Lista negra

A “lista de Rachid” é uma ofensa aos contribuintes

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6 de junho de 2006, 21h03

Numa revista semanal de economia, cuja capa estampa a data de 7 de junho de 2006 como sendo a de sua circulação, foi divulgada notícia segundo a qual a Secretaria da Receita Federal vai intimar dezenas de empresas para “dar explicações ao leão e à Polícia Federal” sobre supostos depósitos que teriam sido feitos por elas no exterior.

A pequena notícia, com cerca de 700 caracteres, cita não só o nome de pelo menos cinco empresas, como também as quantias, em dólares, que supostamente elas teriam depositado fora do país.

Como se sabe, não é proibido fazer depósitos no exterior, o que é muito comum quando as empresas tenham operações internacionais, o que, à primeira vista, parece ser o caso de todas as empresas mencionadas. Basta que as empresas tenham declarado tais valores ao Fisco e ao Banco Central, para que as operações sejam absolutamente legais. Mas ainda que as remessas tenham sido feitas ilegalmente, o procedimento do Fisco Federal é também ilegal.

Como se sabe, é claramente ilegal a divulgação do nome das empresas, como registra o artigo 198 do Código Tributário Nacional. No que tange a essa divulgação, a norma do Código foi alterada pela Lei Complementar 104/01, que a admite apenas quando houver : a) representação fiscal para fins penais; b) inscrição na dívida ativa da Fazenda Pública; e c) parcelamento ou moratória.

Como vemos, mais um a vez a autoridade fazendária ignora a legislação fiscal vigente e submete empresários à execração pública, antes da apuração de qualquer fato ilícito. É a velha presunção da culpabilidade, onde qualquer contribuinte é declarado bandido, antes de qualquer prova.

Às urtigas o velho artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, ao lixo a cláusula que se diz pétrea contida no artigo 5º, inciso LVII daquele livrinho que o velho Ulisses Guimarães brandia com entusiasmo, chamando de “constituição cidadã”.

Se a lei determina que a representação fiscal para fins penais apenas pode ocorrer após esgotada a esfera administrativa (matéria já pacificada pelo Supremo Tribunal Federal), não existe o menor cabimento em submeter o contribuinte ao constrangimento de ser ouvido pela Polícia Federal antes mesmo da apuração do tributo que seria devido.

Em se tratando de suposta evasão de divisas, a representação penal pode e deve ser feita de forma a preservar a identidade dos envolvidos, até mesmo no interesse do erário, na medida em que o simples vazamento da notícia pode interferir na credibilidade das empresas envolvidas, o que prejudica seus acionistas quando elas forem de capital aberto e afeta seu crédito internacional, quando dele pretendam se utilizar.

Se a lei fala em inscrição da dívida e também em parcelamento ou moratória, obviamente estamos diante de uma dívida tributária já definitivamente apurada, líquida e certa (caso de inscrição) ou mesmo objeto de confissão pelo contribuinte (caso de parcelamento ou moratória). Não se trata, nesses casos, de algo que dependa de dar “explicações ao leão e à Polícia Federal”, como sugere a notícia.

Vê-se, portanto, que a Receita Federal, no afã de “mostrar serviço” ou mesmo, quem sabe, desviar a atenção do público para questões internas ainda não resolvidas (vejam-se as notícias de auditores que se licenciaram para assessorar empresas autuadas pelo fisco, por exemplo), resolve apontar seu dedo acusador para várias empresas que, segundo o fisco, precisam “provar” inocência, algo que a tal Constituição diz que é presumível.

No meio da notícia, como não poderia deixar de ser, cita-se também a interferência ou participação do Ministério Público, como se os artigos 129 e 144 da mesma Constituição já não fossem claros o suficiente para definir quais são as funções do MPF e da Polícia Federal.

Quando um funcionário público age em desacordo com a lei e identifica pessoas ou empresas cujos nomes deveriam se manter em sigilo (veja-se o artigo 198 da Lei 5.172), também está ignorando o Decreto federal 1.171/94 que instituiu o Código de Ética dos servidores públicos federais , onde se ordena que:

“II — O servidor público não poderá jamais desprezar o elemento ético de sua conduta.”

“IX — A cortesia, a boa vontade, o cuidado e o tempo dedicados ao serviço público caracterizam o esforço pela disciplina. Tratar mal uma pessoa que paga seus tributos direta ou indiretamente significa causar-lhe dano moral.

Os cidadãos não estão subordinados aos funcionários públicos, senão dentro dos estreitos limites da legalidade absoluta. O relacionamento entre funcionários e cidadãos foi bem definido pelo então presidente do Superior Tribunal de Justiça, o ministro Edson Vidigal, que disse:

“Quem serve ao Estado serve ao público em geral. Ninguém dentre nós, no serviço público, é inimigo de ninguém. Bastam os inimigos do povo, só por isso, também, nossos inimigos. Contra eles é que devemos estar fortes em nossa união. O padre Antonio Vieira dizia que os sacerdotes são empregados de Deus. Assim, da mesma forma, o dinheiro que paga o salário do presidente da República e dos seus ministros, dos deputados e dos senadores, dos ministros dos tribunais é o mesmo que paga o salário de todos os outros servidores, do porteiro ao assessor mais graduado, do cabo ao general. Esse dinheiro vem de um único patrão para o qual trabalhamos, do qual somos empregados. Esse patrão é o contribuinte que paga impostos. Somos empregados do Povo brasileiro.”,(in www.serpro.gov.notícias, 13/4/04).

Muito embora alguns disso não se lembrem, há limites muito claros à autuação de servidores públicos. Esses limites estão definidos no artigo 37 da Constituição Federal, que ordena que qualquer dos poderes da República obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

A tal lista de empresas é fato absolutamente ilegal. Muito provavelmente, as provas que venham a ser obtidas dessa forma serão consideradas ilícitas e não terão qualquer validade.

Pior do que a ilegalidade, contudo, é a inutilidade de tal ação. A Receita Federal dispõe de meios legais suficientes para promover as investigações necessárias para apurar eventuais atos ilícitos. Mas isso deve ser feito dentro da legalidade, com respeito aos direitos dos contribuintes.

Atualmente, os contribuintes brasileiros estão sendo tratados com grosseria, com desprezo, como se trabalhar e produzir fosse um crime. Em síntese, as autoridades fazendárias, em vez de fiscalizar, hoje preferem ofender os contribuintes. Não é assim que se constrói uma nação.

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