O dono da voz

Gravação de 1997 ligava delegado a atividades suspeitas

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25 de julho de 2006, 18h47

As gravações telefônicas reveladas pelo Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, não são as primeiras a ligar o nome do delegado André Di Rissio a atividades suspeitas. Flagrado numa conversa telefônica com um suposto traficante de armas, levada ao ar pela Rádio CBN em agosto de 1997, o delegado decidiu processar a emissora. Detalhe: a rádio não disse que a voz da gravação era de Di Rissio. Mesmo assim foi condenada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

André Di Rissio, delegado e presidente da Associação de Delegados Polícia do Estado de São Paulo, está preso sob acusação de liberação ilegal de cargas no aeroporto de Viracopos. Reportagem do Jornal Nacional desta segunda-feira (24/7) divulgou conversas telefônicas gravadas com autorização judicial em que Di Rissio usava sua influência e a de seu pai, desembargador do TJ de São Paulo, para libertar presos, abortar operações policiais e alterar o rumo de processos judiciais.

As gravações de 1997, divulgadas pela CBN, não tinham autorização judicial. De acordo com a decisão que condenou a rádio a pagar indenização por danos morais ao delegado, a imagem do autor foi atingida negativamente porque sua “voz foi reproduzida naturalmente, sem qualquer efeito técnico sonoro”. Em nenhum momento os desembargadores que acolheram seu recurso contra a rádio entram no mérito da conversa gravada.

Os desembargadores do TJ paulista entenderam que ele foi “identificado por várias pessoas de seu círculo de conhecimentos, não só pela voz, notório atributo da personalidade, reproduzida naturalmente, sem cautelosa adoção de qualquer efeito técnico, na transmissão, como também pelo nome, então indiscretamente revelado ao público”.

Uma testemunha ouvida na ação afirmou que a rádio se referiu a Di Rissio como “delegado André”, o que a emissora negou no processo. Outra pessoa ouvida pela Justiça disse que reconheceu o delegado pela voz.

André Di Rissio está preso sob acusação de formação de quadrilha e corrupção. Segundo investigações da Polícia Federal, ele liderava um esquema de liberação ilegal de mercadorias no aeroporto de Viracopos, em Campinas, interior de São Paulo.

Dois a um

A condenação à CBN foi imposta pela 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, por dois votos a um, em outubro de 2004. A rádio CBN entrou com recurso especial contra a decisão. A admissibilidade do recurso ainda não foi analisada pelo TJ paulista.

Para os desembargadores José Roberto Bedran e Morato de Andrade, a rádio errou ao veicular o áudio da reportagem sem a preocupação de “preservar a identidade” do delegado. “Mencionou-se o cargo e o prenome do autor e não se distorceu o timbre de sua voz, tudo a permitir a sua fácil identificação no ambiente de trabalho e entre as pessoas de suas relações.”

O desembargador Theodoro Guimarães, vencido pelos colegas no julgamento, ressaltou que o delegado em nenhum momento tenha negado o teor da conversa gravada: “pelo assunto da matéria gravada (tráfico de armas, corrupção financeira, etc), a circunstância altamente suspeita consubstanciada no renitente silêncio do autor sobre o teor de sua conversa telefônica com o terceiro investigado (em nenhum momento do processo revelou-o) deixa entrever que o autor não é nenhum “‘inocentinho’”.

Guimarães ironizou também o reconhecimento da voz do delegado pelas testemunhas, com uma comparação: “Num país de mais de 170 milhões de habitantes, em que um programa como aquele é ouvido por, no mínimo, por dois milhões de pessoas, o autor apresenta, como prova de que tenha sido identificado pelos ouvintes, a maciça prova de apenas duas testemunhas”, sustentou.

Testemunhas, segundo o desembargador, de sinceridade contestável: “uma das quais sequer tinha ouvido o programa em tela (o da CBN) e a outra, mentindo fragorosamente, diz que ouviu quando a emissora anunciou que a conversa gravada havia sido travada com o Delegado de Polícia chamado André, quando até o próprio autor reconhece que a rádio em nenhum momento referiu e tornou público o nome dele”.

Leia a decisão e os votos

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTiÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CíVEL N° 143.007-4/0, da Comarca de SÃO PAULO, em que é apelante ANDRÉ LUIZ MARTINS DI RISSIO BARBOSA, sendo apelado RÁDIO GLOBO DE SÃO PAULO LTDA.:

ACORDAM, em Segunda Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por maioria de votos, não conhecer do agravo retido do autor, negar ao da ré e dar provimento à apelação, de conformidade com o relatório de fls. 236/237 e voto do Relator designado, que ficam fazendo parte do acórdão.


O julgamento teve a participação dos Desembargadores THEODORO GUIMARÃES (Presidente e Revisor) vencido e MORATO DE ANDRADE (Relator sorteado).

São Paulo, 26 de outubro de 2004.

JOSÉ ROBERTO BEDRAN

Relator designado

VOTO N°. : 12437

APEL. N°. : 143.007-410

COMARCA : SÃO PAULO

APTE. : ANDRE LUIZ MARTINS DI RISSIO BARBOSA

APDO.: RÁDIO GLOBO DE SÃO PAULO L TDA.

Responsabilidade civil. Programa noticioso radiofônico. Reprodução de gravação clandestina de conversa telefônica, envolvendo o autor, Delegado de Policia, e suposto traficante de armas. Falta de comprovação da verdade dos fatos e, assim, da presença do interesse público na divulgação. Forma inadequada de exposição da imagem do autor, cuja voz foi reproduzida naturalmente, sem qualquer efeito técnico sonoro. Negligência. Danos à honra e imagem caracterizados. Condenação imposta. Sentença reformada. Apelação provida.

1. Não procede a preliminar de não-conhecimento da apelação, por suposta deserção.

A regra do art. 57, § 6°, da Lei de Imprensa, não bastasse de duvidosa subsistência, por não recepcionada pela Constituição de 1988, que deu irrestrita amplitude às indenizações por dano moral (RSTJ 103/245, ReI. Min. SÁL VIO DE FIGUEIREDO), é, ao aludir a depósito da “importância total condenação“, claramente dirigida apenas ao réu, nos casos de procedência do pedido.

O agravo retido do autor (fls. 112), cuja apreciação não foi reiterada nas razões de apelo, não é conhecido.

O da ré. insistindo na preliminar de inépcia da petição inicial (1Is. 64), não merece acolhimento, porquanto a questão foi muito bem repelida em primeiro grau.

Não poderia ser de rigor a ausência da indicação das testemunhas no próprio libelo, bem porque, se já não fossem as profundas alterações trazidas pela nova Constituição Federal de 1988, uma vez seguindo, a causa, após a contestação, o procedimento ordinário, a ré, ao ensejo da audiência de instrução e julgamento, arroladas aquelas pelo autor oportunamente, não foi tomada de surpresa e nem deixou de dispor de tempo suficiente para o preparo de eventuais contraditas.

A inicial veio adequadamente instruída com a notificação prevista no art. 58. § 3° da Lei de Imprensa (notando-se que aqui se cuidou de empresa de radiodifusão) e regularmente efetivada, como se vê do apenso (fls. 4, 11 e 13/14), exatamente no trigésimo dia.

Cabe observar que o autor sempre postulou, na medida cautelar preparatória, a conservação do “texto” do programa de notícias irradiado, para o qual a lei fixa o prazo mais largo de sessenta dias (art. 58), nunca o da “gravação”, esta, sim, com prazo exíguo de vinte dias (art. 58. § 1°). Notificação, aliás, que a ré deixou de atender, em grave omissão que só a ela haveria de prejudicar na análise da prova e deslinde do mérito.

2. E a irresignação procede.

No bem elaborado voto do eminente relator sorteado, a dispensar cansativa repetição, ficou argutamente acentuada a claríssima invasão de privacidade e os graves reflexos de ordem moral à pessoa do autor, Delegado de Polícia retratado nos autos como pessoa de ótima reputação e profissional de bom conceito, em conseqüência da reprodução radiofônica, durante noticioso jornalístico de uma das emissoras integrantes da empresa ré (Rádio CBN), de uma gravação de conversa telefônica mantida com outrem, por sinal, colhida sem a devida autorização judicial, o chamado “grampo”. Segundo a prova oral, foi ele identificado por várias pessoas de seu círculo de conhecimentos, não só pela voz, notório atributo da personalidade, reproduzida naturalmente, sem cautelosa adoção de qualquer efeito técnico, na transmissão, como também pelo nome, então indiscretamente revelado ao público ouvinte.

Pouco importando não apurado houvesse sido ela a responsável por tal clandestina gravação, é incontroverso que a ré efetivamente a fez transmitir e divulgar em seu programa de rádio.

Conquanto negasse a revelação da identidade do apelante, que nunca afirmou estar envolvido na prática de crime ou submetido a alguma investigação criminal, cuja imagem, ademais, insistiu haver preservado, a ré, ao contestar, não deixou de admitir que outra pessoa era o verdadeiro alvo da gravação e da reportagem, pois, “conforme a equipe que efetuou a matéria jornalística objeto da lide, versou a mesma sobre uma investigação conduzida pela Polícia Federal sobre tráfico de armas, tendo sido preso o interlocutor do Requerente” (fls. 23/25).

Não se ignorando a antinomia real existente entre dois fundamentais princípios constitucionais em jogo, o do respeito aos direitos de personalidade e o da garantia de liberdade de expressão e informação, nenhum deles absoluto ou de irrestrito âmbito de proteção ou inviolabilidade, a questão haveria de ser resolvida à luz dos critérios de razoabilidade, ponderação e proporcionalidade recomendados pela melhor doutrina, dentre os quais, para as divulgações pela imprensa, sobressai o do “interesse público inequívoco” (GilBERTO HADDAD JABUR, Liberdade de Pensamento e Direito à Vida Privada, R.T., 2000, págs. 320/350; CLÁUDIO LUIZ BUENO DE GODOY, Liberdade de Imprensa e os Direitos da Personalidade, Atlas, 2001, págs. 63/105), por sinal, assim expressamente previsto no art. 23 do projeto da chamada nova Lei de Imprensa (Projeto de Lei n° 3.232/92).


E a ré, que tanto se defendeu sob o escudo da liberdade de expressão e do interesse público acerca dos fatos assim divulgados, afora estar com sua postura altamente comprometida pela não-preservação dos textos escritos do programa, dos quais se poderiam extrair dados relevantes sobre o que e como foi efetivamente irradiado, não trouxe a mínima prova da verdade do que alegou estar reportando ao público em geral: nem do que e nem de quem se tratava, o dito “interlocutor” supostamente envolvido com tráfico de armas…

Descabido, pois, sustentar, ao pretexto do interesse social ou coletivo da reportagem, justificada a patenteada vulneração da imagem e privacidade do autor, que positivamente não se comprovou estar, de algum modo, intimamente vinculado ao fato criminoso ou às investigações policiais meramente insinuados.

E ainda que esses últimos realmente existissem ou estivessem em curso, impossível deixar de reconhecer que houve manifesta incúria dos responsáveis pela reportagem radiofônica em apresentar o autor, na conversa telefônica mantida com o suposto delinqüente, se não com o fortíssimo dado de identificação do próprio nome então abertamente divulgado, com a sua voz natural e normalmente editada, sem qualquer distorção na reprodução sonora, providência hoje muito fácil de adotar com os recursos da moderna técnica da radiodifusão. Sem dúvida, seria forma adequada e eficaz de preservação de sua imagem e pessoa.

É que, não bastasse sempre exigível o dever de verdade inerente ao exercício da liberdade de imprensa – coisa que a ré aqui nem sequer se interessou em comprovar presente no episódio de que cuida a lide -, também haveria de incidir o requisito da adequação da forma da veiculação do fato que acabou por envolver e prejudicar o autor.

Depois de salientar que, “pressupondo a verdade de conteúdo, a necessidade e a utilidade da divulgação, as raias da adequação merecem atenta análise“, GILBERTO HADDAD JABUR acrescenta que “publicar adequadamente é ponderar a forma através da qual a informação chegará ao público, o local onde será veiculada, tamanho e extensão da matéria, o destaque e o impacto do título, a ênfase do conteúdo etc. A medida da adequação é encontrada no respeito aos direitos personalíssimos e no grau de interesse público efetivo pela notícia… Não é demais frisar que a adequação adquire relevo, porque a forma e apresentação que a notícia, ainda que necessária e útil, recebe ao ser veiculada pode contribuir para que seu conteúdo se distancie desses predicados e ingresse o terreno da inutilidade defluente da inadequação…A narrativa deve ser objetiva e enfatizar elementos preponderantes, sem resvalar, ainda que de soslaio, na privacidade. Não deve privilegiar acontecimentos marginais ou uma determinada interpretação da realidade, exclusiva do receptor. Não deve ser tendenciosa nem sugestionar em desfavor da honra ou da privacidade” (ob. cit., págs. 345/349).

3. Inafastável, pois, a obrigação de indenizar.

Longe de apenas ter exercido o regular direito de informar, a emissora de radiodifusão pertencente à ré ofendeu fundamente a honra e a imagem do autor.

Também nessa oportunidade, a exemplo de outros casos análogos julgados por esta Câmara, cabe reproduzir excerto de precioso artigo do jornalista CARLOS ALBERTO DI FRANCO, publicado no jornal “O Estado de São Paulo”, edição de 22 de agosto de 1994, página 2, quando, com muita adequação, pondera:

A possibilidade do assassinato pela mídia, cruel e irreparável, impõe cautelas preventivas. Denúncias, mesmo quando carregadas de verdades aparentes, são apenas para uma adequada investigação. Não são, obviamente, matéria para edição. E têm sido. Um mínimo de senso de justiça exige que, mesmo no mapeamento de um suposto delito, se proceda com cuidado, sem considerar como certo o que é apenas uma possibilidade. A retificação não consegue apagar o mal produzido. Há uma evidente desproporção entre o impacto da notícia falsa e a pálida força de retificação. Por isso, independentemente do elementar dever de reparar o erro, é necessário desenvolver mecanismos práticos de controle da qualidade ética da informação. Explorando o denominado jornalismo verdade, se arma um espetáculo com o que a natureza humana é capaz de produzir de mais sórdido. A miséria material e moral é transformada em instrumento de marketing. O que importa na fria contabilidade da ciranda eletrônica é um bom desempenho nas pesquisas de opinião. Elevados índices de audiência são suficientes para acalmar eventuais escrúpulos morais“.

Ponderados os critérios do art. 53 da Lei de Imprensa, em especial o grau de culpa, que foi acentuado, a intensidade do sofrimento certamente experimentado pelo autor, os deletérios reflexos na sua carreira profissional de Delegado de Polícia, afora a situação econômica da ré, empresa de porte, bem assim que o pedido indenizatório ficou limitado, na inicial, ao máximo de duzentos salários mínimos, os danos morais acarretados, na extensão e intensidade com que produzidos, estão a recomendar a fixação do valor condenatório de R$ 40.000,OO (quarenta mil reais), mais juros de mora desde o evento danoso (Súmula n. 54, STJ) e correção monetária a partir da data deste acórdão, o que representa verba justa e adequada para a espécie. Não enriquece o autor e nem sobrecarrega desmesuradamente a ofensora.


Assim tem decidido esta Câmara, na linha de jurisprudência dominante, a qual, entendendo que a indenização por dano moral sempre cabe arbitrada mediante estimativa prudencial do julgador, recomenda levar em conta a fundamental circunstância de, com tal montante, procurar satisfazer a dor e humilhação da vítima e dissuadir o autor das ofensas de futura repetição de ações semelhantes.

Afinal, como lembra CLÁUDIO LUIZ BUENO DE GODOY, com citação de lição de PEDRO FREDERICO CALDAS, é dupla a finalidade desse tipo de reparação: “trazer algum lenitivo àquele que se viu diminuído moralmente, como, também, fazer que o ofensor sinta o peso da conseqüência ao ponto de ser vir desestimulado a cair em recidiva” (ob. cit., pág. 122).

São invertidos os ônus de sucumbência, arcando a ré com o pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios da parte vencedora, arbitrados em 20% sobre o valor total da condenação.

4. Do exposto, não se conhece do agravo retido do autor, nega-se ao da ré e dá-se provimento à apelação.

JOSÉ ROBERTO BEDRAN

Relator designado

DECLARAÇÃO DE VOTO VENCEDOR

A petição inicial não informa o teor das conversas havidas entre o autor e o terceiro.

Na contestação, colhe-se que a reportagem referia-se a “uma investigação conduzida pela Policia Federal sobre tráfico de armas, tendo sido preso o interlocutor do Requerente” (fls.23).

A testemunha de fls.121/122, colega do autor, prestou as seguintes informações: “o depoente estava ouvindo a rádio CBN (90.5) FM quando ouviu uma chamada de que um delegado de polícia chamado André estaria envolvido com um traficante de armas. Ficou interessado, e tentou descobrir quem era o delegado, já que a notícia não deu nome completo. Em seguida, foi transmitida uma gravação telefônica, sem distorção de voz, na qual o depoente conseguiu rapidamente identificar que se tratava do autor. Ficou muito assustado com a noticia, e por isso não conseguiu prestar muita atenção em seu conteúdo. Falava-se, na rádio, que o delegado estaria envolvido em corrupção ligada a uma instituição financeira, envolvendo coisa de um milhão de dólares”.

Nem é preciso destacar o impacto e a brutal invasão de privacidade que essa reportagem ocasionou ao autor, o qual sempre fora tido no ambiente de trabalho como uma pessoa de bem.

E o fato da transmissão radiofônica, da forma como se deu, não ter possibilitado a identificação do autor por um número maior de pessoas, restringindo-se ao âmbito dos conhecidos e do ambiente de trabalho, não afasta o sofrimento que evidentemente se lhe abateu. Suportou prejuízos na carreira policial e seu conceito ficou arranhado perante os colegas, informando a testemunha atrás referida que o autor passou a ser conhecido como “o homem de um milhão de dólares”.

Como inicialmente se disse, o autor não informou na petição inicial o conteúdo das gravações telefônicas. Sua reclamação diz com o fato em si da divulgação de conversas de cunho íntimo, feita sem a preocupação de encobrir a sua identificação, causando grave ofensa a sua imagem e invasão de privacidade.

A regra do artigo 5° inciso XII da Carta Magna dispõe que “é inviolável o sigilo… das comunicações telefônicas, salvo … por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.

Invoca, entretanto, a ré a norma do artigo 220 § 1º da Constituição Federal que veda qualquer “embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social”.

Observe-se que, na espécie, versasse a reportagem sobre tráfico de armamentos ou sobre golpe no sistema financeiro, havia interesse público na veiculação da informação, já pela gravidade dos crimes, já pelo fato de haver suspeita de participação de policiais.

Consta na contestação que “não se deve olvidar que a Requerida, enquanto órgão de imprensa, tem não só o direito constitucionalmente garantido, como o dever de informar a sociedade sobre todos os fatos de interesse público e geral. Há que se observar que não pode haver obrigação de indenizar quando não houve ilicitude. A manifestação do direito de informar, quando honesta e inspirada pelo interesse social constitui exercício regular e legitimo de um direito, e como tal não enseja qualquer tipo de indenização (fls.23/24).

Enéas Costa Garcia, na obra “Responsabilidade Civil dos Meios de Comunicações” (1ª edição, “Juarez de Oliveira”), afirma, perante o conflito entre a liberdade de imprensa e os direitos da personalidade, que “o ‘interesse publico’ remete ao conjunto de valores que são mais caros à sociedade) que dizem respeito à sua própria estrutura, que viabilizam a sua existência e tratam do funcionamento das suas instituições fundamentais”. (pag.163).


Em capítulo que trata de filmagem e gravações clandestinas, invasão da intimidade ainda mais grave que o “grampo telefônico”, observa o autor:

O desenvolvimento tecnológico colocou ao alcance da imprensa urna arma devastadora da vida privada: as microcâmeras e os microfones pequenos, que podem ser facilmente escondidos. Até que ponto é lícito o uso deste tipo de equipamento?

Há urna evidente intromissão na vida privada. É tão clara esta intromissão que o agente somente consegue obter imagens e sons a partir do procedimento insidioso de esconder o equipamento. Fosse do conhecimento da vítima a realização da filmagem ou gravação certamente esta não as permitiria, o que denota claramente a ingerência na vida privada.

Ocorre que muitas vezes estas câmeras e microfones acabam sendo usados para provar fatos, geralmente criminosos, que são objeto de investigação pela imprensa. Nesta hipótese não estaria o jornalista protegido pela liberdade de informação, pelo direito de investigar e informar?

A resposta, pensamos, deve ser afirmativa. Apesar da conduta caracterizar intromissão na vida privada, o caráter ilícito fica afastado diante do interesse público representado pela descoberta e prova de condutas criminosas.

Isto porque o direito à vida privada também não tem caráter absoluto, pode sofrer compressões diante de interesses superiores.

Cremos que a solução do problema pode se valer das mesmas construções utilizadas no tema de provas ilícitas. No fundo, a questão seria a validade desta prova (gravação), obtida pelo jornalista, em confronto com o direito de personalidade da vítima.

Malgrado o teor absoluto da norma insculpida no art. 5°, LVI da Constituição, observa Antonio Scarance Fernandes1 que: “vai tomando corpo entre nós a aceitação da teoria da proporcionalidade, visando-se a evitar a aplicação muito rígida do inc. LVI do art. 5°, quando a ofensa a determinada vedação constitucional é feita para proteção de valor maior garantido pela Constituição.”

E conclui o autor: “Em suma, a honra constitucional que veda a utilização no processo de prova obtida por meio ilícito deve ser analisada à luz do princípio da proporcionalidade, devendo o juiz, em cada caso, sopesar se outra norma, também constitucional, de ordem processual ou material, não supera em valor aquela que estaria sendo violada”2 .

Do mesmo sentir Vicente Greco Filho3: “Creio, todavia, que o texto constitucional não pode ser interpretado de maneira radical. Haverá situações em que a importância do bem jurídico envolvido no processo e a ser alcançado com a obtenção irregular da prova levará os tribunais a aceitá-Ia. (…) A norma constitucional de inadmissibilidade de provas obtidas por meio ilícito vale, portanto, como regra, mas certamente comportará exceções ditadas pela incidência de outros princípios, também constitucionais, mais relevantes”.

Barbosa Moreira ressalta4: “o caráter relativo que por força se tem de atribuir ao princípio constitucional atinente a inadmissibilidade das provas ilicitamente adquiridas. Visto que, ainda entre os juristas mais comprometidos com a tese da proibição, se acaba por admitir que ela não se aplica de modo automático e indiscriminado sob quaisquer circunstâncias, fica aberta a possibilidade de uma construção jurisprudencial que tome na devida conta as variáveis necessidades sociais. “Sabemos todos que as normas jurídicas em geral, e as normas constitucionais em particular, se articulam num sistema, cujo equilíbrio impõe que em certa medida se tolere detrimento aos direitos por elas conferidos. Os interesses e valores que as inspiram não raro entram em conflito uns com os outros, de tal sorte que se torna impraticável dispensar a todos, ao mesmo tempo, proteção irrestrita. Para assegurar a harmonia do conjunto, é imperioso reconhecer que eles se limitam reciprocamente de modo inexorável.”

Se é assim no processo penal, onde em jogo a liberdade do cidadão, cremos que a prova ilícita, justificada pela superioridade do interesse que busca tutelar, não deve determinar responsabilidade civil do agente. Deve ser aplicado o principio da proporcionalidade.

Portanto, apesar de haver a invasão da privacidade, esta não determinaria o dever de indenizar, pois estaria o jornalista amparado pelo interesse público da noticia.” (pags. 243/245).

Pode-se, portanto, considerar legitima a publicação da reportagem, mas o grande erro da ré foi fazê-Io sem a preocupação de preservar a identidade do autor. Mencionou-se o cargo e o prenome do autor e não se distorceu o timbre de sua voz, tudo a permitir a sua fácil identificação no ambiente de trabalho e entre as pessoas de suas relações.

Inexistiam elementos minimamente suficientes de comprovação da participação do autor em fatos criminosos, e, assim, mesmo se tratando de autoridade pública, sujeita a maior fiscalização pela coletividade, o jornalista estava obrigado a especial cautela na transmissão da notícia, sob pena de praticar, como acabou ocorrendo, grave ofensa aos direitos de personalidade do autor garantidos constitucionalmente.


Não havia, nem mesmo a ré afirma o contrário, qualquer acusação concreta contra o autor. Não se sabe sequer se seu nome era mencionado, ainda que como simples suspeito, no inquérito policial em curso.

Houve leviandade na divulgação da noticia, com grave dano moral ao autor. O jornalista não se deu ao trabalho de conferir as provas até então existentes sobre a autoria dos apontados delitos, tendo permitido a identificação do autor sem ter previamente investigado o efetivo envolvimento dele nos fatos noticiados.

Aliás, a falta de elementos seguros de tal envolvimento fica evidenciada no fato de a ré não ter querido, até agora. apresentar o texto da reportagem.

Ela se escusa alegando que, após o decurso do prazo de 60 dias previsto no artigo 58 da lei n. 5250/67, destruiu licitamente o texto da reportagem, quando na verdade fê-lo antes do vencimento (a reportagem fora levada ao ar pela segunda vez em 18/8/97, com o que o término do prazo ocorreria à meia-noite do dia 17/10/97, data em que se procedeu à notificação judicial da ré para que conservasse o texto).

Em verdade, não houve a destruição do texto, tanto que posteriormente veio a ser transmitida a reportagem em emissora de televisão do grupo empresarial da ré, fato ocorrido no curso da presente ação e por ela não impugnado.

Acompanho, pois, inteiramente, o excelente voto do Desembargador José Roberto Bedran, designado para a redação do acórdão.

MORATO DE ANDRADE

DECLARAÇÃO DE VOTO VENCIDO

APELAÇÃO CÍVEL Nº 143.007-4/0

SÃO PAULO

Dissenti, “data máxima vênia”, da d. maioria, pelos motivos abaixo elencados.

Meu voto acompanha os doutos fundamentos do primeiro voto do Relator, após alterado, fundamentos jurídicos aos quais abalanço-me a acrescentar:

1º) Não há prova efetiva e concreta de que não haja sido realizada a exorada “distorção de voz” porque se conseguiu a gravação original do comentário em tela (se bem que essa prova seja dispensável porquanto a própria ré não negou tal fato); porém

2º) Pelo assunto da matéria gravada (tráfico de armas, corrupção financeira, etc), a circunstância altamente suspeita consubstanciada no renitente silêncio do autor sobre o teor de sua conversa telefônica com o terceiro investigado (em nenhum momento do processo revelou-o) deixa entrever que o autor não é nenhum “inocentinho”.

Friso: afigura-se-me incontroverso que nenhuma pessoa de moral inquebrantável (afinal de contas, estamos julgando danos morais) iria manter conversa sigilosa com bandido ou com suspeito de crimes daquela natureza; e por que o autor, já que a ré se negou a fazê-lo, não revela o teor de tal conversa? Escondeu-o até o fim;

3º) Num país de mais de 170 milhões de habitantes, em que um programa como aquele é ouvido por, no mínimo, DOIS MILHÕES de pessoas, o autor apresenta, como prova de que tenha sido identificado pelos ouvintes, a maciça prova de apenas DUAS testemunhas, uma das quais (a de fls. 124/126) sequer tinha ouvido o programa em tela (o da CBN) e a outra (a de fls. 121/122), mentindo fragorosamente, diz que ouviu quando a emissora anunciou que a conversa gravada havia sido travada com o Delegado de Polícia chamado André, quando até o próprio autor reconhece que a rádio em nenhum momento referiu e tornou público o nome dele!

E são essas, dentre prováveis dois milhões, as únicas pessoas em cujo depoimento se assenta o decreto condenatório da ré à exorada indenização POR DANOS MORAIS!

4º) Agora, faça-se a seguinte digressão: num ambiente, por exemplo, em que se realiza a sessão do Órgão Especial desta Corte, onde somente VINTE E CINCO desembargadores têm acesso aos microfones, é difícil, às vezes, saber-se, apenas pela voz, quem está falando; calcule-se se fossem os CENTO E TRINTA E DOIS participando dessa sessão!

Calcule-se, agora, o percentual de probabilidade de identificação da voz de um entre mil e quinhentos magistrados estaduais da ativa. Exemplo: escuta-se alguém falar, a rádio diz que se trata de um Juiz de Direito e, aí, o ouvinte, imediatamente, o identifica: esse é o Juiz de Santa Rita do Passa Quatro!

E se apenas se anunciasse que se tratava de um Juiz de Direito sem se distinguir entre os da ativa e os aposentados? Qual o grau de probabilidade de um ouvinte distingui-lo pela voz? Alvo, com certeza, perto de ZERO!

Isso em se tratando de Juízes e apenas do Estado de São Paulo!

Calcule-se se se anunciasse que se tratava de um Delegado de Polícia, sem se distinguir entre estaduais, federais, da ativa, aposentados, etc, sabendo-se que são em número brutalmente maior que o de Juízes! Praticamente IMPOSSÍVEL!

Ora, sem tal possibilidade de identificação, que, ademais, haveria de ser inteiramente fácil a qualquer ouvinte, não há prova cabal do prejuízo moral que o autor diz haver sofrido.

Daí por que meu voto negava provimento ao apelo.

THEODORO GUIMARÃES

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