De costas para o povo

Entrevista: André Luís Alves de Melo, promotor de Justiça

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23 de julho de 2006, 7h00

André Luís Alves de Melo - por SpaccaSpacca" data-GUID="andre_luis_alves_melo.jpeg">A prioridade do sistema judicial brasileiro é atender os interesses de seus próprios protagonistas. Em primeiro, segundo e terceiro lugar, vem a conveniência dos operadores do direito. Só depois se observa o interesse da população em geral. A opinião é do promotor de Justiça de Estrela do Sul (MG), André Luís Alves de Melo. Segundo Melo, a discussão do acesso à Justiça é tocada mais pela preocupação de garantir mercado para os profissionais do Direito do que para garantir o direito e a Justiça para o cidadão.

Para Melo, está instalado no Brasil o “Estado Democrático do Bacharel de Direito” em que o sistema jurídico é o “centro do universo” e os advogados detêm o poder “como os coronéis de antigamente”. Deste ponto de vista, as classes mais baixas ficam excluídas já que prevalece a visão e os interesses da classe média.

Segundo o promotor, 80% dos problemas da população carente são questões de família, registro público e alvará, e poderiam ser resolvidos de maneira mais simples sem a necessidade de passar por um processo judicial. Uma alternativa seria encaminhar essas questões para serem resolvidas em cartórios ou nos Juizados Especiais. Mas isso não acontece, afirma ele, porque para o tripé do sistema judiciário representaria abrir mão de poder.

Para o promotor, a inclusão social não se faz apenas pela via judicial e deve passar pela garantia de acesso à Justiça para todo cidadão. “Se o cidadão tiver acesso a seus direitos antes, ele não precisa ir depois buscar o acesso ao Judiciário”. A inclusão social, afirma, se promove franqueando ao cidadão excluído o seu acesso aos instrumentos da cidadania, o que que começa com a documentação — que muitos sequer têm.

O Ministério Público também sofre com essa espécie de “síndrome da classe média”, de acordo com Melo, e acaba priorizando as ações que beneficiam as classes mais altas em vez de focar as questões sociais. Melo traz também outras idéias e projetos para o que ele chama de “reengenharia jurídica no Brasil”.

Este é, por sinal, o título de um dos vários livros que Melo escreveu sobre o tema, que, por força de seu trabalho e de seus estudos, acabou se transformando em sua especialidade. Membro do Ministério Público Democrático, movimento que defende maior democratização da instituição, Melo também abriu um site na internet ( www.direitomoderno.com) para defender e propagar suas idéias.

André Luis Alves de Melo se formou em Direito em 1993, trabalhou como defensor publico e depois entrou para o Ministério Público. Fez especialização em processo civil e mestrado onde pesquisou o sistema judiciário em vários países. No mestrado, passou a perceber que existem outras vias de solução de conflito que não precisam passar necessariamente pelo sistema judiciário.

Participaram da entrevista os jornalistas Márcio Chaer, Maurício Cardoso e Priscyla Costa.

Leia a íntegra da entrevista:

ConJur — O que vem a ser a sua proposta de reengenharia do sistema judiciário?

André de Melo — Atualmente o sistema jurídico não pertence ao povo mas ao advogado. Não temos um Estado Democrático de Direito mas um Estado Democrático do Bacharel de Direito. A democracia para o bacharel em direito é prevalecer a vontade dele e sem participação popular. O diploma em direito tornou-se mera forma de status e poder, sem necessariamente um conhecimento efetivo social, apenas usam a questão processual e sem reflexão. O sistema judicial concebido no Brasil não se destina a resolver os problemas do jurisdicionado. O interesse da população vem depois dos interesses dos operadores do sistema. Toda a arquitetura é voltada para eles próprios. A reengenharia do sistema jurídico passa por um processo cultural de democratização do sistema jurídico. Temos que considerar que o sistema judicial não é o centro do universo jurídico, ele tem que ser uma das galáxias. Pode ser uma galáxia importante, grande, mas apenas uma galáxia. Atualmente tudo se resolve por meio de uma ação, ninguém sugere que se resolva o problema com uma conversa, com negociação. A própria mídia estimula que as pessoas entrem na Justiça. Há uma cultura de demanda ao Judiciário. A discussão em torno do acesso à justiça tem sido tocada mais pela preocupação dos protagonistas de garantir sua reserva de mercado do que em garantir a concretização da justiça social de fato em relação à população carente.

ConJur — Como modificar essa cultura de demanda ao judiciário no Brasil?

André de Melo — Nos Estados Unidos, por exemplo, começam a surgir novas alternativas para resolver problemas sem que haja a necessidade de recorrer ao Judiciário em um primeiro momento. Por exemplo, existem máquinas nos aeroportos americanos que oferecem uma solução para o seu problema por 20 dólares. O programa da máquina é alimentado por respostas de advogados que sugerem soluções em casos simples. A informação é rápida e barata. O mesmo não ocorre no Brasil, os advogados retêm as informações e atuam como os coronéis de antigamente porque ficam com o poder concentrado em suas mãos e este só é utilizado ao ajuizar uma ação. O controle é consolidado de forma política sem participação popular no sistema Judiciário.


ConJur — Como promover o acesso da população ao sistema Judiciário?

André de Melo — Temos que pensar em criar algo como um Conselho Nacional de Assistência Jurídica. Por exemplo, o Conselho Nacional de Saúde funciona bem porque tem representantes do governo, dos usuários e representantes dos prestadores de serviço. O dinheiro é encaminhado para o serviço e é canalizado para as instituições mais produtivas. O serviço oferecido é priorizado e não as instituições. Por isso em um primeiro momento não deveria prevalecer a Defensoria Pública ou a Assistência Judiciária de determinada instituição, mas um órgão centralizador dos recursos que repassaria para as entidades mais eficientes e que oferecessem maior qualidade. A chefia dessas instituições deveria pertencer aos pobres. Um sistema que pertence à classe média para resolver o problema da classe baixa é muito sonhador e é mais do que erro.

ConJur — A Defensoria Pública não funciona?

André de Melo — Não consigo entender como é que um país que tem 600 mil advogados, o terceiro país em número de advogados no mundo, pode ter falta de atendimento jurídico. Deve ser falta de organização. Os defensores querem monopólio da defesa do carente. Outro problema da defensoria é que ela impõe ao cidadão um advogado que ele não escolheu. Isso viola o direito de cidadania. Até médico do SUS o carente pode escolher.

ConJur — A participação de membros da sociedade nos órgãos administrativos teria que ser instituída por projeto de lei?

André de Melo — Sim. Mas o problema é que os projetos de lei ao passarem pelo legislativo e executivo acabam se tornando algo ainda mais complicado, o que não resolve. Podemos comprovar isso com muitos exemplos. O mais recente é o projeto sobre mediação aprovado. O projeto era simples e tinha sete artigos, mas na sua aprovação conta com 42 artigos. Complicaram de tal forma que para mediar é necessário quase que dar um tiro de canhão para matar um mosquito. Passamos a criar um monstro que não resolve o problema de forma prática e eficiente. Nós precisamos trabalhar para ver a Justiça como um fim para o povo, não para nós que fizemos Direito. Precisamos diferenciar acesso ao Direito, de acesso ao Judiciário e de acesso à Justiça. São coisas diferentes.

ConJur — Qual é a diferença?

André de Melo — Pode haver acesso ao direito sem passar pelo Judiciário. Por exemplo, a pessoa sofre um acidente de trabalho e consegue ter direito ao seu auxílio-doença no INSS. A pessoa pode usar o transporte público ou o sistema público de saúde funcionando plenamente bem e então estará tendo acesso à Justiça. Somente nos casos em que ela não obtém o que ela precisa por esses canais de acesso, deve utilizar a via judiciária. O judiciário deveria ser a última via, mas está se transformando na primeira. O sistema Judiciário é uma estrutura muito cara, que não deveria ser usada para resolver problemas mais simples.

ConJur — Por que os problemas mais simples já não são resolvidos pelas vias alternativas?

André de Melo — Às vezes, nós bacharéis de direito complicamos o negócio para justificar o nosso trabalho. Há resistência em resolver o problema pelas vias alternativas. Os acordos feitos em Comissão de Conciliação Prévia da Justiça do Trabalho são criticados. Alguns dizem que é inconstitucional a tentativa de implantar a arbitragem e alegam que não há recurso para implantar a mediação. Vão sendo criadas dificuldades para impedir que o problema seja solucionado por caminhos mais simples.

ConJur — O Juizado Especial não é uma boa alternativa de acesso ao Judiciário pela população carente?

André de Melo — O Juizado é excelente. Mas o que devia ter uma função social, onde os menos favorecidos poderiam resolver seus problemas, passa a ter uma função patrimonial em que a classe média ajuíza ação sobre o acidente com seu carro ou sobre TV por assinatura. Se houvesse efetivo interesse em garantir acesso à Justiça, ampliava-se a competência dos juizados especiais para causas de família, concessão de alvarás e registros públicos. Com isso, 80% dos problemas do povo estariam resolvidos.

ConJur — Mas nos Juizados não há um valor limite das ações?

André de Melo — Esse limite de 40 mínimos dos juizados não é previsto pela Constituição. A Carta fala em causas de menor complexidade e não em faixas de valores. Ao estabelecer a classe das pessoas pelos valores de suas causas estamos lidando mais com interesses mercadológicos do que com preocupação social.

ConJur — O que o senhor acha da gratuidade dos Juizados Especiais?

André de Melo — A gratuidade tem de ser controlada e deve ser garantida apenas para as classes mais baixas que comprovarem carência. A classe média deve pagar pela sua ação. O próprio Conselho Nacional de Justiça poderia instituir uma norma para que fosse preenchido um formulário simples sobre a condição financeira de quem entra com a ação para o juiz analisar.


ConJur — Quanto custa manter a gratuidade das ações nos Juizados Especiais?

André de Melo — Não existe esse controle geral. Mas cada processo custa, em média, cerca de R$ 3 mil para o Estado. É um custo altíssimo, se pensarmos na quantidade de processos, sem triagem nenhuma de quem realmente não poderia pagar. Eu representei no Conselho Nacional de Justiça sugerindo que todo sistema judicial informe quanto foi gasto nos últimos cinco anos. Pedi também que o Conselho Nacional de Justiça faça o formulário de declaração financeira. Se a pessoa mentir é falsidade ideológica comprovada, vai colocar seu nome em risco, já que esse material seria posteriormente analisado pela Fazenda. Na França é assim, um conselho, com a presença do ente fazendário, não dá a gratuidade sem que seja comprovada a falta de recursos. Se ele tiver dúvida, manda o assistente social verificar.

ConJur — Se o processo judicial na Justiça trabalhista custa pelo menos R$ 3 mil e a maioria das ações são ajuizadas para o recebimento de valores abaixo de R$ 800, a máquina de se fazer Justiça sai mais cara que a própria Justiça?

André de Melo — Por isso a importância de se procurar outras vias para solucionar problemas. Se o sistema judicial funcionar muito bem, reduzem-se as ações. Pois numa sociedade saudável, onde o limite entre o que é certo e o que é errado é bem determinado a tendência é que a população cumpra as regras. A sociedade se auto-regula nesse caso.

ConJur — O senhor não vê como uma vantagem a maior jurisdicionalização da vida quotidiana proporcionada pela Constituição de 88?

André de Melo — A concentração da via judicial é uma desvantagem. A opção judicial teria que ser a última. O sistema judicial é caro e funciona como uma UTI. Um dedo inflamado não é caso de internação, muito menos de tratamento intensivo. Precisamos arrumar outros meios para resolver os problemas, a maioria dos conflitos não deveria ser resolvida no Judiciário. Não vejo problema, por exemplo, dos divórcios consensuais e sem filhos serem resolvidos em cartórios. Não vai aumentar o risco de golpe de umas das partes. Na maioria dos divórcios, as pessoas envolvidas nem têm bens.

ConJur — O maior acesso da população carente ao Judiciário resolveria o problema da desigualdade?

André de Melo — A inclusão social não se faz apenas pela via judicial. O acesso à justiça se promove franqueando ao cidadão excluído os instrumentos da cidadania, que começam com a documentação, que muitos sequer têm. Até para ter seus documentos ele precisa pagar. Para ter um CPF vai ter que pagar em média R$ 4, para tirar a carteira de identidade é uns R$ 30. Se ele quiser tirar carteira de motorista então, já se vão uns R$ 1,2 mil. Até para usar o banheiro da rodoviária tem que pagar. A residência não é registrada porque ele não tem como pagar a escritura. Enfim, falta tudo para essa população que tem pouca coisa para pedir judicialmente, mas que precisa de moradia, alimentação, educação, saúde, asfalto, iluminação pública, certidão de nascimento, cpf, escritura da casa. Tudo isso se faz com políticas públicas adequadas.

ConJur — O senhor acha que a OAB tem conseguido preparar advogados para atender também os menos favorecidos?

André de Melo — A tendência da OAB é proteger o mercado dos profissionais mais experientes com formas de trabalho mais antigas e impedir as novidades,o que dificulta o acesso do advogado mais jovem, pois não pode se unir em Cooperativas por exemplo. Não permite que os advogados divulguem seu trabalho, mas é um trabalho como qualquer outro e os advogados precisam ganhar dinheiro. A OAB também quer controlar quanto o advogado deve cobrar por serviço prestado. Nenhuma instituição de classe pode controlar preço de serviço, mas ninguém reclama. A Ordem fica preocupada com essas questões e esquece da formação dos seus membros e da qualidade do serviço prestado.

ConJur — O que o senhor acha de se criar um plano de assistência jurídica nos mesmos moldes do plano de assistência saúde?

André de Melo — Um plano assim aumentaria a cultura de consulta ao advogado no Brasil. Na consulta o cidadão vai conhecendo os seus direitos até pedir o ajuizamento de uma ação. É bom para o advogado, que pode desenvolver o seu trabalho preventivo, e para a população que vai saber mais sobre seus direitos. As consultas diminuiriam eventuais conflitos na Justiça.

ConJur — O advogado contribui para essa mentalidade de levar todos os conflitos pela via judicial?

André de Melo — Contribui muito. Para os advogados os processos têm que ser complicados. É como se os advogados falassem assim: “é muito perigoso entrar no Judiciário, eu vou te proteger”. E usa esse argumento para justificar o seu trabalho até nos procedimentos mais simples que poderiam ser resolvidos por outras vias. O processo judicial tornou-se meio de poder do setor jurídico. O processo precisa ser complicado para que o mundo jurídico possa se sentir importante.


ConJur — Há um movimento para tornar obrigatório a presença do advogado no Juizado Especial. O senhor acredita que isso possa acontecer?

André de Melo — Todos os tratados internacionais que existem no Brasil, até o penal de Roma, que é recente, assegura ao cidadão o direito de se dirigir diretamente ao Judiciário sem que seja representado por um advogado. É o chamado jus postulandi. O advogado tem a prerrogativa do monopólio para representar, mas os tratados garantem que qualquer pessoa que quiser entrar com uma ação tem o direito de fazer uma petição direta. Só que se o cidadão quiser ajuizar sua própria ação vai encontrar resistência. Não vai ser fácil garantir seu direito para se defender em julgamentos, conciliação, execução de pequena causa, de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo.

ConJur — O estudante de Direito está sendo preparado pelas faculdades para atuar nessas outras vias?

André de Melo — Não. Não vejo esses debates nas faculdades. As instituições não têm acompanhado nem mesmo a Reforma do Judiciário. As escolas não discutem as questões administrativas e nem como discutir a estrutura do sistema judiciário brasileiro. Muito menos como funciona o sistema norte americano, o tribunal alemão. Apesar do mundo globalizado o advogado brasileiro está no seu mundinho. Quando eu estava no mestrado, em 2000, conversei com uns dez alunos de direito, oito deles não sabiam o que era arbitragem. Eles não conhecem as vias extra-judiciais. Aprendemos apenas a teoria do Direito e o estudante fica encantado com aquele empoderamento da linguagem, que é uma forma de exclusão também da população. “Agora eu sou superior, eu falo uma linguagem que ninguém entende” e começa a se achar poderoso.

ConJur — O senhor já teve muitos atritos com a OAB por conta das suas idéias?

André de Melo — Tenho conseguido muito mais adversários do que amigos. Mas como não tenho cargo de chefia no Ministério Público, eles não me criticam muito, eles optam por ignorar. Porque se eles me criticarem terão que usar dados para rebater meus argumentos, também darão mais espaço para minhas idéias e eles não têm interesse nenhum nisso.

ConJur — O Ministério Público tem cumprido seu papel?

André de Melo — O Ministério Público também tem sofrido com a síndrome da classe média. Não é errado ajuizar Ação Civil Pública contra TV por assinatura, mas entre esta ação e uma outra que seja de interesse social, o MP deveria optar pela segunda. As nossas prioridades não devem ser a da classe média.

ConJur — O acesso ao Judiciário deveria ser menos desejável?

André de Melo — O desejável é que o uso dos sistemas de serviços públicos, as relações sociais transitem normalmente e fluam pela sociedade. Uma sociedade sadia transita por todas as relações: serviço público, social, relação de vizinhança, familiar, sem necessidade de intervenção jurídica tradicional. O trabalho do advogado deveria ser muito mais preventivo, ter uma visão mais de conciliação, como já ocorre na Europa e nos Estados Unidos. A forma dos advogados brasileiros trabalharem é bem mais limitada. O advogado só entra em ação depois que já ocorreu o conflito. É um trabalho que é mais desgastante psicologicamente e menos complexo, pois é mais fácil de delimitar o problema.

ConJur — Não é utópico pensar em uma distribuição socialista de Justiça já que vivemos em uma sociedade capitalista?

André de Melo — Não sei se é utópico, mas é difícil de colocar em prática. Os brasileiros têm o discurso em defesa dos direitos sociais mas somos paternalistas e essa cultura se reflete no aspecto jurídico também. Mas então nós temos de admitir que nós estamos tratando de uma questão patrimonial. Se nós conseguirmos amenizar essas diferenças através de políticas públicas já é um grande passo. Também precisamos começar a organizar a sociedade dentro desses processos extra-judiciais que proporcionem maior acesso ao direito pela população mais pobre.

ConJur — A arbitragem, que é estabelecida geralmente em causas patrimoniais, é um passo para começarmos a pensar em vias alternativas?

André de Melo — É uma opção. Eu acho que o governo poderia dar até aporte financeiro para esses tribunais de arbitragem. Goiânia montou um projeto de arbitragem junto ao Judiciário e funcionou. Eles já fizeram 50 mil julgamentos. O desembargador que implantou conseguiu montar uma estrutura complexa só que mais barata do que a tradicional. Essa arbitragem é para os pobres também, não é só para rico.

ConJur — O ministro Gilmar Mendes fez um levantamento para concluir que de cada dez ações oito são consideradas ineptas. Mas se em uma ação o Ministério Público consegue garantir remédio para toda uma população, ou proteger toda a Serra do Mar, já não está justificada a produtividade, já que o mais importante é a qualidade e não a quantidade?


André de Melo — Essa é uma segunda análise. Primeiro é preciso ter uma análise quantitativa para depois partir para uma qualitativa. Ainda vamos chegar ao critério qualitativo. Claro que uma ação só, que representou 160 mil pessoas vale mais que uma ação de divórcio. Mas não temos nem acesso aos dados gerais quantitativos, quanto mais qualitativos.

ConJur — Esses dados quantitativos do Ministério Público existem? Por que não são fornecidos?

André de Melo — A classe jurídica não gosta de lidar com valores, e nem com estatística, partindo da premissa de que todo Direito é muito importante. Nós aprendemos isso na faculdade: “não importa o valor do direito, todo direito é sagrado”. E então se começa a discutir a questão patrimonial, rejeitando estatística com esse argumento de que a estatística não mede a qualidade do trabalho. E não mede mesmo. Mas é um indício.

ConJur —Credita-se a uma corrente de pensamento paulista, a tendência de valorizar o processo como se fosse um Deus. Para esse segmento o processo se tornou mais importante que a causa. Isso é verdade?

André de Melo — É verdade. Mas essa corrente não tem adeptos só em São Paulo, no triângulo mineiro também é muito forte. O processo foi fortalecido em 1940, quando o sistema Judiciário foi nacionalizado. A partir daí foi criada a OAB, a carreira do Ministério Público, a carreira do judiciário. O problema é que as leis não mudaram da década de 40 para cá como deveriam ter mudado. Todo mundo sabe que nosso Código de Processo Penal é péssimo, horroroso, mas ninguém consegue mudar. Há um mercado enorme por trás disto. Deveria haver só três tipos de processo penal: para crimes leves, médios e gravíssimos. Não tem necessidade de ter diversos tipos como há atualmente e 70% dos processos criminais seriam resolvidos em menos de 6 meses, e com um detalhe: com menos penas privativas de liberdade.

ConJur — Qual seria o modelo ideal para resolver os problemas da população carente?

André de Melo — O modelo ideal é próximo do que já existe com o SUAS — Sistema Único de Assistência Social, o SUS na área social. O serviço já funciona em 3 mil cidades do país. Cada cidade, que conta com o programa, tem o Cras — Conselho de Assistência Social. Cada equipe do Cras tem um administrador, um psicólogo e um assistente social. A idéia é tentar com que os advogados façam parte da equipe para resolver questões simples. De acordo com o meu projeto são necessários no mínimo 5,5 mil advogados para participar do programa. O assistente social também pode ser substituído por um agente comunitário com segundo grau, que faria visita nas casas da população local para ajudar a detectar problemas, o que não custaria caro para o estado e já faria a inclusão social deste agente da comunidade. Depois o problema seria encaminhado para os especialistas que tentariam resolver pela mediação.

ConJur — Existe alguma experiência deste modelo funcionando?

André de Melo — Sim. Implantamos um projeto piloto em Grupiara (MG), uma cidade com 3,3 mil habitantes, em parceria com a prefeitura, que já está funcionando há 2 meses. A idéia é que os funcionários remunerados se dirijam aos bairros carentes e façam um primeiro levantamento das necessidades da população. O levantamento faz uma previsão de quem precisa tirar documentos como RG, CPF ou firmar escrituras, fazer reconhecimento de paternidade, casamentos e separações. O pobre precisa é que esses problemas sejam solucionados. E que ele seja incluído em programas como Benefício de Pensão Continuada do INSS, que é para idosos carentes ou no Programa de Bolsa-Família. Com 100 mil agentes comunitários, nós revolucionaríamos o conceito de inclusão social no país.

ConJur — Um passo para a desjurisdicionalização seria a regulamentação da função do juiz de paz. Como está a situação?

André de Melo — O Estado tem se omitido de cumprir inciso II do artigo 98 da Constituição que prescreve a eleição do juiz de paz. Mas Minas Gerais regulamentou há pouco tempo a questão e nós teremos eleições para os cargos em 2008. O juiz de paz tem uma função muito específica na Constituição, de fazer casamento e atuar em alguns casos de conciliações. Ele não tem poder jurisdicional, não precisa ter formação em Direito e tem um mandato de quatro anos, por isso precisa estar filiado a um partido político. É uma função bem simples e faz parte da desburocratização que estamos tratando, mas que ainda não tem sua função regulamentada em todos os estados.

ConJur — Quais seriam outras propostas para desjurisdicionalização?

André de Melo — Passar para a esfera adminitrativa algumas questões como: protesto da dívida ativa nos cartórios (artigo 1º da lei 9294/96) em vez de execução fiscal. A utilização de Tribunal Arbitral para questões meramente patrimoniais, sendo que o Estado poderia subvencionar alguns, pois a estrutura é mais barata e pode ser volante. Tirar da Justiça os inventários consensuais, divórcios e separações consensuais para serem homologadas em cartórios, bem como guardas e alimentos, sendo que neste último conste no acordo a possibilidade de prisão civil mediante pedido judicial e de abatimento do Imposto de Renda. Atualmente a lei é omissa nesses dois casos, o que desestimula os acordos extrajudiciais. Outra possibilidade seria a mediação com remuneração e incentivo estatal. Há outras idéias como a da instituição de procons em cidades com mais de 18 mil habitantes; a criação de juizados municipais de conciliação (sem jurisdição, apenas mediação e conciliação).E, por fim, atribuir outras funções do ECA como expedir alvarás de viagem, de festa e portarias para o Conselho Tutelar, sendo fiscalizadas pelo Ministério Público.

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