Procuradoria particular

Projeto prevê que agente público seja defendido pelo Estado

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4 de junho de 2006, 7h00

Projeto de Lei do governo de São Paulo propõe que agentes públicos processados por atos praticados no exercício da função sejam defendidos pelos advogados do estado. A proposta do governador Cláudio Lembo altera a Lei Orgânica da Procuradoria Geral do Estado, e segundo especialistas, estaria em confronto com a Constituição Federal.

Hoje, o agente contrata um advogado particular para se defender. Com o projeto, se um secretário, ou governador ou chefe de seção for acusado de improbidade administrativa, será defendido por um advogado do Estado, à custa do contribuinte.

Para o ex-procurador-geral do Estado Márcio Sotelo Fellipe o projeto é “flagrantemente inconstitucional”. Sotelo Fellipe invoca em favor de seu ponto de vista o artigo 132 da Constituição Federal. Pela regra, “os procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas.”

Ou seja, somente compete aos procuradores do estado a representação judicial e a consultoria jurídica da administração do estado que os contrata. Eles não estão habilitados pela Constituição para a defesa de qualquer pessoa física, seja agente público ou político.

“Mesmo que não existisse a inconstitucionalidade, o projeto teria outros graves problemas técnicos e políticos. Parece estabelecer uma condição razoável — a autoridade tem de ter praticado o ato de acordo com orientações gerais ou específicas da PGE. No entanto, como toda questão jurídica, a condição ‘orientação geral’ comporta um amplo leque de possibilidades. O receio é que se converterá num modo de o agente público se livrar do encargo de ter de se defender mesmo praticando irregularidade. Ou até mesmo converter-se em estímulo, já que deixa de sofrer certo ônus por isso”, defende Márcio Sotelo Fellipe.

O advogado constitucionalista Pedro Estevam Serrano também acredita que a proposta é inconstitucional. “A função da procuradoria é defender a administração pública, não fazer a defesa pessoal dos agentes públicos. Servidor só tem direito a Justiça gratuita se for pobre, no sentido exato da palavra. Já os agentes públicos precisam contratar advogado, como qualquer outro cidadão”, diz.

Voz do apoio

O atual procurador-geral Elival da Silva Ramos defende o projeto. Numa exposição de motivos encaminhada ao governador, ele diz que a medida, “além de significativo aprimoramento institucional, é um poderoso mecanismo a serviço dos direitos da cidadania”.

Segundo Ramos, a alteração “disponibiliza instrumento capaz de garantir tranqüilidade para que toda e qualquer pessoa do povo possa exercer, satisfeitos os requisitos legais, os muitos postos de comando existentes no complexo e multifário organograma do Poder Executivo, sem o temor da ruína moral ou material, desde que os respectivos atos tenham sido forjados à luz dos princípios republicanos, sendo evidente, nessa perspectiva, o público interesse de sua adoção em nosso Estado”.

Conheça o projeto e as explicações do atual procurador-geral

Lei Complementar nº , de de de 2006.

Acrescenta dispositivos na Lei Complementar nº 478, de 18 de julho de 1986 – Lei Orgânica da Procuradoria Geral do Estado, e dá providências correlatas.

O Governador do Estado de São Paulo:

Faço saber que a Assembléia Legislativa decreta e eu promulgo a seguinte lei complementar:

Artigo 1º – Ficam acrescidos, na Lei Complementar nº 478, de 18 de julho de 1986 – Lei Orgânica da Procuradoria Geral do Estado, os dispositivos adiante enumerados:

I – no artigo 2º, o seguinte inciso XVII:

“XVII – representar, mediante requerimento expresso, as autoridades do Poder Executivo e das entidades autárquicas do Estado, exceto das universidades públicas, nas ações judiciais e processos administrativos de que sejam partes em razão de atos praticados no exercício regular do cargo ou função, desde que em consonância com as orientações gerais ou específicas do respectivo órgão jurídico.”

II – no artigo 6º, o seguinte inciso XI:

“XI – estabelecer os limites, formais e materiais, da representação a que se refere o artigo 2º, inciso XVII, desta lei complementar.”

Artigo 2º – O Procurador Geral do Estado editará normas para detalhar o cumprimento do disposto nesta lei complementar.

Artigo 3º – Esta lei complementar entra em vigor na data de sua publicação.

Palácio dos Bandeirantes, aos de 2006.

Cláudio Lembo

Explicações do atual procurador-geral

EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS

Senhor Governador:

Tenho a honra de submeter à consideração de Vossa Excelência o anexo anteprojeto de lei complementar que acrescenta dispositivos na Lei Complementar nº 478, de 18 de julho de 1986 – Lei Orgânica da Procuradoria Geral do Estado, com o objetivo primordial de atribuir à referida Instituição, observadas as condições que estabelece, competência para a representação judicial e administrativa das autoridades que identifica.

Nessa senda, considero imperioso apresentar, em linhas gerais, as razões da propositura e os principais aspectos de seu conteúdo normativo.

Cumpre ter presente, de início, que o artigo 99 da Constituição Estadual enumera várias das funções institucionais da Procuradoria Geral do Estado, mas o elenco não é exaustivo, como expressamente o indica esse mesmo dispositivo, ao ressalvar que outras lhe podem ser conferidas por lei (inciso X).

De outro lado, ainda em caráter preliminar, tem-se que as competências da Procuradoria Geral do Estado, matéria típica da respectiva lei orgânica, devem ser objeto de lei complementar, nos exatos termos do artigo 98, § 1º, combinado com o artigo 23, parágrafo único, item 3, da Carta Bandeirante.

Recepcionada pela ordem constitucional vigente, a Lei Complementar nº 478, de 18 de julho de 1986, é o veículo da atual Lei Orgânica da Procuradoria Geral do Estado, cuidando o artigo 2º do elenco de atribuições institucionais e o artigo 6º das competências do Procurador Geral do Estado.

Desse quadro decorre a opção formal pelo anteprojeto de lei complementar em apreço, pois que se pretende ampliar o campo funcional da Instituição.

Sobre atribuir competência à PGE para representar as autoridades do Poder Executivo nas ações judiciais e processos administrativos em que figurem como parte, em razão de atos praticados sob orientação do respectivo órgão jurídico e no exercício regular de cargo ou função, trata-se de reproduzir, em nosso Estado, medida bastante justa e salutar, já um tanto vetusta no âmbito da União, e que vem sendo aprimorada e consagrada também na legislação de outros entes federativos.

De fato, o ordenamento jurídico federal contempla espécie análoga desde o Decreto-lei nº 5.335, de 22 de março de 1943, hoje subsistente na forma prevista pelo artigo 22 da Lei nº 9.028, de 12 de abril de 1995 (diploma que dispõe sobre o exercício das atribuições institucionais da Advocacia-Geral da União), alterado pelo artigo 50 da Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1998, na redação dada pelo artigo 1º da Medida Provisória nº 2.143-31, de 2 de abril de 2001, ainda em vigor, por força do disposto no artigo 2º da Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001.

Registre-se que o supracitado artigo 22 da Lei nº 9.028/95 foi alvo de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, até o momento não julgada em seu mérito, conquanto tenha sido indeferida a liminar e pela improcedência do pedido a manifestação da Procuradoria Geral da República (ADI nº 2888).

Por sua autoridade e pertinência, vale reproduzir trecho do posicionamento do Relator daquela ADI, o ilustre Ministro Gilmar Mendes, externada quando no exercício do cargo de Advogado Geral da União, nos seguintes termos:

“Tornou-se objeto de acesa e surpreendente controvérsia a “descoberta” por parte do meio jurídico nacional de que se encontra em vigor – já há vários anos – autorização para que os órgãos de representação judicial da União ofereçam também a defesa da legitimidade dos atos funcionais das autoridades públicas. Sustentaram alguns que a defesa dos atos funcionais das autoridades públicas por parte dos órgãos de representação judicial da União poderia vir a configurar um suposto “conflito de interesses” entre, de um lado, o mister de defesa do patrimônio e do interesse público e, de outro, a atuação em defesa de atos funcionais de autoridades públicas.

Tal pré-compreensão não resiste a um mínimo e superficial exame de questão – o que se oferece nas seguintes e brevíssimas considerações.

Em verdade, a Advocacia-Geral da União encontra-se meramente autorizada por lei a proceder à defesa de servidor público em juízo quando acionado este por ato ou fato praticado no exercício do seu múnus público. Assim firmam as disposições permissivas do art. 22 da Lei nº 9.028, de 12 de abril de 1995, com as alterações trazidas pelo art. 50 da Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1998, na redação dada pelo art. 1º da Medida Provisória nº 2.143-31, de 2 de abril de 2001, que, como dito, nem tão recentes são, na essência – com efeito, regramento semelhante já se havia introduzido entre nós por meio do Decreto-lei nº 5.335, de 22 de março de 1943.

Nos termos da expressa imposição legal constante da MP nº 2.143-31, de 2001, essa “autorização” encontra-se condicionada por dois requisitos: a) a natureza estritamente funcional dos atos praticados, e b) a configuração de interesse público na defesa da legitimidade de tais atos (“quanto a atos praticados no exercício de suas atribuições constitucionais, legais ou parlamentares, no interesse público, especialmente da União, suas respectivas autarquias e fundações, ou das Instituições mencionadas”). Essa regulação, obviamente, obriga a um juízo prévio de valor quanto à verossimilhança das alegações postas na ação contra o servidor ou agente público, justamente para prevenir situações em que o servidor, acionado, que tenha contra si severas e pesadas acusações de prática de atos ilegítimos (com substanciais elementos sinalizadores ou evidenciadores de tal procedimento, nos autos), venha a ter a prática de tais atos, pelo menos no primeiro momento processual, indevidamente legitimada pela assunção de sua defesa pela Advocacia-Geral da União.

Dito isso, resta evidente que a autorização legal – que hoje alcança igualmente os titulares de cargos efetivos e não somente aqueles ocupantes de cargos em comissão e funções de direção e assessoramento superior – jamais haverá de implicar conflito algum de interesses entre a defesa do patrimônio público e a defesa da autoridade pública. Com efeito, se os atos a serem defendidos vinculam-se estritamente ao desempenho das atribuições institucionais dos agentes públicos e se somente se oferecerá defesa em havendo interesse público em fazê-lo, é manifesto que o dado paradigmático reside na existência de um ato oficial veiculador de manifestação do próprio e autêntico interesse público. Em verdade, o crivo decisivo haverá de restar configurado exatamente na existência de interesse público em defesa do ato oficial eventualmente impugnado. Assim, verificado o interesse público na defesa do ato, haverá a representação judicial da União de contestar a impugnação contra ele oferecida, o que, ao contrário do que sugerido por alguns, constituirá ato evidentemente coerente com a defesa do agente público responsável pela prática do ato impugnado. Essas exigências evidenciam, destarte, que somente se defenderá o agente público se houver interesse público na defesa do ato por ele praticado, o que elimina a mais remota possibilidade de conflito de interesse e afigura-se obviamente conseqüência absolutamente natural da defesa do ato impugnado.

A esse respeito, assevere-se que a Advocacia-Geral União já se recusou a promover a defesa de agentes políticos – embora para tal expressamente provocada – por não identificar os pressupostos legais que a autorizariam.

Imagine-se, por outro lado, a circunstância em que agente público cujos atos representam a mais inequívoca manifestação da legalidade e do interesse público queda alvo de dezenas de ações judiciais decorrentes de motivações eminentemente políticas. Em tal contexto, seria legítimo que viesse o Estado a promover a defesa dos atos praticados e declinasse do dever moral de promover a defesa da prática desses mesmos atos pelo agente público responsável? Seria igualmente ético relegar o agente público à ruína financeira decorrente da necessidade de fazer-se representar em juízo – incontáveis vezes – a expensas próprias?

Esboçadas a ausência de conflitos de interesses e exigência de ética e coerência imposta pela defesa dos atos oficiais dotados de interesse público, importa demonstrar a ausência de inconstitucionalidade na disciplina impugnada.

Muito embora incapazes de indicar o fundamento constitucional da alegada inconstitucionalidade, sustentam alguns que o alegado conflito de interesses macularia a norma impugnada. Demonstrada acima a simples inexistência de um tal conflito de interesses, é claríssima a improcedência da alegação.”

Na esteira das lúcidas considerações supra, o projeto de lei complementar anexo pretende, em seu artigo 1º, acrescentar dispositivo (inciso XVII ao artigo 2º) na Lei Orgânica da PGE, de sorte a possibilitar que a Instituição patrocine a defesa de autoridades estaduais, sempre que seus atos resultem de regular exercício de cargo ou função e estiverem em sintonia com as orientações do respectivo órgão jurídico.

E isto porque é razoável pressupor, nessas condições, que tais atos foram pautados pelo interesse público e guardaram estrita observância aos princípios reitores da Administração Pública, sendo de todo injusto que os ônus de prová-lo, em Juízo ou fora dele, sejam suportados não pelo ente estatal a que serviu, em princípio de forma lícita, determinado agente público, mas pela própria pessoa, no mais das vezes já então desvestida do cargo ou função e, por conseqüência, dos poderes que lhe dariam acesso a informações, documentos e outros subsídios imprescindíveis.

De igual modo, ao pretender inserir outro dispositivo na mesma Lei Orgânica da PGE (inciso XI ao artigo 6º), a propositura tem por objetivo assegurar que a definição dos limites formais e materiais em que se dará o exercício da novel atribuição institucional, seja de competência do próprio Procurador Geral do Estado, por se tratar do chefe da Instituição e em face das prerrogativas e responsabilidades inerentes ao cargo.

Finalmente, a propositura cuida, em seu artigo 3º, de autorizar o Procurador Geral do Estado a editar as normas que se fizerem necessárias ao bom e fiel cumprimento do disposto no diploma legal projetado.

Por tudo isto, Senhor Governador, estou absolutamente convencido de que a medida ora proposta consubstancia, para além de significativo aprimoramento institucional – e inegavelmente também o é –, poderoso mecanismo a serviço dos direitos da cidadania, pois que disponibiliza instrumento capaz de garantir tranqüilidade para que toda e qualquer pessoa do povo possa exercer, satisfeitos os requisitos legais, os muitos postos de comando existentes no complexo e multifário organograma do Poder Executivo, sem o temor da ruína moral ou material, desde que os respectivos atos tenham sido forjados à luz dos princípios republicanos, sendo evidente, nessa perspectiva, o público interesse de sua adoção em nosso Estado.

Expostas, assim, as razões determinantes da anexa propositura, submeto o assunto à elevada consideração de Vossa Excelência, com proposta de que determine a elaboração do adequado expediente legislativo e seu oportuno envio à Augusta Assembléia Legislativa.

GPG, aos 9 de maio de 2006.

ELIVAL DA SILVA RAMOS

PROCURADOR GERAL DO ESTADO

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