Injusta causa

Habeas Corpus pode ser usado para trancar ação penal

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6 de junho de 2006, 18h37

A instauração de investigação criminal não constitui, por si só, situação que caracterize constrangimento ilegal. Isso não afasta, contudo, a possibilidade de o Judiciário verificar, “mesmo na via sumaríssima da ação de Habeas Corpus, se existe, ou não, justa causa para a instauração da ‘persecutio criminis’, ainda que já iniciado, em juízo, o procedimento penal”.

Com esse entendimento, o ministro Celso de Mello conduziu a decisão do Supremo Tribunal Federal que extinguiu o processo penal por sonegação de informações à Justiça Eleitoral contra os gerentes de banco Paulo Antônio de Vicente, Wanderlan M. de Queiroz e Carlos Roberto Gonçalves.

Segundo Celso de Mello, para que o STF admita a possibilidade de trancamento de ação penal por meio de Habeas Corpus, é preciso que se demonstre com clareza a ausência de justa causa para o processo. O caso, para o ministro, se encaixou na hipótese.

Os três gerentes foram denunciados com o argumento de que não enviaram à Justiça Eleitoral em tempo hábil informações bancárias de seus clientes requisitadas. Celso de Mello ressaltou que o que motivou a falta de cumprimento da ordem judicial que determinava a entrega de dados sigilosos foi a falta, nos ofícios judiciais encaminhados à agência bancária, “de informações essenciais e imprescindíveis à efetiva execução da medida solicitada pelo Juízo eleitoral, tais como o número do CPF do correntista e a delimitação temporal do período sobre o qual incidiria a quebra do sigilo bancário”.

O ministro afirmou também que os gerentes ainda “responderam, prontamente, a todos os ofícios remetidos pelo Juiz eleitoral, esclarecendo-o, motivadamente, da necessidade de se enviarem informações complementares, essenciais ao fiel cumprimento da determinação judicial de quebra do sigilo”.

Leia a decisão

25/05/2006

TRIBUNAL PLENO

HABEAS CORPUS 84.758-7 GOIÁS

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

PACIENTE(S): PAULO ANTONIO DE VICENTE

PACIENTE(S): WANDERLAN M. DE QUEIROZ

PACIENTE(S): CARLOS ROBERTO GONÇALVES

IMPETRANTE(S): GUILHERME PIMENTA DA VEIGA E OUTRO(A/S)

COATOR(A/S)(ES): TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL

E M E N T A: CRIME ELEITORALDELITO DE DESOBEDIÊNCIA (ART. 347 DO CÓDIGO ELEITORAL) – ALEGAÇÃO DE FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A INSTAURAÇÃO DA PERSECUÇÃO PENAL – POSSIBILIDADE DE CONTROLE JURISDICIONAL, MESMO EM SEDE DE “HABEAS CORPUS”, PORQUE LÍQUIDOS OS FATOS SUBJACENTES À ACUSAÇÃO PENAL – QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIOGERENTES DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA QUE SÓ DEIXAM DE CUMPRIR A ORDEM JUDICIAL, EM FACE DA AUSÊNCIA, NELA, DE DADOS ESSENCIAIS À SUA FIEL EXECUÇÃO – INOCORRÊNCIA DE DOLO – NÃO-CONFIGURAÇÃO DO CRIME DE DESOBEDIÊNCIA – “HABEAS CORPUSDEFERIDO.

PERSECUÇÃO PENAL AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA CONSTATAÇÃO OBJETIVA DA LIQUIDEZ DOS FATOS POSSIBILIDADE DE CONTROLE JURISDICIONAL EM SEDE DEHABEAS CORPUS.

É lícito, ao Poder Judiciário, mesmo na via sumaríssima da ação de “habeas corpus”, verificar se existe, ou não, justa causa para a instauração da “persecutio criminis”, ainda que já iniciado, em juízo, o procedimento penal.


Para que tal controle jurisdicional se viabilize, no entanto, impõe-se que inexista qualquer situação de iliquidez ou de dúvida objetiva quanto aos fatos subjacentes à acusação penal, pois o reconhecimento da ausência de justa causa, para efeito de extinção do procedimento persecutório, reveste-se de caráter extraordinário, quando postulado em sede de “habeas corpus”. Precedentes.

A QUEBRA DE SIGILO NÃO PODE SER UTILIZADA COMO INSTRUMENTO DE DEVASSA INDISCRIMINADA, SOB PENA DE OFENSA À GARANTIA CONSTITUCIONAL DA INTIMIDADE.

A quebra de sigilo não pode ser manipulada, de modo arbitrário, pelo Poder Público ou por seus agentes. É que, se assim não fosse, a quebra de sigilo converter-se-ia, ilegitimamente, em instrumento de busca generalizada e de devassa indiscriminada da esfera de intimidade das pessoas, o que daria, ao Estado, em desconformidade com os postulados que informam o regime democrático, o poder absoluto de vasculhar, sem quaisquer limitações, registros sigilosos alheios. Doutrina. Precedentes.

Para que a medida excepcional da quebra de sigilo bancário não se descaracterize em sua finalidade legítima, torna-se imprescindível que o ato estatal que a decrete, além de adequadamente fundamentado, também indique, de modo preciso, dentre outros dados essenciais, os elementos de identificação do correntista (notadamente o número de sua inscrição no CPF) e o lapso temporal abrangido pela ordem de ruptura dos registros sigilosos mantidos por instituição financeira. Precedentes.

CRIME DE DESOBEDIÊNCIA (ART. 347 DO CÓDIGO ELEITORAL) – GERENTES DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA QUE SÓ DEIXAM DE CUMPRIR ORDEM JUDICIAL DE QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO, PORQUE NELA AUSENTES DADOS ESSENCIAIS – INEXISTÊNCIA DE DOLONÃO-CARACTERIZAÇÃO DE DELITO ELEITORAL.

Não pratica o crime de desobediência previsto no art. 347 do Código Eleitoral, o gerente de instituição financeira que somente deixa de cumprir ordem de quebra de sigilo bancário emanada da Justiça Eleitoral, porque não indicados, pelo magistrado que a ordenou, elementos essenciais à fiel execução da determinação judicial, como a correta identificação do correntista (referência ao seu CPF, p. ex.) e a precisa delimitação temporal (que não pode ser indeterminada) correspondente ao período abrangido pela investigação estatal.

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência da Ministra Ellen Gracie, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em deferir o pedido de “habeas corpus”, nos termos do voto do Relator. Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Senhor Ministro Sepúlveda Pertence.

Brasília, 25 de maio de 2006.

CELSO DE MELLO – RELATOR

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – (Relator): Trata-se de “habeas corpusimpetrado contra ato emanado do E. Tribunal Superior Eleitoral, que, em sede de idêntico processo, denegou o “writ” constitucional aos ora pacientes, em decisão que, proferida pelo eminente Ministro CARLOS VELLOSO, possui o seguinte teor (fls. 104/105):


DECISÃO

Vistos.

O TRE/GO denegou ‘habeas corpus’ para trancamento de ação penal em que os pacientes, dirigentes de agência bancária, foram denunciados pela sonegação de informações requisitadas por juiz eleitoral (art. 347 CE).

Daí o presente ‘habeas corpus’, com pedido de liminar, em que se alega inexistência de justa causa para ação penal, inépcia da denúncia, atipicidade dos fatos e incompetência da Justiça Eleitoral.

Informações do TRE/GO às fls. 99-229.

Parecer da Procuradoria-Geral Eleitoral pela denegação da ordem (fls. 226-229).

Decido.

Não prospera a alegação de incompetência da Justiça Eleitoral, uma vez que o entendimento da Corte é no sentido de que ‘as infrações penais definidas no Código Eleitoral obedecem ao disposto nos seus arts. 355 e seguintes e o seu processo é especial, não podendo, via de conseqüência, ser da competência dos Juizados Especiais a sua apuração’ (Res./TSE n. 21.294/2002, rel. Min. Sálvio de Figueiredo).

A concessão de ‘habeas corpus’ com a finalidade de trancamento de ação penal somente é possível quando demonstrada, de maneira induvidosa, a ausência de justa causa para a persecução, o que não se verifica no caso. Somente na ação penal será possível apurar a responsabilidade dos pacientes e a alegada inexistência de dolo no retardo da resposta à Justiça Eleitoral, porquanto o processo de ‘habeas corpus’ não admite o exame aprofundado de provas (RHC nº 35, rel. Min. Garcia Vieira; RHC nº 33, rel. Min. Maurício Corrêa; RHC nº 20, rel. Min. Néri da Silveira).

Isso posto, indefiro a liminar e denego a ordem.” (grifei)

O Ministério Público Federal, em parecer da lavra do ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr. EDSON OLIVEIRA DE ALMEIDA, aprovado pelo eminente Procurador-Geral da República, assim sumariou e apreciou a presente impetração (fls. 134/138):

(…) 3. A presente impetração reedita as alegações, refutadas na Corte impetrada, de falta de justa causa para a instauração do processo penal, inépcia da denúncia e atipicidade da conduta impingida aos pacientes, concluindo com o pedido de trancamento da ação penal em que lhes é atribuída a prática do delito previsto no art. 347 do Código Eleitoral.

4. Têm razão os impetrantes. O ‘habeas corpus’, remédio jurídico-processual destinado à proteção da liberdade de locomoção, previsto no art. 5º, LXVIII e regulado nos arts. 647 a 667 do Código de Processo Penal, é o instrumento adequado ao trancamento da ação penal quando demonstrada, de maneira inequívoca e sem necessidade de profunda incursão probatória, a falta de justa causa para a ação penal. Nesse sentido, confira-se o escólio de Julio Fabbrini Mirabete:

‘Também somente se justifica a concessão do ‘habeas corpus’ por falta de justa causa para a ação penal quando é ela evidente, ou seja, quando a ilegalidade é evidenciada pela simples exposição dos fatos com o reconhecimento de que há imputação de fato atípico ou da ausência de qualquer elemento indiciário que fundamente a acusação. Nada proíbe a concessão da ordem em caso de denúncia que se mostra abusiva, como na hipótese de demonstrar-se inexistente circunstância essencial à tipicidade por prova documental inequívoca. É possível verificar-se perfunctoriamente os elementos em que se sustenta a denúncia ou a queixa, para reconhecimento da ‘fumaça do bom direito’, mínimo demonstrador da existência do crime e da autoria, mas não se pode pela via estreita do ‘mandamus’ trancar ação penal por falta de justa causa quando, imputado fato que é crime em tese, o seu reconhecimento exigir um exame aprofundado e valorativo da prova dos autos.’


5. E, mais especificamente em relação à possibilidade do exame de prova documental no ‘writ’, e, até mesmo, sobre a sua necessidade na impetração:

‘Evidentemente, a impetração pode vir instruída com provas (documentos, certidões, justificações etc.), inclusive com rol de testemunhas, cujos depoimentos podem ser necessários em determinadas situações, desde que não prejudiquem a celeridade do processo, urgente por natureza. Impetração sem um mínimo de prova pré-constituída que demonstre ao julgador a veracidade do fato que o impetrante aponta como ilegal e que configuraria, pelo menos em tese, constrangimento indevido, não pode ser deferida.

De acordo com o artigo 660, § 2º, ‘se os documentos que instruírem a petição evidenciarem a ilegalidade da coação, o juiz ou o tribunal ordenará que cesse imediatamente o constrangimento’.’

6. Na hipótese dos autos, os documentos de fls. 21 a 45 mostram que os pacientes atenderam a todas as requisições da Justiça Eleitoral, e o atraso na entrega das informações ocorreu em virtude da própria mora do Juiz Eleitoral em informar os CPFs dos investigados e o período compreendido pela quebra do sigilo bancário, sendo que, somente para especificar este último, o Juízo demorou 1 (um) ano e 4 (quatro) meses, o que é facilmente verificável da leitura dos documentos de fls. 25 e 26, sendo desnecessária qualquer dilação probatória vedada na via eleita.

7. Isso posto, opino pelo deferimento do ‘writ’.” (grifei)

Assinalo que deferi medida cautelar em favor dos ora pacientes (fls. 170).

A presente ação de “habeas corpusé submetida ao julgamento deste E. Plenário, em observância ao que dispõe o art. 6º, I, “a”, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

É o relatório.

V O T O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – (Relator): A presente impetração busca a extinção do procedimento de persecução penal instaurado contra os ora pacientes, que foram denunciados pela suposta prática do crime tipificado no art. 347 do Código Eleitoral, que possui o seguinte teor:

Art. 347. Recusar alguém cumprimento ou obediência a diligências, ordens ou instruções da Justiça Eleitoral ou opor embaraços à sua execução:

Pena: detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano e pagamento de 10 (dez) a 20 (vinte) dias-multa.

A parte ora impetrante sustenta, em síntese, a inocorrência de justa causa para a persecução penal, seja em face da alegada inépcia da denúncia, porque desacompanhada de indícios mínimos que pudessem viabilizar-lhe o oferecimento (fls. 11/15), seja, ainda, em virtude da suposta atipicidade penal das condutas imputadas aos ora pacientes (fls. 15/17).


O exame da presente impetração permite-me concluir que assiste razão à douta Procuradoria-Geral da República, que se pronunciou, como precedentemente referido, pela concessão da ordem de “habeas corpus”.

Todos sabemos, Senhora Presidente, que a simples instauração da “persecutio criminisnão constitui, só por si, situação caracterizadora de injusto constrangimento (RTJ 78/138), notadamente quando iniciada por atos estatais consubstanciadores de descrição fática cujos elementos se ajustem, ao menos em tese, ao tipo penal (RT 582/418 – RT 590/450), pois o trancamento da investigação penal – e, por igual razão, do processo judicial – somente se justificará, se os fatos puderem evidenciar-se, desde logo, como “inexistentes ou não configurantes, em tese, de infração penal” (RT 620/368).

Esse entendimento – que se reflete no magistério jurisprudencial dos Tribunais (RT 598/321 – RT 603/365 – RT 610/321 – RT 639/296-297 – RT 729/590) – também encontra apoio na jurisprudência desta Suprema Corte:

A SIMPLES APURAÇÃO DE FATO DELITUOSO NÃO CONSTITUI, SÓ POR SI, SITUAÇÃO DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL.

Havendo suspeita fundada de crime, e existindo elementos idôneos de informação que autorizem a investigação penal do episódio delituoso, torna-se legítima a instauração de inquérito policial, eis que se impõe, ao Poder Público, a adoção de providências necessárias ao integral esclarecimento da verdade real, notadamente nos casos de delitos perseguíveis mediante ação penal pública incondicionada. Precedentes.

(RTJ 181/1039-1040, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Essa diretriz jurisprudencial, contudo, não afasta a possibilidade de o Poder Judiciário verificar, mesmo na via sumaríssima da ação de “habeas corpus”, se existe, ou não, justa causa para a instauração da “persecutio criminis”, ainda que já iniciado, em juízo, o procedimento penal (RT 708/414 – RT 749/565, v.g.).

Para que tal controle jurisdicional se viabilize, no entanto, impõe-se que inexista qualquer situação de iliquidez ou de dúvida objetiva quanto aos fatos subjacentes à acusação penal (RTJ 110/555 – RTJ 129/1199 – RTJ 163/650-651, v.g.), pois o reconhecimento da ausência de justa causa, para efeito de extinção do procedimento persecutório, reveste-se de caráter extraordinário, notadamente quando postulado em sede de “habeas corpus”.

Vê-se, desse modo, que, em via sumaríssima, a discussão em torno da ausência de justa causa depende, essencialmente, da incontestabilidade dos elementos que informam a imputação penal, não se viabilizando o debate em questão, quando – suscitado em sede de “habeas corpus” – disser respeito a hipóteses em que se registre dúvida fundada a propósito dos fatos alegados (RTJ 43/484 – RTJ 136/166 – RTJ 136/1221 – RTJ 137/198 – RTJ 139/904 – RTJ 165/877-878 – RTJ 168/853 – RTJ 168/863-865, v.g.).


Cumpre observar, bem por isso, que o Supremo Tribunal Federal – embora admitindo, excepcionalmente, em sede de “habeas corpus”, a possibilidade de trancamento de ação penal – exige, no entanto, como requisito inafastável para a apreciação da alegada ausência de justa causa, a constatação objetiva da liquidez dos fatos (RT 747/597, Rel. Min. SYDNEY SANCHES – RT 753/507, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – RTJ 168/853, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 83.674/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – HC 84.576/MG, Rel. Min. GILMAR MENDES – HC 86.120/SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE):

Em sede de ‘habeas corpus’, só e possível trancar ação penal em situações especiais, como nos casos em que é evidente e inafastável a negativa de autoria, quando o fato narrado não constitui crime, sequer em tese, e em situações similares, onde pode ser dispensada a instrução criminal para a constatação de tais fatos (…).

(RT 742/533, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA – grifei)

PERSECUTIO CRIMINIS JUSTA CAUSA AUSÊNCIA.

– A ausência de justa causa deve constituir objeto de rígido controle por parte dos Tribunais e juízes, pois, ao órgão da acusação penal – trate-se do Ministério Público ou de mero particular no exercício da querela privada -, não se dá o poder de deduzir imputação criminal de modo arbitrário. Precedentes.

O exame desse requisito essencial à válida instauração da persecutio criminis, desde que inexistente qualquer situação de iliquidez ou de dúvida objetiva em torno dos fatos debatidos, pode efetivar-se no âmbito estreito da ação de habeas corpus.

(RTJ 168/853, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Constatada, assim, a possibilidade (excepcional) de controle jurisdicional da existência, ou não, de justa causa para a persecução penal, impõe-se observar, por necessário, que a análise dos documentos constantes das fls. 21/31 demonstra, claramente, que não houve, por parte dos ora pacientes, tal como bem salientado pela douta Procuradoria-Geral da República, qualquer comportamento que pudesse configurar, na espécie, a prática do crime previsto no art. 347 do Código Eleitoral.

Com efeito, os ora pacientes, em nenhum momento, recusaram cumprimento ou obediência a diligências, ordens ou instruções emanadas da Justiça Eleitoral ou opuseram-lhes embaraços à sua execução.

O que motivou o não-cumprimento imediato, pelos ora pacientes, da ordem judicial que determinava a entrega de dados sigilosos, Senhora Presidente, foi a falta, nos ofícios judiciais encaminhados à agência bancária, de informações essenciais e imprescindíveis à efetiva execução da medida solicitada pelo Juízo eleitoral, tais como o número do CPF do correntista e a delimitação temporal do período sobre o qual incidiria a quebra do sigilo bancário.


Impende observar, neste ponto, que os ora pacientes responderam, prontamente, a todos os ofícios remetidos pelo Juiz eleitoral, esclarecendo-o, motivadamente, da necessidade de se enviarem informações complementares, essenciais ao fiel cumprimento da determinação judicial de quebra do sigilo.

Vale referir, por extremamente relevante, que o ilustre magistrado da 140ª Zona Eleitoral, em Rio Verde/GO, remeteu, ao Banco Itaú S.A., quatro ofícios, que foram respondidos pelos ora pacientes em tempo razoável: (a) o primeiro ofício foi recebido em 12/09/2000 e respondido na mesma data, havendo sido entregue, na Zona Eleitoral, em 14/09/2000; (b) o segundo ofício foi recebido em 18/12/2000, respondido em 21/12/2000 e entregue, na Zona Eleitoral, em 28/12/2000; (c) o terceiro ofício foi recebido em 09/04/2002, respondido em 10/04/2002 e entregue, na Zona Eleitoral, em 17/04/2002; e (d) o quarto ofício foi recebido em 03/06/2002, respondido em 05/06/2002 e entregue, na Zona Eleitoral, em 10/06/2002.

É forçoso concluir, ainda, como anteriormente ressaltado, que os esclarecimentos solicitados pela instituição financeira (número do registro no Cadastro das Pessoas Físicas – CPF das pessoas investigadas e âmbito temporal compreendido pela quebra do sigilo) eram necessários, eis que – repita-se – constituíam dados imprescindíveis para o cumprimento da determinação judicial.

Vale registrar, neste ponto, recente decisão que o eminente Ministro CEZAR PELUSO, como Relator, proferiu no MS 25.812–MC/DF, e na qual esse ilustre magistrado ressaltou, com absoluta correção, dentre outros fundamentos, a imprescindibilidade da indicação do lapso temporal abrangido pela ordem de quebra do sigilo bancário, sob pena de desvirtuar-se a destinação dessa medida excepcional, convertendo-a em inadmissível ato de devassa indiscriminada da intimidade financeira da pessoa afetada pelo ato de “disclosure”.

Eis, no ponto, os fundamentos que deram suporte àquele ato decisório, da lavra do eminente Ministro CEZAR PELUSO:

(…) outro requisito é a existência de limitação temporal do objeto da medida, enquanto predeterminação formal do período que, constituindo a referência do tempo provável em que teria ocorrido o fato investigado, seja suficiente para lhe esclarecer a ocorrência por via tão excepcional e extrema. E é não menos cristalina a racionalidade desta condição decisiva, pois nada legitimaria devassa ilimitada da vida bancária, fiscal e comunicativa do cidadão, debaixo do pretexto de que Comissão Parlamentar de Inquérito precise investigar fato ou fatos específicos, que são sempre situados no tempo, ainda quando de modo só aproximado. Ou seja – para que se não invoque nenhuma dúvida ao propósito -, a Constituição da República não tolera devassa ampla de dados da intimidade do cidadão, quando, para atender a necessidade legítima de investigação de ato ou atos ilícitos que lhe seriam imputáveis, basta seja a quebra de sigilos limitada ao período de tempo em que se teriam passado esses mesmos supostos atos. Que interesse jurídico pode enxergar-se na revelação de dados íntimos de outros períodos?

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(…) em se tratando da acusação de fatos determinados, com datas certas, era mister que a Comissão fixasse o período de tempo dos dados cujo sigilo deveria ser levantado ou transferido. É que, sem tal delimitação temporal, a quebra abrangeria toda a vida bancária e fiscal – e, até, telefônica, cuja pertinência com o objeto da investigação não parece muito nítida -, transformando-se numa devassa ampla, inútil, impertinente e inconcebível!


Mas tem razão o impetrante, quando insiste na falta de fixação do período em que se devam dar as ditas transferências de sigilo. E isto basta por suster a tutela provisória que lhe deu o Presidente da Corte.

Do exposto, mantenho a decisão de deferimento da liminar.” (grifei)

Essa orientação, Senhora Presidente, perfilhada pelo eminente Ministro CEZAR PELUSO, em sua r. decisão, reflete, com absoluta fidelidade, o magistério jurisprudencial que o Supremo Tribunal Federal firmou em tema tão impregnado de graves conseqüências, como o referente à quebra do sigilo dos registros bancários (RTJ 182/955-956, Rel. Min. CELSO DE MELLO – MS 23.843/RJ, Rel. Min. MOREIRA ALVES, v.g.), eis que o ato de “disclosure” – mesmo quando decretado pelo Poder Judiciário – não pode transformar-se em instrumento de devassa indiscriminada da intimidade financeira das pessoas em geral:

A QUEBRA DE SIGILO NÃO PODE SER UTILIZADA COMO INSTRUMENTO DE DEVASSA INDISCRIMINADA, SOB PENA DE OFENSA À GARANTIA CONSTITUCIONAL DA INTIMIDADE.

A quebra de sigilo, para legitimar-se em face do sistema jurídico-constitucional brasileiro, necessita apoiar-se em decisão revestida de fundamentação adequada, que encontre apoio concreto em suporte fático idôneo, sob pena de invalidade do ato estatal que a decreta.

A ruptura da esfera de intimidade de qualquer pessoa – quando ausente a hipótese configuradora de causa provável – revela-se incompatível com o modelo consagrado na Constituição da República, pois a quebra de sigilo não pode ser manipulada, de modo arbitrário, pelo Poder Público ou por seus agentes. Não fosse assim, a quebra de sigilo converter-se-ia, ilegitimamente, em instrumento de busca generalizada, que daria, ao Estado – não obstante a ausência de quaisquer indícios concretos – o poder de vasculhar registros sigilosos alheios, em ordem a viabilizar, mediante a ilícita utilização do procedimento de devassa indiscriminada (que nem mesmo o Judiciário pode ordenar), o acesso a dado supostamente impregnado de relevo jurídico-probatório, em função dos elementos informativos que viessem a ser eventualmente descobertos.

(RTJ 182/560, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

Essa diretriz jurisprudencial, Senhora Presidente, reconhece que o direito à intimidade – que representa importante manifestação dos direitos da personalidade – qualifica-se como expressiva prerrogativa de ordem jurídica que consiste em garantir, em favor da pessoa, de qualquer pessoa, na esfera de sua vida privada, a existência de um espaço indevassável destinado a protegê-la contra indevidas interferências de terceiros, notadamente a do Poder Público.

Daí a correta advertência feita por CARLOS ALBERTO DI FRANCO, para quemUm dos grandes desafios da sociedade moderna é a preservação do direito à intimidade. Nenhum homem pode ser considerado verdadeiramente livre, se não dispuser de garantia de inviolabilidade da esfera de privacidade que o cerca” (grifei).


É certo que a garantia constitucional da intimidade não tem caráter absoluto. Na realidade, como já decidiu esta Suprema Corte, “Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição” (RTJ 173/807, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Isso não significa, contudo, que o estatuto constitucional das liberdades públicas — nele compreendida a garantia fundamental da intimidade — possa ser arbitrariamente desrespeitado por qualquer órgão do Poder Público, inclusive por órgãos do próprio Poder Judiciário.

Nesse contexto, põe-se em evidência a questão pertinente ao sigilo bancário, que, ao dar expressão concreta a uma das dimensões em que se projeta, especificamente, a garantia constitucional da privacidade, protege a esfera de intimidade financeira das pessoas.

Embora o sigilo bancário, também ele, não tenha caráter absoluto (RTJ 148/366, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – RTJ 173/805-810, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), deixando de prevalecer, por isso mesmo, em casos excepcionais, diante de exigências impostas pelo interesse público (SERGIO CARLOS COVELLO, “O Sigilo Bancário como Proteção à Intimidade”, “in” Revista dos Tribunais, vol. 648/27), não se pode desconsiderar, no exame dessa questão, que o sigilo bancário reflete uma expressiva projeção da garantia fundamental da intimidade – da intimidade financeira das pessoas, em particular -, não se expondo, em conseqüência, enquanto valor constitucional que é (VÂNIA SICILIANO AIETA, “A Garantia da Intimidade como Direito Fundamental”, p. 143/147, 1999, Lumen Juris), a intervenções estatais ou a intrusões do Poder Público, quando desvestidas de causa provável ou destituídas de base jurídica idônea.

Esse entendimento – é importante enfatizar – tem prevalecido na jurisprudência desta Suprema Corte, em decisões que conferem destaque e relevo à garantia constitucional da intimidade, quando afetada, injustamente, por atos estatais que lhe comprometem a integridade, porque praticados, pelo Poder Público, sem a observância dos limites jurídicos que restringem a atividade governamental:

A GARANTIA CONSTITUCIONAL DA INTIMIDADE, EMBORA NÃO TENHA CARÁTER ABSOLUTO, NÃO PODE SER ARBITRARIAMENTE DESCONSIDERADA PELO PODER PÚBLICO.

O direito à intimidade – que representa importante manifestação dos direitos da personalidade – qualifica-se como expressiva prerrogativa de ordem jurídica que consiste em reconhecer, em favor da pessoa, a existência de um espaço indevassável destinado a protegê-la contra indevidas interferências de terceiros na esfera de sua vida privada.

A transposição arbitrária, para o domínio público, de questões meramente pessoais, sem qualquer reflexo no plano dos interesses sociais, tem o significado de grave transgressão ao postulado constitucional que protege o direito à intimidade, pois este, na abrangência de seu alcance, representa o ‘direito de excluir, do conhecimento de terceiros, aquilo que diz respeito ao modo de ser da vida privada’ (HANNAH ARENDT).


O DIREITO AO SIGILO BANCÁRIO QUE TAMBÉM NÃO TEM CARÁTER ABSOLUTO CONSTITUI EXPRESSÃO DA GARANTIA DA INTIMIDADE.

– O sigilo bancário reflete expressiva projeção da garantia fundamental da intimidade das pessoas, não se expondo, em conseqüência, enquanto valor constitucional que é, a intervenções de terceiros ou a intrusões do Poder Público desvestidas de causa provável ou destituídas de base jurídica idônea.

O sigilo bancário não tem caráter absoluto, deixando de prevalecer, por isso mesmo, em casos excepcionais, diante da exigência imposta pelo interesse público. Precedentes. Doutrina. (…).

(MS 23.669-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, “inInformativo/STF nº 185/2000)

Daí a necessidade, enfatizada na decisão proferida pelo eminente Ministro CEZAR PELUSO (MS 25.812-MC/DF), de se estabelecer, no ato de quebra do sigilo bancário, uma precisa delimitação temporal destinada a restringir o âmbito de ruptura (sempre excepcional) da esfera de intimidade das pessoas.

Tal, porém, como bem assinalado pela douta Procuradoria-Geral da República, não se verificou na espécie, a evidenciar, por isso mesmo, a absoluta impossibilidade de os pacientes cumprirem, de forma legítima, a ordem de quebra de sigilo bancário emanada do magistrado eleitoral.

Todas essas circunstâncias que venho de referir, Senhora Presidente, bem demonstram que não houve, por parte dos ora pacientes, qualquer intenção de recusar cumprimento à ordem de quebra de sigilo bancário determinada pela Justiça Eleitoral.

Cumpre registrar, por oportuno, que a jurisprudência firmada pelo próprio E. Tribunal Superior Eleitoral tem advertido, a propósito do crime de desobediência, que a configuração desse delito, tipificado no art. 347 do Código Eleitoral, pressupõe a existência de dolo, sem o qual a conduta descrita no preceito primário de incriminação torna-se atípica (HC 240/PR, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – Rec. 11.661/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, v.g.).

Tal aspecto da questão foi bem realçado, em seu douto parecer, pelo ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr. EDSON OLIVEIRA DE ALMEIDA (fls. 136/138):

Têm razão os impetrantes. O ‘habeas corpus’, remédio jurídico-processual destinado à proteção da liberdade de locomoção, previsto no art. 5º, LXVIII e regulado nos arts. 647 a 667 do Código Penal, é o instrumento adequado ao trancamento da ação penal quando demonstrada, de maneira inequívoca e sem necessidade de profunda incursão probatória, a falta de justa causa para a ação penal. (…).

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Na hipótese dos autos, os documentos de fls. 21 a 45 mostram que os pacientes atenderam a todas as requisições da Justiça Eleitoral, e o atraso na entrega das informações ocorreu em virtude da própria mora do Juiz Eleitoral em informar os CPFs dos investigados e o período compreendido pela quebra do sigilo bancário, sendo que, somente para especificar este último, o Juízo demorou 1 (um) ano e 4 (quatro) meses, o que é facilmente verificável da leitura dos documentos de fls. 25 e 26, sendo desnecessária qualquer dilação probatória, vedada na via eleita.” (grifei)

Em suma, Senhora Presidente: o exame dos fundamentos em que se apóia esta impetração permite-me concluir que, no caso ora em análise, não há justa causa que possa legitimar a instauração, contra os pacientes, da “persecutio criminisora questionada nesta sede processual.

É preciso ter presente, finalmente – consideradas as gravíssimas implicações éticas e jurídico-sociais que derivam da instauração de “persecutio criminis” -, que se impõe, sempre, por parte do Poder Judiciário, rígido controle sobre a atividade persecutória do Estado, em ordem a impedir que se instaure, contra qualquer acusado (não importando de quem se trate), injusta situação de coação processual, pois, ao órgão da acusação penal (cuide-se de parte pública ou de parte privada), não assiste o poder de deduzir, em juízo, imputação criminal desvestida de um mínimo suporte probatório ou concernente a fato que não se revista de tipicidade penal.

Sendo assim, em face das razões expostas, e acolhendo, ainda, o parecer da douta Procuradoria-Geral da República, defiro o pedido de “habeas corpus”, para determinar a extinção definitiva do processo penal instaurado contra os ora pacientes (Processo-crime nº 222/2003 – 140ª Zona Eleitoral de Rio Verde/GO), invalidando, em conseqüência, desde a denúncia, inclusive, todos os atos processuais praticados na referida causa penal.

É o meu voto.

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