Filhotes da ditadura

O Estado brasileiro faz uma segurança envergonhada

Autor

4 de junho de 2006, 7h00

A longa convivência de presos políticos com criminosos comuns, nas mesmas celas, durante o regime militar, proporcionou um intercâmbio de tecnologia que viria a misturar o DNA dos dois segmentos. Enquanto os presos políticos absorveram o jogo pesado da criminalidade para o roubo, por exemplo; os criminosos comuns incorporaram em sua ação as táticas e a estratégia da subversão e do terror.

A explicação é de um ex-comandante da Rota, o coronel Hermes Bittencourt Cruz, ao ser perguntado sobre o estado de terror implantado com os ataques promovidos pelo PCC em São Paulo. O coronel admite que o nível de articulação organizada demonstrada revela a presença de traços táticos propiciados pela promiscuidade com policiais que se bandearam para o lado do crime, mas as “raízes tecnológicas” das facções criminosas, afirma ele, estão plantadas na época do regime militar.

Hoje presidente da Associação dos Oficiais da Reserva da PM, o coronel Hermes Bittencourt Cruz afirma que a evolução desigual do poder de repressão do Estado e do poder de fogo do crime organizado é a principal razão da explosão de violência no país. “Hoje em dia o Estado faz uma segurança envergonhada, enquanto os bandidos executam com desenvoltura as operações de guerrilha que aprenderam com os presos políticos da ditadura”, explicou o coronel em entrevista à Consultor Jurídico.

O coronel não diz, mas não custa lembrar que muitos dos supostos instrutores de guerrilha do passado ocupam posições de mando no atual governo. Da mesma forma vale destacar que o coronel fala na eficácia da repressão policial com conhecimento de causa, já que foi comandante da Rota, grupo de elite da Polícia Militar de São Paulo famoso pela contundência de suas ações.

“Sou um cara que defende os direitos humanos, mas entendo que o criminoso é alguém que causou um dano à sociedade e tem de ter a punição adequada”, diz. Para ele, a onda de violência que tomou conta de São Paulo demonstra a perda de controle da situação pelo Estado. “O criminoso tem mais medo do PCC do que da Polícia.”

Contrário à pena de morte, o coronel Cruz não acredita que o agravamento das penas seja o caminho para enfrentar a criminalidade. O que intimida, segundo ele, não é o tamanho da pena mas a certeza da punição imediata. “A prisão não é solução para o criminoso, mas é solução para a população que vive acuada pelo criminoso.”

O coronel Cruz ingressou no Exército em 1957 e transferiu-se para a Polícia Militar no fatídico ano do Golpe Militar de 1964. Na PM, além de comandar da Rota, dirigiu a Academia do Barro Branco, onde se formam os homens da força pública de São Paulo. Atualmente, é presidente da Associação Nacional dos Oficiais da Reserva.

Participaram da entrevista também os jornalista Cláudio Júlio Tognolli, Márcio Chaer e Maurício Cardoso.

Conjur — Como o crime se tornou organizado?

Hermes Bittencourt Cruz — Durante o regime militar, os presos políticos ficavam em presídios junto com os presos comuns. A conseqüência disso é que os presos políticos ensinaram as técnicas de guerrilha para os presos comuns. Quando passamos da ditadura para a democracia, a Polícia foi inibida, mas os bandidos trouxeram o que aprenderam na ditadura para o regime democrático. Para controlar isso, a segurança tinha de ser feita como era antes. Mas os governantes atuais não querem porque acham que é uma regressão. Por isso, hoje o Estado faz uma segurança envergonhada enquanto os bandidos fazem as operações de guerrilha como aprenderam lá atrás.

ConJur — A presença de policias presos contribui para esta organização do crime?

Hermes Bittencourt Cruz — Sem dúvida. Os policiais presos levam para os presídios as técnicas que eles aprenderam. Outro agravante é o policial temporário. Eles fica dois anos na Polícia e depois sai desempregado. E aí o que ele vai fazer? Mao Tse Tung pregava: ser mais forte que o inimigo, atacar dez contra um. Recuar, fugir rapidamente para impedir reação e chegada de reforços. Variar métodos de ação e enxertar as atividades com ardis inesperados. Criar boatos habilmente espalhados. Agir com incursão, ataque e emboscadas. Todos esses princípios são de Mao Tse Tung. Não é isso o que eles estão fazendo? Mas o Marcola não leu Mao Tse Tung. Então, alguém ensinou isso para ele.

ConJur — O que representa a onda de ataques em São Paulo atribuídos ao PCC [Primeiro Comando da Capital]?

Hermes Bittencourt Cruz — Foi um enfraquecimento do poder intimidativo do Estado. A pessoa tem de ter medo de praticar o crime. Sem a pena imediata e a certeza da punição, o sujeito fica liberado para praticar o crime.

ConJur — Então não precisamos aumentar o rigor da lei.

Hermes Bittencourt Cruz — Não precisa. Eu também não sou a favor da pena de morte. Existem dois tipos de punição. Uma delas é aquela que o pai pratica em casa quando retira uma coisa boa do seu filho, a televisão, por exemplo. Outro tipo de punição é acrescentar algo ruim. Nos presídios, não acontece isso. Acrescenta-se algo ruim ao criminoso ao trancá-lo na prisão, mas o presídio não retira nada de bom da vida dele. Lá dentro, é um Estado dentro de um Estado. Eles têm seus próprios códigos e até pena de morte.


ConJur — A queda do poder intimidativo do Estado explica tudo o que aconteceu em São Paulo?

Hermes Bittencourt Cruz — É um fator. O Estado perdeu o controle. Construiu um muro, colocou uma população lá dentro, aparentemente isolada do meio externo e cercada por guardas. Isso criou um Estado paralelo dentro dos presídios. Além disso, o poder intimidativo do PCC, por exemplo, é maior do que o do Estado. Se o bandido deve para o PCC, ele morre. Então ele paga a dívida roubando ou matando policial. O Estado não manda nada dentro do presídio. É um gado que está lá dentro e se rege por suas próprias leis. Outra questão é que o crime no Brasil é uma atividade econômica viável e sem risco, segundo Liliana Pezzin, especialista da Fipe [Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas].

ConJur — Sem risco?

Hermes Bittencourt Cruz — Pesquisa do professor José Pastori mostra que de cada 100 crimes no Brasil, menos de 1 é punido. No Brasil, os três fatores que estimulam o crime, segundo um tese de um criminólogo de Nova York, são bastante presentes. O primeiro deles é a frustração de necessidade — alimento, carro, sexo, dinheiro e outros. Quanto maior o grau de frustração, maior a probabilidade de a pessoa praticar o crime. Outro fator é a inibição interna. O processo educacional, religioso e filosófico faz com que a pessoa desenvolva inibidores internos. Quanto mais altos forem os inibidores internos, menor a probabilidade de se cometer um crime. O último fator são os inibidores externos — lei, Polícia, sistema prisional. Quanto mais baixos eles forem, maior a chance de o cidadão praticar um crime. Estes são os três fatores mais salientes, mas existem outros.

ConJur — Como o senhor distribuiria o peso de cada um desses fatores para o crime no Brasil?

Hermes Bittencourt Cruz — Eu daria um ponto para os inibidores externos, quatro para os internos e cinco para a frustração. As necessidades humanas se satisfazem de maneira hierárquica e prioritária. A maior necessidade é a alimentação. Mas, se a pessoa está alimentada, mas numa zona de guerra, sua prioridade será a segurança. A hierarquia das necessidades humanas pode mudar de ordem. Por isso, quando vai fazer um trabalho em um determinado lugar, a Polícia tem de levar em conta essas prioridades.

ConJur — Qual é a mentalidade do policial brasileiro?

Coronel Hermes Bittencourt Cruz — O policial pensa: eu tenho que ser visível, a população tem que me ver, eu tenho que ser encontrável a toda hora e tenho que ter uma capacidade de resposta. Essa é a cultura do brasileiro, que fica horas na fila de banco mas grita e quer que a Polícia se apresente. No entanto, a Polícia brasileira não tem condições de oferecer isso para o cidadão, pela falta de dinheiro e pela grande demanda no país.

ConJur — O senhor concorda que, no Brasil, a insegurança chegou a tal ponto que a principal preocupação do policial é atirar primeiro?

Hermes Bittencourt Cruz — O policial brasileiro tem um quadro de percepção que é o seguinte: o bandido está armado e vai atirar nele. Por isso, se a pessoa abordada faz um determinado gesto, põe a mão na cintura, o policial acha que ele vai tirar uma arma. Tenho um exemplo: eram 10 horas da noite quando um cidadão, que saía de um culto religioso, foi abordado por um policial. Ele enfiou a mão no bolso para pegar sua Bíblia e, por causa desse gesto, levou um tiro. Isso é o quadro perceptual do policial.

ConJur — O senhor defende a tese de que a Polícia deveria investir mais nas mulheres. Por quê?

Coronel Hermes Bittencourt Cruz — Nas favelas porto-riquenhas, o homem abandona o lar e a mulher passa a ser referência de educação para os filhos. As meninas seguem o modelo feminino da mãe e os meninos obtêm o modelo masculino na rua. Mesmo assim, a mãe é o centro da família e, mesmo que a sobrevivência desse menino esteja lá fora, ele depende da mãe. Ele desenvolve um sentimento de temor referencial da mãe. O mesmo deve acontecer nas favelas brasileiras. O bandido respeita muito a mãe. É a cultura do matriarcado. Por isso, acredito que, se as policiais femininas fossem mais exploradas no combate a esse tipo de bandido, o sucesso seria maior e a violência seria menor, em razão desse temor reverencial.

ConJur — Mas ela deveria ser usada diretamente no combate ao crime?

Hermes Bittencourt Cruz — Acho que sim, principalmente em favelas. A mulher é símbolo de proteção, é mais bem recebida. Enquanto a mulher é símbolo de apaziguamento, o policial homem pode estimular a agressividade contra ele. Dificilmente um homem tem reações agressivas contra uma mulher.

ConJur — Então podemos dizer que o homem desencadeia a agressividade em outro homem, numa espécie de competição.

Hermes Bittencourt Cruz — É preciso distinguir agressividade de violência. A agressividade surge da necessidade natural do homem de preservar a espécie. Por isso, temos a agressividade que é necessária para a sobrevivência. Quando essa agressividade se torna desnecessária, começamos a falar em violência.


ConJur — A mulher é valorizada na Polícia?

Hermes Bittencourt Cruz — A Polícia está descobrindo a mulher hoje. Antes, era usada para tratar de idoso, criança e mulheres. Hoje, já existem mulheres que são comandantes de unidades, de tropas masculinas. A mulher é mais disciplinada, é mais ordenada, é mais acostumada ao sofrimento e reclama menos. Ela também sabe administrar melhor os conflitos. Mas alguém já ouviu falar em colete a prova de balas feminino? Só agora estão pensando em um modelo feminino.

ConJur — Que motivação o policial tem para defender a população, arriscando a sua própria vida?

Hermes Bittencourt Cruz — As pessoas são movidas por valores aprendidos na família, no meio em que convivem. Quando o policial tem esses valores desenvolvidos, leva isso para a Polícia. Além disso, a Polícia é uma possibilidade de emprego. A Polícia Militar tem a vantagem de ser muito democrática. O policial tem a expectativa de promoção. Eu, por exemplo, fui soldado, cabo, sargento e cheguei a coronel sem nenhum padrinho, só estudando e me desenvolvendo. O mesmo não acontece na Polícia Civil. Lá, o investigador tem de fazer um concurso para ser promovido, não interessa se ele é o melhor na sua função ou não. A carreira é blindada. A Polícia, no geral, garante ao policial uma estabilidade de emprego e dá um status dentro da sociedade. Apesar de que, hoje, o policial tem de esconder que é policial para não ser morto.

ConJur — Uma estatística da Secretaria da Segurança Pública do estado de São Paulo diz que a razão do afastamento de 90% dos policiais civis punidos foi corrupção. Já para os policiais militares, 90% dos afastados foram punidos por questões de violência. Por que o PM é violento?

Hermes Bittencourt Cruz — Ele é um cara estressado porque ganha apenas R$ 1,2 mil por mês.

ConJur — Mas quase todo brasileiro é estressado.

Hermes Bittencourt Cruz — Mas nenhum está com a vida em risco e tem uma arma na mão. A arma é uma extensão do policial, ela amplia o eu da pessoa. O cidadão comum não tem essa ampliação do eu. Por isso, em uma situação de perigo, ele procura se defender, se refugiar. O policial não. Ele está preparado e não pode se esconder. O juramento do policial diz: “incorporando-me à Polícia Militar do estado de São Paulo, prometo cumprir rigorosamente as ordens das autoridades e dedicar-me inteiramente ao serviço da pátria cuja honra, integridade e instituições defenderei com sacrifício da própria vida”. Nós fazemos esse juramento com a bandeira nacional na mão. O policial que não enfrenta o criminoso quebra seu status dentro da própria organização.

ConJur — O que justifica a corrupção ser mais presente na Polícia Civil do que na Polícia Militar?

Hermes Bittencourt Cruz — Sir Robert Peel, criador da Polícia londrina, diz que toda polícia, mesmo civil, tem de ter uma organização militarizada. Na organização militar, existem graus hierárquicos bem definidos e dificilmente um se mistura com o outro. Essa hierarquia impede a promiscuidade. Assim, a corrupção fica isolada, individualizada.

ConJur — O policial ganha R$ 1,2 mil e lida direto com traficantes de drogas, por exemplo, que lidam com montanhas de dinheiro. É fácil resistir à tentação?

Hermes Bittencourt Cruz — Não é fácil porque a alta frustração de necessidade predispõe a pessoa ao crime. O policial vive em um quadro de alta frustração de necessidade e nem sempre os inibidores externos funcionam. Isso desequilibra. O policial pode ter inibidores internos, mas está com o filho doente em casa, morando na favela. É exigir muito do ser humano pedir que ele resista a essa tentação. Se até pessoas altamente posicionadas na política nacional não resistem, o que dirá do coitado do policial? Ele não é um super-homem.

Conjur — Com tudo isso, é estimulante ser policial no Brasil?

Hermes Bittencourt Cruz — Levando em conta as dificuldades do mercado de trabalho brasileiro, ser policial é uma boa opção. Qualquer concurso para a Polícia hoje, com mil vagas, tem 100 mil candidatos.

Conjur — Mas quem é atraído por esse salário de R$ 1,2 mil?

Hermes Bittencourt Cruz — Corre-se o risco de atrair aqueles que têm menor possibilidade no mercado de trabalho. Se considerarmos que essa menor possibilidade é decorrente de baixo nível cultural e físico, complica, não é? Por isso que o estímulo é importante. A Guarda Civil de São Paulo, por exemplo, dava pontos para o bom policial. Quando chegava a quatro pontos, ele era promovido. Essa expectativa torna o cidadão bom policial porque ele sabe que, mesmo não tendo estudado, tem um reconhecimento da corporação.

Conjur — O policial tem a mentalidade de que ele é o bem combatendo o mal?

Hermes Bittencourt Cruz — Na década de 70, fiz uma pesquisa sobre a religião dos policiais e o número de faltas cometidas por eles. Cheguei à conclusão de que aqueles muito religiosos têm muito mais probabilidade de se tornar um justiceiro do que aqueles que não são religiosos. Isso porque existe o sentimento religioso de que o pecado deve ser castigado e que o bem deve sobreviver. Essa noção de bem e mal não vem só da Polícia.


Conjur — O criminoso respeita a Polícia?

Hermes Bittencourt Cruz — Os criminosos têm mais medo do que é informal, dos justiceiros, do que do formal, a Polícia. Já ouvi um preso dizer: “eu posso entrar na delegacia e matar o policial, mas ele não pode entrar na cadeia e me matar”.

Conjur — Como se recupera esse respeito?

Hermes Bittencourt Cruz — Tem de ter cadeia isolada, onde os presos perdem o contato com o mundo. Se você colocar mil bandidos lá dentro, os outros terão medo de ir para lá. O cara fica como morto-vivo, com uma hora de sol por semana e sem visita íntima e qualquer privilégio. Alguém vai querer ir para esse buraco?

Conjur — Mas prisão é a solução?

Hermes Bittencourt Cruz — Não é solução para o criminoso, mas é solução para a população que vive acuada pelo criminoso. Além disso, inibe o crime. Mas há um erro em tratar todo preso da mesma maneira. Além da separação de preso que tem grau superior daquele que não tem, deveria ter separação por idade, por potencial criminológico. Não gosto de dizer isso porque sou um cara que defende os direitos humanos, mas o criminoso é alguém que fez alguma ofensa à sociedade e tem de ter uma punição adequada. Costumo dizer que, assim como o menor abandonado é vítima da família desagregada e o bandido é vítima da sociedade, o policial é vítima do Estado. O Estado é um ente artificial criado para proteger minha vida e meu patrimônio, e ele é incompetente para isso.

ConJur — Qual é o modelo de Polícia ideal?

Hermes Bittencourt Cruz — Tem de ser visível, mas amistosa com o cidadão. Tem de estar presente na sua vida e ser familiar. Tem de ser vista como protetora, e não como uma estranha.

ConJur — Na sua opinião, o Ministério Público está mais habilitado do que a Polícia Civil para conduzir inquérito criminal?

Hermes Bittencourt Cruz — O delegado de Polícia já faz isso muito bem. A investigação pelo Ministério Público é uma invasão de competência das atribuições da Polícia. Além disso, o promotor não tem formação policial. A Constituição define o que é o delegado e quais são as suas atribuições. O delegado não é subordinado ao promotor. Dentro do Ministério Público, o promotor não tem subordinados para fazer as investigações. Isso criaria um conflito. Portanto, para permitir que o MP investigue, é necessário mudar toda a estrutura constitucional.

Conjur — Para finalizar, a Polícia Civil e a Militar deveriam ser unidas?

Hermes Bittencourt Cruz — Eu acho que não. O Estado tem de ter auto-suficiência. Ele tem de ter uma organização militar à sua disposição. O que o militar faz, só ele pode fazer. Ele atua sob um regime diferenciado. O militar não pode ser sindicalizado, não pode ser filiado a partido político, não pode fazer bico, não pode fazer greve. É um servidor à disposição do Estado o tempo todo. Se o Estado perde isso, ele enfraquece.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!