Preço dos calmantes

Refis é um fusível a impedir que empresa queime por inteiro

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4 de junho de 2006, 7h00

A Câmara Federal aprovou, em abril de 2006, a Medida Provisória 280 (nova Tabela do Imposto de Renda) com a Emenda 113, do deputado Luiz Carlos Haluy (PSDB-PR), que reabre, por 120 dias, o prazo do Refis.

Foi o suficiente para o secretário da Receita Federal, Jorge Rachid, vir de lá, muito bravo, protestar que seria impossível administrar tributos com um Refis a cada dois anos. De fato, o primeiro Refis, da Lei 9.464, é do ano de 2000. Em 1993, veio o Paes, também dito Refis II, Lei 10.684. E agora, com um pouco mais de dois anos, virá o Refis III.

O secretário da Receita Federal estaria coberto de razão se a tributação que ele administra (e, de justiça, reconheça-se que ele pegou o bonde andando), uma das mais altas do mundo, padecesse mínimo laivo de racionalidade. Ele mesmo, como funcionário público de carreira, sabe disto: 27,5% de IR-Fonte, mais 11% de INSS, mais os tributos sindicais, mais os tributos indiretos que paga dos serviços médicos, das escolas dos filhos e da aposentadoria que, de responsabilidade do Estado, o Estado não paga.

Com certeza, o doutor Rachid não se cuida (saúde) no SUS. Muito menos coloca os filhos nas escolas do analfabetismo (50% dos meninos que terminam o primário não sabem ler). Nem menos descuida de uma poupança à velhice a garantir alguma tranqüilidade a compensar as perdas da reforma da previdência que o partido que está no poder patrocinou.

A carga tributária do funcionário público (Rachid é funcionário público, auditor concursado) não é de apenas os aparente 40% do IR-Fonte e do INSS, mas de muito mais, quando se consideram os dispêndios da saúde, educação e previdência que cada qual tem de pagar do próprio bolso porque o Estado não cuida. Há mais um outro tributo, pesadíssimo: a “segurança”, também da área de falência do Estado — portões, alarmes, vigias, porteiros até os dentes, câmaras de 24 horas, cães ferozes, alarmes, coletes à prova de bala, apitos e rezas. A inquietude. E os calmantes!

Se a situação contribuinte, pessoa física, é desoladora, o que dizer da situação do contribuinte empresa? Evidente, não pode existir empresa sólida se seus consumidores estiverem falidos. Vejamos o que diz Rachid:

“O secretário da Receita Federal, Jorge Rachid, afirmou que a aprovação pela Câmara dos Deputados da emenda que reabre prazo para o Refis, programa de parcelamento de débitos tributários, ‘é um desrespeito para com quem paga imposto’. ‘Existem muitos contribuintes que pagam os tributos em dia e muitos que honram os parcelamentos anteriormente realizados. Muitas pessoas pagam com todo sacrifício. Essa medida é um desrespeito para quem honra com suas obrigações tributárias’, disse Rachid.

“Para o secretário, a decisão da Câmara, que ainda terá de ser referendada pelo Senado, acarreta ‘concorrência desleal’. ‘Nessa situação, quem não paga imposto fica em condições melhores de competir no mercado. Trata-se de um estímulo à concorrência desleal, pois uns pagam e outros não’, sentenciou. ‘Não é possível a cada dois anos ter um parcelamento especial’, completou, lembrando que a Receita já tem um programa de parcelamento regular de cinco anos para quem tem dívidas com o Fisco.

“Rachid disse que o governo vai tentar reverter a medida no Senado. ‘Vamos mostrar nossa preocupação, sobretudo com o contribuinte que paga imposto. Acredito na sensibilidade dos parlamentares’, afirmou. Mas o secretário deverá encontrar um ambiente político mais difícil que o da Câmara dos Deputados, já que no Senado o governo não tem maioria de votos. Questionado se o governo vai vetar a emenda caso o Congresso aprove a proposta, Rachid respondeu: ‘Ainda é prematuro dizer’.” [Diário do Nordeste, 13/04/06]

O pior é que o secretário Rachid, em autêntico ato falho, revela o quantitativo de contribuintes até agora excluídos do Refis I:

“O secretário informou que dos 129 mil contribuintes que aderiram ao primeiro Refis, em 2001, existem 25,2 mil em situação regular. No segundo programa de parcelamento, o Paes, cerca de 48% continuam ativos”. [Diário do Nordeste, 13/4/06]

Ora, se o parcelamento houvesse sido tão absurdamente vantajoso, tal como Rachid protestou, como explicar que estejam ativos do primeiro Refis apenas 20% daquele quantitativo inicial? A prova provada, com as exclusões em massa relatada por Rachid, não é que sejam sonegadores. Se o fossem, não teriam apresentado o pescoço ao parcelamento. A prova provada é de que a conta dos tributos vem se tornando tão insuportável (por conta do baixo ou nenhum desenvolvimento nacional) que, mesmo com os parcelamentos, ainda assim 80% dos contribuintes não puderam cumpri-lo.

Pois bem, o Projeto de Conversão foi aprovado pela Câmara e subiu para o Senado, onde está deste o dia 19 de abril de 2006. A MP 280, com a emenda do Refis III, terá de ser votada, sob pena de perder a eficácia, até o dia 16 de junho de 2006, quando se completam os 60 dias de sua única prorrogação possível. Mas há de ser votada antes, posto que já está trancando a pauta do Congresso Nacional. Como se trata da MP do novo IR, não há hipótese de deixar de ser aprovada, com Refis e tudo. O problema, por enquanto, a ameaça rachideana a detonar o veto presidencial.

Não será fácil! Nem de um lado, SRF, governo, ano político; nem do outro, a crise, o câmbio, a febre aftosa, a febre aviária, a Varig, a quebra do agronegócio e o preço dos calmantes.

O Refis III, chamemo-lo assim, é fundamental a trazer de volta à economia formal aqueles milhares que não puderam cumprir os anteriores, bem como recepcionar os novos, em dificuldade.

Falar em apropriação indébita, regra geral, é apenas desconhecimento de como uma empresa em dificuldades funciona. Esta semana, um cliente contou-me que vendeu a camionete para pagar o 13º, vencido desde o ano passado. Os tributos? Como assim? A lei (CTN) garante o privilégio dos créditos trabalhistas. Antes o estômago do funcionário que as burras do príncipe. Está na lei.

Pura ficção imaginar que o empresário possui 100 unidades monetárias; entrega-as, em pagamento salarial, 100, ao trabalhador, que lhe devolve 11 para serem repassadas à previdência social. O empresário, ladrão, em vez de recolher o que descontou do funcionário, apropria-se indebitamente. Regra geral, aqueles 89 pagos — quitados aos pedaços, com atraso, é claro, um vale daqui, uma mercadoria dali. Há empresas pagando salários em sapatos, sacos de soja, galinhas, patos e perus. A lei refere descontar, um cognato do verbo contar. Se o empresário não possui os 100 para contar, como falar em descontar?

Apropriação indébita? Gostaria muito de ver a quem assim fala, por trás do balcão de uma empresa, salários atrasados, bens bloqueados, Serasa, Cadin. Em suma, a empresa (economia nacional) quebrada. Nem todos são ladrões, por favor. A imensa maioria, gente honesta que quer pagar — tanto assim que parcelou — mas está excluída.

Na crise, o Refis é um fusível a impedir que a instalação incendeie-se por inteiro. Garante a distribuição de renda, na medida em que impede a quebra dos pequenos, com a conseqüente concentração da economia. Torna-se, com o Refis, possível uma certidão, ainda que positiva com efeitos de negativa. Reacendem-se as esperanças! Com a empresa livre das amarras do Cadin, a reabertura ao crédito, um fôlego!

Abaixo, o texto em votação no Senado. Fale com o seu político, do cabo eleitoral ao senador. Sim, aos políticos!

“Acrescente-se o seguinte artigo à MP 280/2006:

Artigo — Fica reaberto, por 120 (cento e vinte) dias a contar da data da publicação desta Lei, o prazo de opção ao Programa de Recuperação Fiscal – Refis, de que trata a Lei nº 9.964, de 10 de abril de 2000, com as alterações promovidas pelas Lei nº 10.189, de 14 de fevereiro de 2001 e 10.684, de 30 de maior de 2003.

§ 1º. O disposto no caput deste artigo aplica-se inclusive às pessoas jurídicas que sido excluídas do Programa.

§ 2º. Poderá ser abrangidos os débitos referidos no art. 1º da Lei 9.964, de 10. de abril de 2000, com vencimento até janeiro de 2006.

§ 3º. Nas hipóteses de exclusão previstas no art. 5º da Lei 9.964, de 10 de abril de 2000, deverá haver prévia notificação do contribuinte.

§ 4º. Alternativamente ao ingresso no Refis, a pessoa jurídica poderá optar pelo pedido de parcelamento, em até 180 (cento e oitenta) parcelas iguais, mensais e sucessivas dos referidos débitos, observadas todas as demais regras aplicáveis àquele Programa”

Artigo — O § 4º do art. 3º e o art. 15, caput, e respectivo § 3º, da Lei nº 9.964, de 10 de abril de 2000, passam a vigorar com a seguinte redação:

Artigo 3º

……….

§ 4º Ressalvado o disposto no § 3º, a homologação da opção pelo Refis é condicionada à prestação de garantia ou, à critério da pessoa jurídica, ao arrolamento dos bens integrantes do seu patrimônio, ainda que de valor inferior ao débito consolidado, na forma do art. 64 da Lei nº 9.532, de 10 de novembro de 1967, dispensada a apresentação de qualquer outra garantia.

Artigo 15 — É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei 8.137, de 27 de novembro de 1990, e no art. 95 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no Refis.

§ 3º. Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de parcelamento.”

Vai dar muita confusão tentar aplicar a Emenda 113 do jeito que está. Ela reabre o Refis I, não o Refis II. Se fosse só isto, tudo bem. Mas dispõe que o Refis I será reaberto com as modificações do Refis II. Ambos têm vantagens e desvantagens, dentre outras, incompatíveis:

– O Refis I não aceita a adesão de empresas financeiras. O Refis II, sim.

– O Refis I parcela a contribuição social dita “apropriadada”. O Refis II, não.

– O Refis I exige 1,2% do faturamento. O Refis II, 1,5%.

Como compatibilizar o aparente saco de gatos? Muito fácil! Basta aplicar o artigo 112 do CTN que determina que, na dúvida, opte-se ao menos maléfico (à cidadania) ao contribuinte:

“Artigo 112 — A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:

I – à capitulação legal do fato;

II – à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos;

III – à autoria, imputabilidade, ou punibilidade;

IV – à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação”.

A rigor, foi uma emenda (louve-se a batalha do deputado Luz Carlos Haluy) conseguida na pertinácia. Ele lá, no Plenário, falando sozinho! Não houve tempo de aperfeiçoá-la como seria o desejável. Mas uma regulamentação (decreto) que, com honestidade, reconheça a crise, saberá harmonizar ambos, I e II, em direção a este Refis III.

Quando teremos o Refis IV? Dentro de pouco mais de dois anos, naturalmente, meu caro senhor secretário Jorge Rachid! Se as condições do emprego não melhorarem e da economia (crescimento do país abaixo da quantidade de meninos que todos os anos nascem), há risco de vir antes.

Na verdade, não existe carga tributária alta. O que existe é baixo desenvolvimento econômico. Como está. Abaixo da média mundial. A crise. A inadimplência. A quebra. O câmbio. Os juros. E as pragas da agricultura. Muitas.

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