Direito da criança

MPF denuncia Rede Record por abuso de imagem infantil

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30 de julho de 2006, 7h00

O Ministério Público Federal ajuizou Ação Civil Pública contra a Rede Record de Televisão, por veicular a imagem de uma criança de sete anos portadora de leucemia. A ação foi apresentada na última segunda-feira (24/7).

Segundo o MP, em 2005, a emissora explorou a imagem do garoto, que chorava compulsivamente enquanto seu cabelo era raspado. A reportagem traçava paralelo com a personagem Camila, representada por Carolina Dieckmann, na novela Laços de Família, exibida pela TV Globo.

As imagens foram ao ar por 30 minutos com a mesma trilha sonora da novela. Em alguns momentos, com a sobreposição da imagem da personagem pela do menino.

O MP também considerou um abuso a discussão entre os apresentadores, a mãe e o repórter a respeito dos procedimentos médicos e da cirurgia na frente do menino. De acordo com o artigo 221 da Constituição Federal, as emissoras são obrigadas a respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família, dentre os quais se encontram, indubitavelmente, a dignidade humana e os direitos da criança e do adolescente.

O MP alega que a emissora recusou diversas propostas de se ajustar as exigência legais. Entre elas, a veiculação durante uma semana de programas independentes, produzidos por ONGs, como forma de atenuar os prejuízos causados à coletividade.

Caso a denúncia seja aceita, a Rede Record terá de pagar indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 4,25 milhões, o que equivale a 0,5% do seu faturamento bruto de 2006.

Leia a íntegra da petição

EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA VARA CÍVEL DA SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO.

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelo Procurador Regional dos Direitos do Cidadão infra-assinado, no uso de suas atribuições legais e constitucionais, vem, com fundamento no artigo 129, II, da Constituição brasileira e na Lei nº 7.347/85, propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA em face da RÁDIO e TELEVISÃO RECORD S.A., empresa concessionária do serviço público federal de radiodifusão, inscrita no CNPJ sob o número 60.628.369/0001-75, sediada nesta subseção judiciária, na Rua da Várzea, 240; e UNIÃO FEDERAL, pessoa jurídica de direito público, a qual poderá ser citada por intermédio de seus advogados, na Avenida Paulista, 1804 — 20º andar — Cerqueira César — São Paulo — SP; pelas seguintes razões de fato e de direito:

DOS FATOS

A presente ação tem como suporte a representação instaurada no âmbito da Procuradoria da República no Estado de São Paulo sob o nº 1.34.001.004013/2005-27.

Segundo consta da inclusa notícia ensejadora da representação, publicada no jornal “O Estado de S. Paulo”, o programa SÔNIA E VOCÊ – veiculado pela emissora Ré – exibiu, no dia 16 de agosto de 2005, “uma situação mais do que constrangedora: sob o pretexto de divulgar uma instituição que cuida de crianças com câncer… colocou em cena um garoto doente, que chorava compulsivamente enquanto sua cabeça era raspada. Detalhe: com trilha sonora – a mesma que embala a ficção de Camila, personagem com leucemia vivida por Carolina Dieckmann em Laços de Família, atualmente em reprise na Globo” (doc. 01).

Visando instruir o procedimento administrativo em questão, o Autor oficiou a concessionária-ré requisitando a cópia do programa acima mencionado (doc. 02). Em resposta, recebeu a anexa fita VHS contendo a emissão ora impugnada (doc. 03).

Assistindo ao vídeo, verifica-se que, de fato, a emissora explorou, durante longos 30 minutos, a imagem e o sofrimento de uma criança de sete anos, com o único escopo de auferir pontos no Ibope e, conseqüentemente, mais lucro para si.

Entre um merchandising de chá para emagrecimento e outro, o programa SÔNIA E VOCÊ — veiculado pela emissora Ré — apresentou a história do pequeno Guilherme, filho de uma família pobre do Paraná. Guilherme é portador de leucemia e iria se submeter a uma cirurgia de transplante de medula, no Hospital de Clínicas, de Curitiba. Três anos antes, sua mãe engravidara, na esperança de que sua nova filha pudesse doar um fragmento da medula para o transplante, o que não foi possível de ser feito.

A situação vivida pela família de Guilherme era algo semelhante àquela retratada pela novela “Laços de Família” que, na época da exibição do quadro impugnado, estava sendo reprisada pela emissora concorrente.

Para comprovar a “tese” – pomposamente anunciada pelo repórter – de que “a arte imita a vida, e a vida imita a arte”, a emissora Ré cuidou para que o menino Guilherme fosse exposto às mesmas vicissitudes enfrentadas pela personagem da ficção . O foco da matéria impugnada era a cena em que a atriz Carolina Dieckman raspava seus cabelos, como parte do procedimento médico exigido para a cirurgia.

Em conseqüência, a emissora Ré acompanhou Guilherme e sua família até um salão de cabeleireiros na capital paranaense, e lá exibiu – diante de uma platéia de milhões de telespectadores – o choro da criança durante a raspagem de seus cabelos.


A curta cena do choro foi exibida repetidas vezes, acompanhada da “trilha sonora” da novela “Laços de Família”, tendo havido, inclusive, a sobreposição da imagem da personagem interpretada por Carolina Dieckman com a do pequeno Guilherme.

A “criação” mereceria apenas o desprezo de qualquer pessoa dotada de inteligência mínima, não fosse a repugnante exploração comercial dos sentimentos e da doença de uma criança de sete anos de idade.

A conduta da emissora Ré configura-se, como buscaremos demonstrar adiante, manifesto abuso da liberdade de informação jornalística, cabendo ao Estado brasileiro sancioná-la na forma do estabelecido na Constituição republicana.

1. Das exaustivas tentativas de composição da lide.

Tendo em vista que a matéria levada ao ar ofende visivelmente os direitos indisponíveis da criança à dignidade, ao respeito e à imagem, o Ministério Público Federal oficiou a emissora Ré buscando a composição voluntária da lide, consoante autoriza a Lei da Ação Civil Pública.

Os documentos anexos (doc. 04) atestam que o Autor buscou exaustivamente o ajustamento da conduta da Ré às exigências legais. Para tanto, apresentou à emissora nada menos do que três versões do termo a que se refere o art. 5º, § 6º, da Lei Federal n.º 7.347/85.

A versão final do documento obrigava a emissora Ré tão somente a:

a) atender aos princípios constitucionais e legais relacionados à proteção da infância e da juventude;

b) se abster de exibir, total ou parcialmente, imagem, nome, apelido, filiação, parentesco ou residência de criança ou adolescente portador de qualquer moléstia grave ou deficiência física ou mental, de forma a permitir sua identificação direta ou indiretamente;

c) se abster de transmitir, total ou parcialmente, imagem, nome, apelido, filiação, parentesco ou residência de criança ou adolescente recolhido em abrigo ou entidade de internação, de forma a permitir sua identificação direta ou indiretamente;

d) se abster de transmitir cenas vexatórias ou constrangedoras em que participe criança ou adolescente;

e) obter autorização escrita dos pais ou responsáveis para uso de imagem de criança ou adolescente, em todas as situações exigidas por Lei;

f) obter, nos casos previstos em Lei, autorização judicial para que criança ou adolescente entre e permaneça em estúdios de televisão mantidos ou cedidos à Compromitente.

g) exibir, a título de contra-propaganda, em rede nacional, no mesmo horário de transmissão do programa SÔNIA E VOCÊ, três produções independentes, de até 20 minutos, que versem sobre temas afetos à criança e ao adolescente, entregues pelo Compromissário na sede da Compromitente.

h) veicular, antes de cada exibição referida no item anterior, mensagem escrita com o seguinte texto: “A exibição do programa a seguir se dá em cumprimento a termo de ajustamento de conduta celebrado entre esta emissora e a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão de São Paulo”.

As tentativas do Ministério Público de pôr fim à lide esbarraram, porém, na intransigência da emissora Ré, que se recusou até mesmo a informar o telespectador usuário do serviço de radiodifusão que a exibição da contra-propaganda se dava em cumprimento a acordo celebrado entre as partes (doc. 04).

Convém registrar, Excelência, que o Autor transigiu até mais do que deveria na minuta final do Termo de Ajustamento de Conduta, uma vez que concordou em: a) suprimir a cláusula que previa a constituição de um órgão interno com atribuições para receber e processar reclamações do público telespectador; b) reduzir o tempo e o número de exibições da contra-propaganda; c) substituir a expressão “termo de ajustamento de conduta” por “acordo”, na cláusula que previa a obrigação da emissora de informar o usuário do serviço de radiodifusão sobre o termo celebrado.

Enfim, os documentos anexados comprovam que a emissora Ré recusou-se a ajustar voluntariamente sua conduta às prescrições legais, não restando ao Autor outra opção senão o ajuizamento da presente demanda.

DO DIREITO

1. Ofensa à dignidade humana.

A formulação de Kant é conhecida:

“Tudo tem um preço ou uma dignidade. Aquilo que tem um preço pode ser muito bem substituído por qualquer outra coisa, a título de equivalente; ao contrário, AQUILO QUE É SUPERIOR A TODO PREÇO, AQUILO QUE POR CONSEGÜINTE NÃO ADMITE EQUIVALENTE, É ISTO QUE POSSUI UMA DIGNIDADE.”

Na matéria televisiva aqui impugnada, porém, a dignidade humana não só admitiu equivalente como também possuiu, literalmente, um preço: custou o valor cobrado dos anunciantes para uma inserção comercial no programa veiculado.

Em troca da paga, a prestadora do serviço público federal de radiodifusão aceitou exibir verdadeiro flagrante de violação da dignidade humana, a um público de milhões de brasileiros que não dispõem de outra opção de lazer que não assistir a quatro ou cinco canais da televisão aberta.


A dignidade humana – nunca é demais lembrar –constitui o fundamento último deste Estado (CR, art. 1º, III) e é o valor-fonte de onde emanam todos os direitos da pessoa.

Muito embora, como ressalta Ingo Wolfgang Sarlet, o princípio constitucional da dignidade humana constitua uma “categoria axiológica aberta, sendo inadequado conceituá-lo de maneira fixista” , é perfeitamente possível definir-lhe alguns contornos que autorizem decidir, no caso concreto, se houve ou não ofensa ao fundamento maior da ordem comunitária.

Para Dürig, por exemplo, a dignidade da pessoa humana pode ser considerada atingida sempre que a pessoa for rebaixada a objeto, a mero instrumento, tratada como uma coisa, privada, portanto, de sua condição de sujeito de direitos.

Ora, usar o sofrimento de uma criança de sete anos para demonstrar a surrada tese de que “a vida imita a arte” — isto em busca de pontos de audiência – constitui inequívoca redução do sujeito à condição de instrumento; ao fazê-lo, ofendeu a emissora o princípio fundador desta República, devendo por isso ser sancionada.

2. Ofensa aos direitos da criança declarados no ECA.

Como é sabido, a Constituição de 1988 impôs a todos o dever de assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueladade e opressão.

Em reforço ao comando constitucional, o art. 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal n.º 8.069/90) instituiu que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.

E o artigo 17 do mesmo Estatuto explicitou que “o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”.

Ora, Excelência, no caso do programa impugnado, é visível a ofensa aos direitos fundamentais acima sublinhados. Não bastasse o sofrimento diante da iminente cirurgia, o menino ainda foi obrigado a suportar a presença de uma equipe de televisão que não se deu por satisfeita enquanto não produziu um material capaz de atrair a audiência. Em busca de pontos no ibope, a emissora não teve escrúpulos em exibir o corpo seminu da criança ou debater com a família (e na presença do próprio paciente) os riscos da cirurgia. Ou, como já mencionado, exibir ad nauseam as lágrimas do menino enquanto via seus cabelos serem raspados.

Pesquisa desenvolvida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO — apontou que nas poucas oportunidades em que crianças e adolescentes são retratados pela mídia, eles aparecem apenas em situações de violência ou como portadoras de moléstias graves ou deficiências , jamais como sujeitos de direito, merecedores de respeito.

É justamente o que ocorreu no caso ora trazido à apreciação desta Justiça. E, uma vez que não houve o cumprimento espontâneo da Lei, faz-se necessário que o Estado brasileiro afirme, no caso concreto, a absoluta prioridade devida à criança e ao adolescente.

3. Violação das normas constitucionais e infraconstitucionais que regulam o serviço público de radiodifusão.

É importante dizer que, ao contrário do que pensa o senso-comum, a emissora Ré não é “proprietária” do canal em que opera. É, na verdade, uma concessionária do serviço público federal de radiodifusão de sons e imagens, e, como tal, está sujeita às normas de direito público que regulam este setor da ordem social.

Justifica-se o regime jurídico de direito público porque, diversamente do que acontece nas mídias escritas, as emissoras de rádio e TV operam um bem público escasso: o espectro de ondas eletromagnéticas por onde se propagam os sons e as imagens.

Trata-se de um bem público de interesse de todos os brasileiros, pois somente por intermédio da televisão e do rádio é possível a plena circulação de idéias no país. A imprensa escrita, como se sabe, não alcança número expressivo de leitores, e a Internet, espaço democrático, quase anárquico, de comunicação global, ainda tem um universo de usuários muito restrito.

Como esperamos já ter demonstrado, a empresa Ré usou o bem público que lhe foi temporariamente concedido para negar os valores fundamentais declarados na Constituição.

Ao fazê-lo, descumpriu o artigo 221 da Constituição, que obriga as emissoras a respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família, dentre os quais se encontram, indubitavelmente, a dignidade humana e os direitos da criança e do adolescente declarados no art. 227 da Lei Fundamental.


Descumpriu também o artigo 28 do Regulamento dos Serviços de Radiodifusão (Decreto Presidencial nº 52.795/63), que obriga as concessionárias a “não transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico”.

Ora, como observa Rodolfo de Camargo Mancuso,

“Lendo-se os dispositivos que regem a programação televisiva à luz do que visa garantir a liberdade de iniciativa e a livre concorrência (CF, art. 170, caput e inciso IV), chega-se a esta exegese: É AUTORIZADA A EXPLORAÇÃO COMERCIAL DA DIFUSÃO TELEVISIVA PRIVADA, COM NATURAL APROPRIAÇÃO DOS LUCROS DAÍ RESULTANTES, DESDE QUE VENHAM OBSERVADOS OS PRINCÍPIOS E GUARDADAS AS RESTRIÇÕES ESPECIFICADAS PARA TAL ATIVIDADE. Em suma, livre iniciativa com responsabilidade social; lucro empresarial sem capitalismo selvagem.

De outra parte, deve o intérprete precatar-se de não baralhar o entendimento do que seja um padrão básico de qualidade na programação televisiva, em face de textos outros que em verdade apenas reflexamente tangenciam aquele tema, tais os que vedam a censura artística e garantem a liberdade de expressão (CF, art. 220, caput e § 2º). Aí, a nosso ver, não se trata do fenômeno conhecido por colisão entre preceitos constitucionais, visto não ser razoável pretender-se que os valores liberdade de expressão e vedação de censura prévia viessem preservados às custas do aniquilamento de outros preceitos constitucionais reguladores de uma atividade que é estritamente regulada, como se passa com a radiodifusão de sons e imagens.

Sem esses cuidados, o intérprete pode tomar a nuvem por Juno, extraindo dos textos de regência o que neles não se contêm, porque É EVIDENTE QUE NÃO ESTEVE NA INTENÇÃO DO CONSTITUINTE FRANQUEAR UM LAISSEZ FAIRE, JUSTAMENTE NA PROGRAMAÇÃO TELEVISIVA, ATIVIDADE PARA A QUAL A PRÓPRIA CONSTITUIÇÃO FIXOU PARÂMETROS COGENTES. SERIA NO MÍNIMO ESTRANHÁVEL, escreve José Carlos Barbosa Moreira, ‘QUE SE HOUVESSE DE DEIXAR A DETERMINAÇÃO AO ARBÍTRIO DAS EMISSORAS, ISTO É, DOS PRÓPRIOS INFRATORES POTENCIAIS OU ATUAIS…’”

CABIMENTO DA PRESENTE AÇÃO CIVIL PÚBLICA

O Ministério Público Federal deseja esclarecer que não está em juízo para defender exclusivamente o direito individual da criança cuja imagem foi indevidamente exposta.

A busca do Autor é também pelo reconhecimento do direito de milhões de brasileiros a uma programação televisiva que respeite os direitos fundamentais.

Trata-se de legítimo INTERESSE DIFUSO, como já apontou Barbosa Moreira, em artigo sobre o tema:

“O INTERESSE EM DEFENDER-SE ‘DE PROGRAMAS OU PROGRAMAÇÕES DE RÁDIO E TELEVISÃO QUE CONTRARIEM O DISPOSTO NO ART. 221’ ENQUADRA-SE COM JUSTEZA NO CONCEITO DE INTERESSE DIFUSO. (…) Com efeito: em primeiro lugar, ele se caracteriza, à evidência, como ‘TRANSINDIVIDUAL’, já que não pertence de modo singularizado, a qualquer dos membros da comunidade, senão a um conjunto indeterminado – e, ao menos para fins práticos, indeterminável – de seres humanos. Tais seres ligam-se uns aos outros pela mera circunstância de fato de possuírem aparelhos de televisão ou, na respectiva falta, costumarem valer-se do aparelho do amigo, do vizinho, do namorado, do clube, do bar da esquina ou do salão de barbeiro. E ninguém hesitará em qualificar de INDIVISÍVEL o objeto de semelhante interesse, no sentido de que cada canal, num dado momento, transmite a todos a mesma e única imagem, nem se concebe modificação que se dirija só ao leitor destas linhas ou ao rabiscador delas”.

O argumento de que uma parcela dos espectadores apóia uma programação televisiva que ofende sistematicamente os valores constitucionais não serve para afastar o cabimento da ação coletiva. Isto porque, como bem lembrou Rodolfo de Camargo Mancuso, é justamente no embate de coletividades extensas – uma parte posicionando-se contra, e outra a favor de um padrão básico de qualidade na programação televisiva – que repousa uma das notas mais típicas dos interesses difusos, que é a sua intrínseca conflituosidade.

COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL E LEGITIMIDADE ATIVA

Pensamos que já está suficientemente esclarecido o motivo da demanda ter sido proposta perante a Justiça Federal: A UNIÃO FIGURA NO PÓLO PASSIVO DA AÇÃO e a EMPRESA RÉ É CONCESSIONÁRIA DE UM SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL, como se depreende da leitura dos arts. 21, inciso XII, “a”, e 223 da Constituição.

Uma vez que o órgão do Ministério das Comunicações incumbido de fiscalizar as emissoras concessionárias queda-se, HÁ ANOS, totalmente inerte, cabe ao Ministério Público, na qualidade de defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CR, art. 127), pleitear em juízo as medidas necessárias e suficientes à reparação do mal causado e à aplicação da sanção contra os faltosos.


A propósito, o art. 5º, inciso IV, da Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar Federal n.º 75/93), confere ao Ministério Público Federal atribuição expressa para “zelar pelo efetivo respeito dos meios de comunicação social aos princípios, garantias, condições, direitos, deveres e vedações previstos na Constituição Federal e na lei, relativos à comunicação social”.

Como o Ministério Público Federal é órgão da União, e os réus demandados são a própria União e a prestadora do serviço público federal concedido, a ação coletiva deve ser, obrigatoriamente, proposta perante a Justiça Federal, consoante dispõe o art. 109, inciso I, da Constituição.

DOS PEDIDOS

1. Condenação da emissora Ré ao pagamento de indenização por dano moral coletivo.

Como ensina Carlos Alberto Bittar Filho,

“(…) O DANO MORAL COLETIVO É A INJUSTA LESÃO DA ESFERA MORAL DE UMA DADA COMUNIDADE, OU SEJA, É A VIOLAÇÃO ANTIJURÍDICA DE UM DETERMINADO CÍRCULO DE VALORES COLETIVOS. Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerado, foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico: quer isso dizer, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu aspecto imaterial.”

A possibilidade jurídica do pedido de indenização por dano moral coletivo decorre de expresso dispositivo legal: o art. 1º, caput, da Lei da Ação Civil Pública (Lei Federal n° 7.347/85):

Art. 1º. Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, AS AÇÕES DE RESPONSABILIDADE POR DANOS MORAIS e patrimoniais causados (…) A QUALQUER outro INTERESSE DIFUSO OU COLETIVO.

Há, no caso, o dever de indenizar porque a conduta ilícita praticada no programa SÔNIA E VOCÊ ofendeu, diante de uma platéia de milhões de telespectadores, valores fundamentais compartilhados por todos os brasileiros.

Como observa Carlos Alberto Bittar, O VALOR DEVIDO a título de indenização pelos danos morais coletivos

“(…) deve traduzir-se em MONTANTE QUE REPRESENTE ADVERTÊNCIA AO LESANTE E À SOCIEDADE DE QUE SE NÃO SE ACEITA O COMPORTAMENTO ASSUMIDO, OU O EVENTO LESIVO ADVINDO. Consubstancia-se, portanto, em IMPORTÂNCIA COMPATÍVEL COM O VULTO DOS INTERESSES EM CONFLITO, REFLETINDO-SE DE MODO EXPRESSIVO, NO PATRIMÔNIO NO PATRIMÔNIO DO LESANTE, A FIM DE QUE SINTA, EFETIVAMENTE, A RESPOSTA DA ORDEM JURÍDICA AOS EFEITOS DO RESULTADO LESIVO PRODUZIDO. DEVE, POIS, SER QUANTIA ECONOMICAMENTE SIGNIFICATIVA, EM RAZÃO DAS POTENCIALIDADES DO PATRIMÔNIO DO LESANTE. Coaduna-se essa postura, ademais, com a própria índole da teoria em debate, possibilitando que se realize com maior ênfase, a sua função inibidora de comportamentos. Com efeito, o peso do ônus financeiro é, em um mundo em que cintilam interesses econômicos, a resposta pecuniária mais adequada a lesionamentos de ordem moral.”

No caso concreto, é preciso considerar que: a) o faturamento bruto da emissora, previsto para o ano de 2006, é de R$ 950 milhões ; b) a matéria impugnada foi exibida para um público virtual de milhões de telespectadores; c) as ofensas foram transmitidas em horário livre, e alcançaram praticamente todo o território nacional; d) a emissora Ré tem pleno conhecimento da ilicitude do fato e recusou a composição amigável da lide.

Por essas razões, entende o Ministério Público Federal que é mais do que razoável a FIXAÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS COLETIVOS NO VALOR DE R$ 4.250.000,00 (quatro milhões e duzentos e cinqüenta mil reais), o EQUIVALENTE A 0,5% DO FATURAMENTO BRUTO DA EMISSORA PARA O ANO DE 2006.

2. Instauração de procedimento administrativo sancionador pelo Poder Concedente.

Como em qualquer concessão pública, tem o poder concedente do serviço federal de radiodifusão o DEVER DE FISCALIZAR o cumprimento das obrigações legais e contratuais impostas aos concessionários, pena de responder subsidiariamente pelos danos causados a terceiros no exercício do serviço delegado.

Considerando que o órgão do Ministério das Comunicações incumbido de fiscalizar as emissoras concessionárias queda-se inerte HÁ ANOS, faz-se mister que este juízo, em sede de antecipação de tutela, ordene a instauração do competente procedimento destinado à imposição da sanção administrativa cabível para o caso concreto.

Não se trata, por óbvio, de ingerência indevida do Poder Judiciário na esfera de atribuição do Executivo, uma vez que não está este juízo aplicando diretamente a sanção, mas tão-somente ordenando a instauração de procedimento sancionatório destinado a apurar a infração administrativa aqui noticiada.

SÍNTESE DOS PEDIDOS FORMULADOS E REQUERIMENTOS FINAIS

Em síntese, Excelência, o Ministério Público Federal está em juízo para pedir:

1. a concessão de TUTELA ANTECIPATÓRIA, com fundamento no art. 461 do Código de Processo Civil, para ordenar que o órgão da união federal competente (a Secretaria de Serviços de Comunicação Eletrônica do Ministério das Comunicações) proceda à imediata instauração de procedimento destinado a apurar a infração administrativa noticiada, praticada por concessionária do serviço público federal de radiodifusão;

2. a CONDENAÇÃO da emissora ré ao pagamento de indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 4.250.000,00 (quatro milhões e duzentos e cinqüenta mil reais), acrescidos de juros moratórios e correção monetária a partir da citação, importância essa que deverá ser revertida ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos, instituído pela Lei Federal n.º 7.347/85;

3. a CONFIRMAÇÃO, ao final, da tutela antecipatória pleiteada no primeiro item deste tópico.

Requer ainda:

a) a ISENÇÃO do pagamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nos termos do que dispõe a Lei Federal n.º 7.347/85;

b) A INTIMAÇÃO DA UNIÃO FEDERAL para, se quiser, integrar a presente lide, na posição de litisconsorte ativa, como lhe faculta o art. 5º, § 2º, da Lei 7.347/95, caso concorde com os pedidos ora formulados;

c) A CITAÇÃO das Rés para, querendo, contestar a presente ação, pena de, assim não o fazendo, sofrerem os efeitos da revelia;

d) A INTIMAÇÃO PESSOAL do representante do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, nos termos do que dispõe o art. 236, § 2º, do Código de Processo Civil.

Protesta o Autor provar os fatos alegados por todos os meios admitidos no Direito, notadamente a juntada de documentos, a oitiva de testemunhas e a realização de perícias.

Dá-se à presente causa o valor de R$ 4.250.000,00 (quatro milhões e duzentos e cinqüenta mil reais).

Termos em que,

P. Deferimento.

São Paulo, 20 de julho de 2006.

SERGIO GARDENGHI SUIAMA

Procurador Regional dos Direitos do Cidadão

Procurador da República

ADRIANA DA SILVA FERNANDES

Procuradora Regional dos Direitos do Cidadão

Procuradora da República

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