Caso Richthofen

Júri popular deve ser anulado por inobservâncias processuais

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25 de julho de 2006, 12h21

Enfim, Suzane Louise von Richthofen, Daniel Cravinhos de Paula e Silva e Christian Cravinhos de Paula e Silva foram julgados, e condenados, pelo primeiro Tribunal do Júri da Capital paulista tendo em vista os horrendos delitos que confessaram ter praticado. Mas, a nosso ver, parece que apenas concluiu-se mais um capítulo — com pompa e circunstância — de uma longa novela da vida real, que despertou o interesse da sociedade.

Vemos assim, por que diante das “irregularidades processuais” que ocorreram no caso em foco (ofensivos à Constituição Federal e de nulidades patentes) ainda poderemos ter outros ou outro capítulos. Isso soa estranho, é verdade; todavia, nos parece que essa novela foi escrita para durar e o encerramento do referido capítulo serviu somente para satisfazer a opinião pública, a qual não mais suportava a durabilidade do mesmo capítulo.

No entanto, a sociedade pode ter que assistir, novamente, parte do capítulo que se encerrou, pois as mencionadas “inobservâncias processuais” existentes, facilmente detectáveis, ensejaram, em tese, o reconhecimento de, no mínimo, duas nulidades: (i) a ausência do trânsito em julgado da sentença de pronúncia; (ii) e o julgamento dos acusados, conjuntamente, na mesma sessão quando as teses de ambos eram distintas.

Ressaltamos, ainda, que o fim exclusivo desse simplório artigo é abordar o caráter doutrinário do citado caso, ou seja, tentar mostrar alguns aspectos processuais que podem ensejar no reconhecimento de nulidade ou nulidades e, por conseqüência, na realização de um novo julgamento para satisfação ou desespero dos diretamente interessados.

Ausência do trânsito em julgado da sentença de pronúncia

Desde logo é importante enfatizar que essa sentença de pronúncia1 foi a decisão que determinou que aqueles acusados fossem julgados pelo o Júri em razão do crime hediondo praticado por eles — duplo homicídio qualificado — privativo da competência desse Tribunal Popular (artigo 74, parágrafo 1º, do Código de Processo Penal). Os demais delitos, fraude processual (artigo 347, do Código Penal, parágrafo único) e furto (artigo 155, também do CP), denominados pela doutrina de conexos, foram ali julgados pela força atrativa da competência do Júri (artigo 78, inciso I, do CPP).

Também é oportuno salientar que o processo de competência do Tribunal do Júri possui duas fases. A primeira, denominada de sumário de culpa, tem início com o recebimento ou aceitação pelo magistrado (artigo 394, do CPP) da peça acusatória (denúncia) do Ministério Público, encerrando-se com a sentença (de pronúncia, de impronúncia, de desclassificação ou de absolvição sumária, “vide” artigos 408, 409, 410 e 411, do CPP, respectivamente), que, no caso em análise, foi a de pronúncia. Já a segunda fase, judicium causae, é inaugurada com a apresentação do libelo acusatório (artigo 416, do CPP), o qual deve se nortear pela sentença de pronúncia, e termina com o julgamento pelos jurados.

Destarte, para que o juiz do caso dê início à segunda fase do processo de competência do Tribunal do Júri, é necessário que a sua decisão — a sentença de pronúncia — passe em julgado2, ou seja, esgotem-se todos os recursos que poderiam, de alguma forma, modificá-la, os acusados perderam o prazo para recorrer, renunciaram expressamente a esse direito ou desistiram dos recursos interpostos. E esse indispensável requisito de procedibilidade, no caso em tela, ainda não ocorreu. Vejamos.

Após ser proferida a sentença de pronúncia, os defensores dos acusados dela recorreram, interpondo, cada, os específicos recursos em sentido estrito (artigo 581, inciso IV, do CPP), que suspendiam o principal efeito de tal decisão recorrida, qual seja, o julgamento pelo Júri. Todavia, o Tribunal de Justiça paulista3 negou provimento a ambos os recursos (429.367.3/3-00), mantendo a aludida sentença como proferida. Vale ressaltar, contudo, que o julgamento realizado pela Corte de Justiça bandeirante não foi unânime, isso por que o desembargador Damião Cogan (terceiro julgador) acolhia os recursos, parcialmente, para excluir da pronúncia tão-somente o delito de fraude processual.

Intimados os defensores do acórdão prolatado pelo mencionado Tribunal, estes opuseram os recursos de Embargos de Declaração (429.367.3/5-01) e Embargos Infringentes (429.367.3/7-02), com base nos artigos 619 e 609, parágrafo único, respectivamente, ambos do CPP, os quais foram rejeitados, também por maioria de votos.

O novo insucesso recursal levaram os defensores a manejarem Recursos Especiais (429.367.3/9-03), previsto no artigos 105, inciso III, da Constituição Federal e 26, da Lei 8.038/90, cujos quais não foram admitidos pelo presidente da Seção Criminal do Tribunal de Justiça diante do não preenchimento dos requisitos processuais de admissibilidade.


Irresignados com a negação de seguimento dos referidos recursos para o Superior Tribunal de Justiça, os defensores lançaram mão de Agravos de Instrumentos contra despachos denegatórios de recursos especiais (429.367.3/0-04 e 429.367.3/2-05), nos termos do artigo 28, da Lei 8.038/90; sendo ambos agravos remetidos ao STJ em fevereiro e abril de 2006, segundo informações do site do TJ de São Paulo.

Já no Superior Tribunal de Justiça, tais agravos de instrumentos foram distribuídos ao Ministro Nilson Naves (Ag. 767688-SP), em 1.º de junho do ano em curso, pelo que aguardam julgamento.4

Como visto, da trajetória recursal percorrida pelos defensores verifica-se que a sentença de pronúncia ainda não transitou em julgado. Dessa forma, sob a nossa ótica, os acusados ainda não poderiam ser levados a julgamento, e julgados, pois, com isso, feriu-se de morte o teor do artigo 416 do Código de Processo Penal, que, ressalte-se novamente, exige o trânsito em julgado para o início da segunda fase do processo penal do Júri (apresentação e recebimento do libelo acusatório), enquanto que o julgamento pelos jurados é o último ato processual dessa fase.

Nesse passo, é suficiente o ensinamento de José Frederico Marques5, em obra sobre a instituição júri: “Tornando-se processualmente imutável a sentença de pronúncia, cumpre entra-se no momento postulatório da judicium causae. Daí determinar o artigo 416, do Código de Processo Penal, a imediata abertura de vista dos autos ao órgão do Ministério Público, pelo prazo de cinco dias, para oferecer o libelo acusatório”.

Mas, então, qual o motivo ou motivos que levou a essa inobservância ou “atropelo” da lei processual penal?

Do ponto de vista do processo, argumenta-se que os recursos chamados de excepcionais (especial e extraordinário, por exemplo) não gozam de efeito suspensivo, senão somente do efeito devolutivo, consoante prevê o artigo 27, parágrafo 2º, da Lei 8.038/90. O chamado efeito suspensivo tem o condão — como a própria expressão já diz — de suspender os efeitos jurídicos da decisão (sentença ou acórdão) da qual se recorre; no caso, do acórdão que negou provimento aos recursos em sentido estrito manejados pelos acusados.

Sem a suspensão dos efeitos jurídicos do acórdão recorrido, a Promotoria Criminal entendeu por bem executar o título executivo judicial penal, qual seja, a sentença de pronúncia, mesmo sabendo que ela ainda não transitara em julgado como dispõe o artigo 416, do CPP. E o que nos chama atenção é que o juiz do feito aceitou o libelo acusatório e promoveu o julgamento, também tendo conhecimento que a sua sentença que pronunciou os acusados não havia transitou em julgado.

A defesa da acusada Suzane Richthofen tentou obter o efeito suspensivo em referência, promovendo para tanto medida cautelar com pedido de liminar no Superior Tribunal de Justiça (MC 11768-SP), em 14 de julho de 2006; porém, o Ministro Barros Monteiro negou seguimento ao pedido, isto é, indeferiu a petição inicial.

Sob o aspecto social do caso, notou-se uma opinião pública exigindo não só a realização do julgamento, como também a condenação dos acusados, o que pode ter levado a Justiça, eventualmente, interpretar o Código de Processo Penal e a Lei 8.038/90 desfavoravelmente aos acusados. Isso apenas para atender ao anseio popular e/ou político-social, retirando, portanto, o foco de cima de si, até por que transparecia aos olhos da sociedade que era ela, a Justiça, que não permitia que o julgamento fosse realizado, quando na realidade estavam os acusados exercendo a ampla defesa com os recursos a ela inerentes.

O julgamento dos acusados na mesma sessão

Não é recomendado o julgamento de réus, na mesma sessão do Júri, que se acusam mutuamente ou possuem teses divergentes. Esse cuidado, adotado pelos profissionais do direito denominados de “garantistas” — aqueles fazem prevalecer às garantias constitucionais —, busca resguardar as teses defensivas de cada um deles.

Da forma como ocorreu o julgamento, a nosso sentir, dispensável era, se possível fosse, a atuação dos representantes da acusação, dado que as séries acusações entre os próprios acusados e suas teses antagônicas, diante dos jurados, os deixaram expostos demasiadamente, além de lhes retirarem a possibilidade de somente se defenderem; de modo que acabaram contribuindo, relevantemente, para que fossem condenados.

Em tese, poderíamos afirmar que o julgamento conjuntamente dos acusados não passou de uma simples audiência para ratificar uma condenação que era dada como certa, haja vista a prevalência de acusações, enquanto a defesa propriamente dita ficou relegada a um segundo plano. O julgamento dos acusados em uma só sessão do Júri é o desejo de todo acusador descompromissado com as garantias constitucionais, sobretudo da ampla defesa. Só deu a acusação no dito julgamento porque só tinham acusações.


Diante desse cenário, como exercer o direito de defesa? Como é possível julgar com isenção ou imparcialidade? A quem interessa tanto a realização de um julgamento com o sacrifício das defesas dos réus?

Na visão dos jurados, provavelmente, prevaleceu a seguinte idéia: se os réus se acusam de todas as formas e em todos os sentidos, quando deveriam se defender, é porque são mesmo culpados, independentemente das teses venham sustentar.

Quanto à máxima popular de que “é acusando que se defende”, não encontra fundamento legal, haja vista que as teses defensivas se chocavam gravemente, comprometendo-as na sua essência, restando tão-só às acusações mútuas como uma saída para se mostrar quem era menos culpado.

É certo que ninguém, ou poucos, esperava a absolvição, até por que confessaram livremente a prática delitiva. Por outro lado, podemos dizer que o julgamento realizado, com total inobservância da defesa ampla, não pode ser tido como tal, tendo em conta as inobservâncias legais que sacrificaram as defesas dos réus.

Revela-se, aí, portanto, a outra nulidade.

Considerações finais

Visto sob ângulo da constitucionalidade, o qual deve sempre prevalecer, temos que essa discussão da ausência do trânsito em julgado da sentença de pronúncia, executada sob o argumento de que o Recurso Especial não tem efeito suspensivo, cede, principalmente, aos princípios constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal (artigo 5.º, incisos LIV e LV, da CF).

O artigo 416, do CPP é norma geral, ao passo que o artigo 26, da Lei 8.038/90 é norma especial, de maneira que prevalece àquela quando esta é omissa, ou seja, aplica-se a lei adjetiva penal em todos os casos não regidos por lei específica. Na presente situação, a norma processual penal exige que a sentença de pronúncia passe em julgado, o que inocorreu, enquanto que lei especial permite a interposição de Recurso Especial contra o acórdão que negou provimento aos recursos em sentido estrito, mas não suspende a sua execução.

Estabelecido esse conflito, a sua resolução é simples: basta interpretar a garantia constitucional sobredita de forma ampla e teremos uma nulidade absoluta. A amplitude de defesa não deve ser tolhida só por que a lei infraconstitucional autoriza o recurso especial, mas não o efeito suspensivo. Do contrário, qual a serventia de tal recurso excepcional se a parte recorrente já pode sofrer na pele os efeitos jurídicos do acórdão estadual recorrido?

Ora, se os acusados recorreram ao STJ, presume-se que a decisão do Tribunal de Justiça paulista tenha negado vigência ou contrariado lei federal, ou, ainda, atribuído à mesma lei interpretação divergente daquela dada por outro tribunal. Tais temas são específicos do recurso especial (artigo 105, inciso III, alíneas “a” e “c”). E, uma vez reconhecidos, podem alterar o teor da sentença de pronúncia.

A ampla defesa em questão também se perfaz com o manejo dos recursos processuais previstos na legislação. Por seu turno, se a parte pode lançar mão desses recursos, que podem modificar a pronúncia, não se pode responsabilizá-la antecipando-lhe os efeitos da sentença ou acórdão, sob pena de, sobremaneira, se esvaziar a garantia da defesa ampla e comprometer a própria existência dos recursos excepcionais.

Importante enfatizar que não é a parte que cria os recursos. Esses são criados pela lei, que os colocam a disposição dos interessados e são admitidos desde que satisfeitos determinados requisitos. Se inúmeros são os recursos — e são —, não devemos ter uma visão pejorativa da parte só pelo fato de ela ter manejado tais recursos no intuito de buscar o reconhecimento de suas teses.

O devido processo legal (artigo 5.º, inciso LIV, da CF), como visto, demonstra-se violado com tamanha inobservância de relevante pressuposto de procedibilidade para se iniciar a segunda fase do processo do Júri.

Diante desse quadro, indaga-se o que fazer com os recursos especiais pendentes interpostos pelos acusados? Serão eles julgados prejudicados por haver ocorrido o julgamento? Ou a Corte Superior irá analisá-los mesmos assim? O certo é que, com o julgamento do mérito da causa pelo Júri, não ficou difícil julgar tais recurso. Seria essa uma maneira, inconstitucional, de se coibir e julgar recursos as Cortes Superiores. Ademais, fica visível que a prestação jurisdicional célere (artigo 5.º, inciso LXXVIII, da CF) ainda é uma utopia.

Caso seja dado provimento aos recursos especiais cotejados, excluindo uma só das qualificadoras da denúncia ou um dos crimes conexos, etc., pode, na nossa análise, o STJ, de ofício, conceder Habeas Corpus para anular o julgamento feito Júri, uma vez que a acusação foi modificada na sua essência e beneficiou os acusados, configurando o necessário constrangimento ilegal. É claro que isso é difícil, mas não impossível.


Também não se pode considerar prejudicados os recursos excepcionais, pois eles discutem o mérito da sentença de pronúncia, ainda que parcialmente ou integral, sendo a primeira vez, salvo melhor juízo, que o Júri foi realizado sem que a pronúncia tenha transitado em julgado, o que ofende o devido processo legal.

Quanto ao julgamento conjunto dos réus, enseja nulidade absoluta, na medida em que a ampla defesa ficou comprometida com as acusações entre os acusados perante o júri. O julgamento em separado, e mais adequado às defesas, não só atenderia o princípio constitucional mencionado, possibilitando uma melhor exposição das teses defensivas sem, ao mesmo tempo, ser acusado pelo outro réu, além de permitir uma melhor compreensão da participação delitiva de cada um pelos jurados e público.

Entretanto, é preciso asseverar que só se reconhecesse uma nulidade se dela resultar efetivo prejuízo para acusação ou para a defesa (artigo 563, caput, CPP). Contudo, esse prejuízo efetivo se apresenta em ambas as situações aqui analisadas.

A anulação do julgamento de um caso de enorme repercussão não é comum, voltamos a frisar, sobretudo para se evitar mais descrédito à imagem da Justiça, já tão desgastada, a qual terá que reconhecer que falhou em algum momento na condução desse concorrido processo. Nesse aspecto pode imperar a questão político-social, justamente para se evitar que o mesmo caso ganhe novamente o gosto da mídia e o interesse da opinião pública.

Mas, do ponto vista legal, não temos dúvida de que o processo criminal dos acusados eiva, no mínimo, das duas nulidades aqui apontadas. E se for priorizada a interpretação das garantias constitucionais em relação às leis infraconstitucionais, o desfecho não será outro, senão reconhecer uma ou as duas nulidade.

Em suma, essa será, certamente, mais uma difícil tarefa para o Supremo Tribunal Federal, posto tratar-se de matéria de natureza constitucional (ofensa ao devido processo legal e ampla defesa), além de ser aquele que profere a última decisão sobre esse tema.

Notas de Rodapé

1. Implica no reconhecimento da materialidade delitiva (ocorreram os crimes ou crime descritos na denúncia) e na existência de índicos suficientes de autoria, artigo 408, do CPP.

2. Artigo 416 do CPP: “Passada em julgado a sentença de pronúncia, que especificará todas as circunstâncias qualificativas do crime e somente poderá ser alterada pela verificação superveniente de circunstância que modifique a classificação do delito, o escrivão imediatamente dará vista dos autos ao órgão do Ministério Público, pelo prazo de 5 (cinco) dias, para oferecer o libelo acusatório”.

3. Pesquisa realizada, em 22 de julho de 2006, no “site” www.tj.sp.gov.br, link “processo”, “2.ª instância”, procurar “por nome da parte” na “seção criminal”.

4. Dados pesquisados em 22 de julho de 2006, no www.stj.gov.br, link “pesquisa rápida”, por “nome da parte”.

5. “A instituição do júri”. São Paulo: Saraiva, 1963. v. I. p. 265. No mesmo sentido: Hélio Tornaghi. “Curso de Processo Penal”. 5.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 213; José Ruy Borges Pereira. “O júri: teoria e prática”. Porta Alegre: Síntese, 2001. p. 97; e Heráclito Antônio Mossin. “Júri: crimes e processo”. São Paulo: Atlas, 1999. p. 334.

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