Ministério Público não é obrigado a obedecer a ‘recomendação’ da CPI’. É exato, antes de tudo, na espécie, ter presente a presunção de realizar o Ministério Público exame das conclusões do relatório da CPI, com a independência e autonomia institucionais, que a ordem constitucional lhe confere, procedendo, assim, como entender de direito e justiça, diante das informações e documentos do relatório recebido, sem sujeição a quem quer que seja.

7. De outra parte, não cabe, aqui, análise, originariamente, em mandado de segurança, dos fatos que se apontam na inicial, bem assim da procedência ou não das conclusões a que chegou a CPI, em seu relatório. Somente na hipótese de o Ministério Público mover procedimento de natureza criminal ou civil contra o impetrante, com base no que restou apurado, pelo órgão parlamentar de inquérito, haverá espaço, nas instâncias competentes do Poder Judiciário, para este formular juízos de valor sobre as conclusões ora impugnadas na inicial deste feito.

8. De todo o exposto, nego, em conseqüência, seguimento ao presente mandado de segurança, determinando seu arquivamento (RISTF, art. 21, § 1º).” (grifei)

Registre-se, ainda, por necessário, que nem mesmo a Lei nº 10.001, de 04/09/2000 – que meramente dispõesobre a prioridade nos procedimentos a serem adotados pelo Ministério Público (…) a respeito das conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito” – desautoriza tal entendimento, valendo referir, no ponto, ante a pertinência de suas observações, o correto magistério de OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL (“CPI ao Pé da Letra”, p. 50/53, 52, item n. 50, 2001, Millennium):

O relatório deve ser encaminhado, após a sua aprovação pelos membros da Comissão de Inquérito, à Mesa da Casa Legislativa e, se for o caso, também, ao Ministério Público e ao Poder Executivo, para as providências ou medidas consideradas necessárias, diante de suas conclusões.

(…). Se dos fatos apurados houver indícios de ilícito penal, o relatório poderá ser encaminhado, diretamente, ao Ministério Público competente para apreciação e tomada de diligências que entender cabíveis.

……………………………………………….

E mais uma vez se recorda: a CPI ‘não julga’ e não tem poder jurisdicional.


Logo, as suas conclusões expostas no relatório final não possuem ‘auto-executoriedade’, quando envolvam constrição aos direitos individuais consagrados na Constituição.” (grifei)

Finalmente, e mesmo que se revelasse constitucionalmente possível a pretendida intervenção do Supremo Tribunal Federal, ainda assim subsistiria, na espécie, um outro fator impeditivo da utilização do mandado de segurança.

É que o exame dos fundamentos invocados pelo impetrante, deduzidos com a finalidade de promover a exclusão de seu nome do Relatório Parcial da CPI em questão, impõe prévia análise de um contexto probatório essencialmente apoiado em fatos cuja liquidez nem sempre resulta evidente, o que inviabiliza o acesso à via mandamental.

Como se sabe, refoge, aos estreitos limites da ação mandamental, o exame de fatos despojados da necessária liquidez, pois o “iter” procedimental do mandado de segurança não comporta a possibilidade de instauração incidental de um momento de dilação probatória, consoante adverte a doutrina (ALFREDO BUZAID, “Do Mandado de Segurança”, vol. I/208, item n. 127, 1989, Saraiva) e proclama o magistério jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal:

Refoge, aos estreitos limites da ação mandamental, o exame de fatos despojados da necessária liquidez, pois o iter procedimental do mandado de segurança não comporta a possibilidade de instauração incidental de uma fase de dilação probatória.

– A noção de direito líquido e certo ajusta-se, em seu específico sentido jurídico, ao conceito de situação que deriva de fato certo, vale dizer, de fato passível de comprovação documental imediata e inequívoca.

(MS 20.882/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

A jurisprudência desta Suprema Corte tem advertido, em inúmeras decisões (RTJ 83/130 – RTJ 83/855 – RTJ 99/68 – RTJ 99/1149 – RTJ 100/90 – RTJ 100/537 – RTJ 124/948 – RTJ 133/1314 – RTJ 134/169, v.g.), que “O mandado de segurança não é meio idôneo para o exame de questões cujos fatos não sejam certos” (RTJ 142/782, Rel. Min. MOREIRA ALVES – grifei).

Sendo assim, em face das razões expostas, declaro extinto este processo, sem resolução de mérito (CPC, art. 267, VI), restando prejudicado, em conseqüência, o exame do pedido de medida cautelar.

Arquivem-se os presentes autos.

Publique-se.

Brasília, 05 de junho de 2006.

Ministro CELSO DE MELLO

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