Decisão do homem

A impossibilidade humana de um julgamento imparcial

Autor

  • Liza Bastos Duarte

    é advogada professora da Universidade Luterana do Brasil especialista em Direito Penal e mestre em Gestão de Negócios do Mercosul pela Uces — Universidad de Ciencias Empresariales y Socialies.

21 de julho de 2006, 7h00

“O processo existe porque os homens não sabem amar. Se o soubessem, se pudessem ter perenemente cultivado a reciprocidade, a tolerância, a compreensão e a longanimidade, teriam sabido solver esse permanente conflito de interesses que se diria inerente a natureza humana. Se esse eterno conflito só se pode validamente dirimir através do processo, é assim o processo o sucedâneo do amor com que os homens não souberam viver”. Francesco Carnelutti

“Falo dos incidentes simbólicos da linguagem que perturbam a filosofia da universalidade e recuperam os desejos para integrá-los a ordem do real, devolvendo-lhes um tempo político perdido. É, de certo modo, substituir, arrancando sentidos alugados, um sensatez censora por um contra-senso”. Luis A. Warat

O presente trabalho tem como objetivo questionar o conceito jurídico de imparcialidade irrestrita, sobre o qual repousa a justiça e o ato decisório. Visa, também, a fazer uma retrospectiva filosófica, psicológica e jurídica, revendo a possibilidade e a conveniência de o direito assumir que suas decisões são pautadas nesse conceito de imparcialidade, bem como levar os operadores do Direito e a sociedade como um todo a refletir sobre o peso desses conteúdos e valores anteriores a qualquer juízo nas formulações das decisões jurídicas.

Introdução

Embora a relação tridimensional do direito já parta da pressuposição de existência de diferentes versões de um mesmo fato ou acontecimento, essa tensão se articula e tranqüiliza na figura de um juiz imparcial que interpreta a lei e diz o direito. A doutrina jurídica estrutura o direito nas condições de distanciamento do magistrado das partes e na sua imparcialidade como critério essencial para que se realize a prestação jurisdicional e se fundamente o ato decisório.

Entretanto, com o passar dos séculos, a idéia da imparcialidade ficou esmaecida pela introdução de diversos outros conceitos advindos de outras áreas como a filosofia, a sociologia e a psicologia, que acabam por entender que a imparcialidade tão buscada pela justiça, só pode ser vista de maneira mitigada, quase como uma imparcialidade consciente, justificada e motivada.

Ocorre que, numa visão mais integrada de sujeito, ele, além de indivíduo, passa a subsumir uma concepção social, enquadrando em diferentes estruturas, e convivendo com diferentes ordens de rupturas o que contribuem para sustentar a proposição de uma reflexão mais aprofundada sobre a questão da imparcialidade[1]. Esse pensar mais criterioso e consciente, tendo em vista o dever de ajuste do propósito da lei às aspirações sociais, deve conferir à mesma um sentido de eficácia na resolução dos conflitos sociais que engendram a lide. Aliás, é partindo dessa premissa, que vale colocar em discussão a possibilidade de um julgamento imparcial, destituído de uma valoração prévia.

Por isso, em primeiro lugar, é necessário reafirmar que, embora a possibilidade da Justiça se paute verdadeiramente no conceito finalístico de um julgamento imparcial, esse conceito contém aqui um sentido de meta que, embora inatingível, não deve deixar de ser perseguida.

Os pensadores e a imparcialidade

Diferentes áreas das ciências humanas vêm, há bastante tempo, informando que a racionalidade se expressa influenciada por diversos mecanismos desconhecidos e por um conhecimento que se estrutura aprioristicamente à formulação do conceito racional, razão pela qual não se pode mais conceber a realidade sob o império da razão, sem considerar as inúmeras influências (conscientes e inconscientes, propositais ou não) que estão em jogo quando se profere um ato decisório.


A Idade Moderna Clássica, era do racionalismo e da consciência, fala da cultura como fundamento da razão. Nesse período, nasce a crença de um conhecimento objetivo do mundo mediante a observação e a experimentação. O Positivismo é a busca do conhecimento do que é, para se saber sobre o que será.

A filosofia positivista crê em um sujeito que realiza o experimento ou observa a realidade de maneira distanciada, numa posição isenta e neutra de onde pode conhecer o mundo.

Mas, já Kant[2] [3] concebia a imparcialidade da seguinte forma: na verdade não se podem conhecer os objetos em si, ou a coisa em si; conhece-se a realidade antes de tudo a partir de uma forma personalíssima de compreender o conhecimento. Para ele, o aparelho cognitivo do homem está condicionado às “categorias do entendimento”, que possibilitam um conhecimento ou uma formulação prévia a respeito do objeto em apreciação.

Hegel[4] fundamenta a autonomia e a identidade pessoal de qualquer sujeito num processo de aprendizagem quanto à sua própria potência autônoma: a autonomia é o resultado e o processo auto-reflexivo da auto tematização da consciência. Nenhum filósofo, antes Hegel, consegue pensar, com radicalização semelhante, a complexidade desta autonomia, incluindo o processo de sua constituição objetiva. É pela reconstrução do percurso, pela feitura da trajetória dos pensamentos apriorísticos e pela descoberta de suas conexões auto-reflexivas, que se toma a “realidade visual” como verdade absoluta.

Para Hegel, a consciência só existe quando reconhecida, através de uma formulação intelectiva prévia e seu posterior catalogamento no interior de um certo segmento ou facção. Somente o autoconhecimento, como experiência do erro sobre uma pressuposição, é que possibilita a unificação das duas consciências, a sentida e a formulada através de reprodução do sentir [5]. O objeto central da dialética hegeliana é a descoberta das condições que fazem da consciência ingênua o fundamento enganador da autonomia do saber. Aliás, Hegel exemplifica muito bem essa visão enganadora com a dialética do senhor e do escravo, onde acaba por demonstrar a dependência do senhor.

Toda a fenomenologia do espírito é a história dessa consciência infeliz que busca a certeza em si mesma, vendo representada a sua própria verdade objetiva. É no puro gozo dos objetos sensíveis, na sua destruição, no seu catalogamento em determinados grupos, que essa consciência procura, em primeiro lugar, sua verdade. A ausência de sucesso nesta busca evidencia a procura vã dessa verdade nas coisas. Somente uma outra consciência que pode amá-la, ou odiá-la, lhe dará a certeza de si mesma que define a consciência de si. Este reconhecimento pode se operar tanto em nível individual como em termos coletivos, pelo reconhecimento de pertença a determinados grupos ou filosofias. Só outra consciência pode reconhecê-la, e dar a essa certeza subjetiva, uma realidade objetiva[6].

Tal pressuposto demonstra que, na formação da auto-consciência, existem duas etapas. A primeira consiste na reflexão da consciência no que tange a si mesma. A segunda, ainda que elementar, acontece intelectivamente através de uma contradição formal a tudo que não pertencer a verdade a ser catalogada, visando à inclusão de si mesmo, de determinado grupo ou valor e mutuamente a exclusão de toda e qualquer pessoa ou valor não pertencente àquele grupo. Dito de outro modo, para legitimar verdades, o homem faz sem perceber a exclusão de toda e qualquer premissa que as contrarie.

Marx pensou a consciência como produto social, acreditando ser uma forma de produção determinada quem molda a consciência. Em sua obra, em particular no O Capital, encontra-se uma análise estrutural das relações capitalistas de produção. Marx[7] desconfia das estruturas aparentes para traduzir as estruturas que realmente explicam a realidade. Considera ser papel da ciência criticar as representações para chegar às estruturas reais do mundo que não podem deixar de aparecer ao avesso e até de dissimular perante a observação ingênua.


Segundo Marx, em todas as formas de sociedade, é uma produção determinada e as relações por ela geradas que conferem a todas as outras produções e às relações por elas geradas posição e importância. Há, pois, uma estrutura de produção dominante e estruturas subordinadas por ela determinadas. Em cada elemento e em cada papel se pressente o todo. Há, nessa medida, a presença da estrutura nos seus efeitos.

Como decorrência, indivíduos determinados, com uma atividade produzida segundo um modo determinado, entram nessas relações sociais e políticas determinadas. Por conseguinte, a forma pela qual o homem produz determina seu pensamento e desejos, isto é, a produção das idéias, das representações e da consciência está, antes de tudo, direta ou indiretamente ligada à atividade material dos homens. É a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens surgem como evocação direta de seu comportamento material.

Marx[8] pensa que mesmo as fantasmagorias do cérebro humano são sublimações que resultam, necessariamente, do seu processo de vida material, que se pode averiguar empiricamente e que repousa em bases materiais. Devido a esse fato, a moral, a religião, a metafísica e tudo o que resta da ideologia, bem como as formas de consciência que lhes correspondem, perdem imediatamente qualquer aparência de autonomia. Acredita que, se a forma pela qual um homem produz determina seu pensamento e seus desejos, então a consciência dos homens não determina sua existência, mas, pelo contrário, é sua existência social e material que lhes determina a consciência.

Para Marx, a consciência nunca pode ser outra coisa senão o ser consciente. Por conseguinte, a consciência nada mais é do que um produto social e material.

Segundo ele a classe que detém os meios de produção material, dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção intelectual. Por isso, as idéias dominantes são a expressão de uma classe a dominante. Isto porque os indivíduos que constituem a classe dominante possuem uma consciência e, por conseguinte, pensam, e, enquanto dominam como classe, dominam em toda a extensão de sua classe e, conseqüentemente, dominam como produtores de idéias, regulamentando a produção e distribuição de idéias de sua época. “as idéias são, pois, as dominantes da época a que pertencem[9]“

Para Marx, a ideologia é um sistema de idéias e representações que domina o espírito de um homem ou de um grupo social. Acredita que uma teoria ideológica repousa na história das formações sociais e, portanto, na história dos modos de produção. Pensa a ideologia como uma construção imaginária, resíduo diurno apresentado em ordem e composição arbitrárias da única realidade plena e positiva: a história concreta de indivíduos reais, produzindo materialmente a sua história. Mas, para ele, em toda a ideologia, tanto o homem como as suas relações aparecem invertidas

Ás concepções marxista agregam-se as descobertas freudianas do inconsciente marcam a crise da filosofia da consciência. Até então se acreditava na unidade da consciência; o psiquismo era concebido como idêntico à consciência. A psicologia de freudiana se vê confrontada com uma dimensão desconhecida do psiquismo que é responsável por certos comportamentos e distúrbios da personalidade: o inconsciente.

Também Freud coloca em cheque a noção de consciência. Com ele postula-se uma nova questão: a consciência como imbuste, ilusão. Até as pesquisas freudianas, o inconsciente era apenas um não consciente. Mas Freud dá provas da existência positiva de um inconsciente dotado de qualidades próprias que permitem defini-lo. Dessa forma, acaba com a ilusão de um conhecimento imparcial ou neutro da realidade, ao propor uma reflexão sobre a inevitável participação do sujeito com seu conjunto de valores no processo do conhecimento.


O conceito de inconsciente traz consigo o rompimento com a racionalidade pura e imparcial, demonstrando que a consciência pura destituída de significação prévia é mera ilusão e reafirmando a impossibilidade de um agir, reagir, e analisar o mundo impulsionado meramente pela racionalidade.

Freud fala de três regiões quando descreve os fenômenos mentais: o consciente, o pré-consciente e o inconsciente.

Denomina de inconsciente o processo psíquico cuja a existência, segundo ele, é se obrigado a supor e que está sendo ativado no momento, embora no momento não se saiba nada a seu respeito. Considera que a maioria dos processos conscientes são conscientes apenas num curto espaço de tempo. Demonstra, por exemplo, que, nos lapsos de língua, há uma intenção inconsciente que não foi levada a cabo. Ao inconsciente que está apenas latente e que, portanto, facilmente pode se tornar consciente, chama de pré-consciente.

Foi exatamente a descoberta de regras que governam o pensamento inconsciente e das deformações que o sonho opera sobre os pensamentos latentes que lhe permitiram pressupor a existência de duas regiões do aparelho psíquico até então desconhecidas, uma instância crítica — o pré-consciente — e uma instância criticada — o inconsciente. O pré-consciente controla a vida desperta e nossas ações voluntárias. O inconsciente só ascende ao consciente passando por essa instância intermediária. A consciência é, então, a zona sensorial que percebe o conteúdo emanado por esta instância. Segundo Freud, a consciência não recobre sequer o conjunto das atividades ideativas, pois o ato de tornar-se consciente é independente do ser representado.

Para Freud, o aparelho psíquico compõe-se de três: o superego, ego e o id.

O superego[10], é a instância que resiste, rechaça, reprime o ego e que coincide com o ego da psicologia popular. Aproxima-se do que comumente se chama de consciência e pune o homem com censuras dolorosas, sendo responsável pelo sentimento de remorso[11]. O superego aplica um rígido padrão moral ao ego indefeso que lhe fica à mercê.

Quando a coerção externa é internalizada, o superego[12] assume o papel da instância parental. Legítimo e verdadeiro delegado do pátrio poder, assume o poder, função e até mesmo os métodos do seu antecessor. Além disso, o superego é veículo do ideal do ego, pelo qual o ego se avalia, estimula e cuja exigência por uma perfeição sempre maior, ele se esforça por cumprir.

O ego é a instância voltada para o mundo externo, funciona como instrumento de percepção do que surge de fora e, durante o seu funcionamento, ocorre o fenômeno da consciência. Como órgão perceptivo de todo o aparelho, é perceptivo não só as hesitações provenientes de fora como àquelas que emergem do interior da mente. Ele representa o mundo externo perante id[13].

Aberto as influências somáticas e contendo dentro de si necessidades instituais que aí encontram expressões psíquicas, o id é repleto de energia que a ele chega pelos instintos, porém não possui organização, somente luta pela satisfação. As leis lógicas do pensamento não se aplicam ao id, principalmente a lei da contradição. Por outro lado, no id não existe nada que corresponda à idéia de tempo. Não há conhecimento pela passagem do tempo. Impulsos plenos de desejos e impressões são virtualmente imortais. O id não conhece nenhum julgamento de valor, nem o bem, nem o mal, nem a moralidade. Todos os seus processos são denominados pelo fator econômico, intimamente ligado ao princípio do prazer.


Nessas medida, o ego destrona o princípio do prazer e o substitui pelo princípio de realidade. Introduz, por outro lado, a relação com o tempo. Dessa forma, o ego sintetiza o conteúdo, combinado e unificando, nos seus processos mentais, a desorganização presente no id. Evolui da percepção dos instintos ao controle destes. Significa razão e bom senso, ao passo que o id significa paixões indomadas. O ego serve, portanto, a três tirânicos senhores, que são o mundo externo, o superego e o id. Representa as exigências do mundo externo, recomenda-se como objeto para atrair para si a libido do id, e é observado a cada passo pelo superego severo que estabelece padrões rígidos de conduta.

A respeito da concepção materialista da ideologia, Freud comenta que considerar que as ideologias do homem nada mais sejam que produto e superestrutura de suas condições econômicas, não é uma verdade inteira, pois a humanidade não vive apenas do presente; traz, isso sim, marcas do passado, da tradição, da raça, do povo nas ideologias do superego, e só cede lentamente às influências novas.

Freud chega mesmo a sugerir que o inconsciente não é só a sede dos desejos, mas também dos pensamentos ou representações, embora ele fale de pensamentos latentes, cuja a exposição coerente na consciência é resultado do trabalho de interpretação. Freud, afirma, que muitos dos atos inconscientes permanecem incoerentes e incompreensíveis, se se pretende explicá-los e justificá-los pela consciência. Acredita que só se pode perceber o que se passa com as pessoas, quanto aos atos psíquicos, se se interpolarem os atos inconscientes inferidos. Só assim eles podem ordenar-se num conjunto que demonstre coerência.

Freud pensou a consciência como um saber maculado pelos processos inconscientes, para ele, o ato de fundamento de sentido, que se expresse através do texto escrito e do enunciado verbal, não pode ser considerado como individual no sentido estrito do termo: não pode ser somente explicado como um impulso finalístico racional[14].

O reconhecimento de que processos inconscientes podem atuar nas motivações da sentença é fato reconhecido por diversos operadores do direito que conjuntamente com filósofos, pensadores, psiquiatras afirmam que, mesmo quando agente atua pensando estar motivado por critérios racionais, ele age trazendo consigo todas o arcabouço de elementos inconscientes que deram causa a sua ação.

Rui Portanova[15], ao lecionar sobre o tema, diz que são muitas as motivações sentenciais, sendo que é verdadeiramente impossível ao juiz indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento, tantas as influências que o inspiram. Anota que, nos julgamentos, há premissas ocultas imperceptíveis. Reconhece, também, a possibilidade de haver inconscientemente motivações que interferem via simpatia ou antipatia por uma parte ou testemunha, interesse ou desinteresse por uma questão de argumento, inclinação para uma interpretação rígida ou flexível. Dessa forma, devem-se levar em conta afetos, ódios, rancores, convicções, fanatismos, paixões, contidas ou não no ato decisório.

O mesmo autor acentua que no interior das motivações racionais estão englobadas todas as variações da misteriosa, maravilhosa, terrível e complexa realidade do espírito humano, refletidas com ou sem véu nas frias expressões dos repertórios de jurisprudência. Diante dessa vulnerabilidade intrínseca a todo ser humano, não está a salvo o juiz honesto, probo e honrado. A isenção dele exigida, da qual deve ser o primeiro a suspeitar, não se deve a questões de integridade moral, mas a influência de preconceitos, tendências, espírito de casta ou de corporação e de tantos outros fatos ou estados psíquicos que o condicionam, às vezes, sem que ele próprio o perceba, à sua revelia.


Segundo Herkenhoff[16], não existe a suposta neutralidade política e ideológica dos juristas, inclusive dos juizes, na sociedade de classes em que vivemos, dividida e antagônica, agravada, no caso do Brasil, pelas imensuráveis diferenças econômicas entre os muito ricos e os muito pobres; ninguém é neutro e o jurista também não o é. Para o citado autor, os juizes que mais alardeiam uma suposta neutralidade, apegam-se à lei e à letra da lei, com toda a sua estrutura de conservação, consagradora do antidireito, não se abrindo a busca do direito, resistindo às leis injustas que dão suporte a toda sorte de privilégios[17].

Para Nery Junior[18], a consciência jurídica é, acima de tudo, uma consciência valorativa social, verdadeira ordem hierárquica que na dinâmica econômica e social da formulação da ordem jurídica, não se presta objetivamente à neutralidades axiológicas. Argumenta o autor que nem seria aceitável erigir a ordem jurídica positiva, em si mesma, como exclusiva medida do justo, sob pena, desde logo, de renúncia à realização do valor da justiça, naqueles convívios sociais, onde não se garantem a liberdade ou o livre desenvolvimento da personalidade, nem se dá eficaz proteção à pessoa humana, contra a exploração econômica, que humilha, por vezes, frações majoritárias de integrantes dessa mesma comunhão social.

Ademais, quer se queira ou não, o discurso do direito acaba por se configurar como um retrato fiel da ideologia reinante, não ficando, naturalmente, alheios os operadores do direito à influencia dessa ideologia[19]. A falta de neutralidade do Direito é visível quando analisamos o momento histórico de seu surgimento, o contexto dos interesses que direcionam a feitura da norma jurídica e a realização e efetivação da ‘justiça’. O Direito surge em dado momento histórico, numa dada formação social, por uma dada classe que manipula os instrumentos normativos e políticos necessários à manutenção de um padrão específico de dominação. As diretrizes emanadas por essa classe dominante, que, por um dado momento dita valores, provoca a alienação dos demais cidadãos, que são levados a crer na utopia de uma ordem legal equilibrada e harmoniosa na qual os conflitos sócio-econômicos são mascarados e resolvi­dos pela força retórica das normas.

O discurso da cultura se faz presente acima de tudo, impondo aos interlocutores a submissão forçada a uma dada estrutura. Só ao e por aceitá-la o indivíduo pode sobreviver. A esse corpo sistemático de representações e normas que ensinam a conhecer e a agir chama-se de ideologia. Ela responde a um pânico metafísico de desagregação e dá conta de uma estruturação social e política. Todos precisam, a cada momento, pensar sua relação com a natureza e com os outros. Daí a função prático-social da ideologia.

A estrutura da ideologia garante simultaneamente a interpelação dos indivíduos como sujeitos, a submissão ao poder, o reconhecimento mútuo dos papéis, bem como, a manutenção da ordem, uma vez que faz com que tudo pareça coerente da maneira como está formulado.

Dessa forma, a ideologia recruta sujeitos entre os indivíduos através de uma operação precisa: a interpelação. O interpelado sempre se reconhece. E a ideologia submete-o, ao fazê-lo reconhecer o seu lugar. Essa sujeição não é conseguida somente através das idéias; ela existe materialmente através de um conjunto de práticas e rituais situados no seio de instituições concretas — os aparelhos repressivos e ideológicos do Estado. Embora distintos, os aparelhos funcionam de maneira compatível, agindo de forma a conseguir a unidade do efeito de sujeição sobre os agentes sociais ao seu alcance. Nessa direção, é preciso reconhecer que o próprio sistema legislativo também se submete à ideologia: os textos legislativos sistematizam as regras que devem nortear a convivência dos homens numa dada cultura.


A ideologia dominante, por deter o poder do Estado, harmoniza os aparelhos do Estado. Há uma continuidade em seus textos que os esclarece e os completa.

Segundo Althusser (1967), é uma forma de produção determinada e as relações por elas geradas o fator determinante, numa sociedade, de todas as outras as relações e produções geradas. Dessa forma, esta estrutura de produção dominante subordina e compatibiliza as outras. Mais do que isto, é nas outras, pelos seus efeitos, que pode ser percebida. Ela é imanente aos seus efeitos, consiste neles.

Daí porque as idéias dominantes de uma época são as da classe dominante, pois esta, ao dispor dos meios de produção materiais, dispõe também dos meios de produção intelectual. A partir dessas constatações, muitas das articulações das normas jurídicas com a cultura e a ideologia se esclarecem. Evidencia-se que a norma jurídica: (1) não é o discurso instaurador da ordem; há, não obstante, uma ordem, uma lei, para aquém do discurso legislativo, da qual ele fala e a qual ele regulamenta — a lei da cultura; (2) emana não da vontade geral, mas de um aparelho repressor do Estado, uma instituição, sendo portanto compatível com outras estruturas e buscando sujeição ao poder; (3) tem por função preservar a ideologia, que é a ideologia dos dominantes; (4) não é neutro, medeia conflitos de interesses, privilegiando os interesses dos dominantes; (5) controla, mais do que a obediência à Lei, quem deve obedecer; (6) estabelece prescrições e obrigações, definindo “como” se pode transgredir. A lei existe para ser transgredida; (7) só proíbe o que a própria sociedade suscita em termos de desejo; (8) deixa lacunas propositais, pois não pode desvelar suas intenções e incoerências.

Mas, embora o direito e, em particular, o sistema legislativo seja a expressão dos valores da classe dominante faz parte de sua função atenuar pressões e conflitos existentes na sociedade, pois só assim a classe dominante se sustentará no poder. Daí porque ele procura dirimir as lides existentes, e garantir ao cidadão um mínimo de credibilidade, segurança e certeza, necessária para se sustentar como poder instituído.

Evidentemente há necessidades periódicas das normas e teorias jurídicas. Para Faria[20], o ponto de partida dessa revisão seria o questionamento da versão tradicional da dogmática do direito: a crença num pluralismo social redutível à unidade formal, capaz de equilibrar antagonismos e harmonizar interesses, mediante processos de construção de categorias conceituais, princípios gerais e ficções retóricas que depurem as instituições de direito do compromisso de preencher quaisquer antinomias ou lacunas.

Trata-se de utopia pensar o direito positivo, a interpretação e seu estudo científico, com neutralidade em relação aos valores sociais e paradigmas históricos, filosóficos e psicológicos. Trabalha-se, isto sim, com verdades profundamente matizadas por diferentes valores e ideologias de uma dada sociedade que obrigam o discurso jurídico a uma constante busca de adequação.

Para Almeida Júnior[21], os tópicos ordem, paz, segurança, progresso, desenvolvimento e justiça, utilizados pelo Estado moderno, não são representações objetivas, mas imaginárias, não palpáveis – são desejos, esperanças, nostalgias, enfim, ideologias que sobrevivem graças a um discurso lacunar, pois é a própria consistência discursiva da ideologia que oculta a divisão, a estruturação da sociedade em classes. Assim, os silêncios do discurso ideológico guardam sua consistência, através de um discurso latente, a ele implícito.

O positivismo jurídico ignora as questões acima levantadas, dando as costas à formulação ideológica que precede a feitura da norma jurídica[22]: as normas gerais (impessoais) hierarquicamente dispostas, em verdade, são instrumentos operacionais para ‘desempenhar suas funções básicas no âmbito do Estado capitalista e da ordem burguesa[23].


Segundo Faria[24], as certezas jurídicas são mais um instrumento retórico cuja finalidade é garantir condições de reprodução do padrão de dominação vigente e, ao mesmo tempo, ocultar esse papel mediante a pretensa autonomia e exterioridade do direito[25] [26].

Polarizada e distribuída em categorias de interesses antagônicos, a sociedade produz conflitos, não sendo igualmente neutra a decisão sobre tais conflitos; há sempre privilegio de um dado valor, de uma dada categoria. É inegável que todo o elemento do ato (humano em geral e jurídico em especial) se reporta a valores, o que descarta a pretensa[27] ‘neutralidade’ jurídica.

Kelsen,[28] em sua Teoria Pura do Direito, tampouco foi neutro; ao contrário, desenvolveu um discurso indicador de visível manobra ideológica, com intuito de justificar o afastamento dos juristas da problemática social. Este supressão voluntária do sentido social da lei pode ser testemunhada pela convicção professada por ilustres teóricos do Direito, que, posicionando-se dentro da trilha da escola kelseniana, sustentam a neutralidade e objetividade da ciência jurídica.

Diante do que foi exposto afirmamos: o Direito é uma ciência humana parcial que traduz a vontade política encerrada em determinada dimensão valorativa. Se a classe dominante dita as regras do jogo, o ordenamento legal por ela projetado está impregnado de ideologia e de privilégios. A técnica do direito é fazer crer a aquele que sofre sanções ou que tenha seus direitos defendidos que busca individualmente o reconhecimento de um direito e ou interesses coletivos.

Se a lei e direito está a serviço da classe dominante, na defesa dos interesses da sociedade capitalista, servindo como instrumento de garantia da segurança de suas expectativas, nada mais coerente que a mesma seja a projeção dos valores dessa classe[29]. Logo, a lei nem sempre revela o direito, pelo contrário, muitas vezes consagra privilégios.

Uma visão acrítica do direito positivo, oculta as origens históricas e os interesses políticos subjacentes à norma jurídica. Ao propor uma norma equânime embasada em um preceito normativo ‘objetivo’, transforma a dita ‘imparcialidade’ em instrumento de acomodação social e de ‘socialização’ dos valores dominantes, tutelados pela ordem jurídica. E, assim fazendo, oculta tais valorações, e, conseqüentemente, a hegemonia de uma das classes no poder.

Para Fada[30], o ‘sistema’ tradicional baseia-se em representações ideais (tais como ‘igualdade perante a lei’, ‘autonomia de vontade’, ‘certeza’ e ‘segurança jurídica’) que, na verdade, são instrumentos retóricos exercendo função persuasiva, tais representações agem por via do emocional e destinam-se à cultura da diversificação interna da estrutura ativa institucional.

O questionamento a respeito das patentes desigualdades existentes no texto jurídico envolvem, entre outras coisas, indagações pertinentes à filosofia do direito, quais sejam: as que dizem respeito às relações entre o direito e o poder. Quando existir um real interesse de questionar os porquês de uma ordem legal injusta, haverá a possibilidade da transformação da sociedade, orientada pelo critério de eqüidade fática, e não apenas teórica.

Trabalhar com esse discurso pronto, com palavras de efeito proferidas em nome de ideais sonhados pelos seres humanos, mercê de sua carga emocional e manipulatória, camuflam a defesa de valores objetivos recobertos sob o manto da defesa de valores subjetivos, tudo em prol dos interesses de uma determinada classe. São barreiras ideológicas que mascaram contradições sociais profundas, antagonismos inconciliáveis e desigualdades sociais, políticas e jurídicas patentes.


Para o êxito desse processo persuasório, que implica esvaziar o sentido prático e equilitário que deveria adotar o direito, substituindo-o, por um discurso subjetivo que promete a vigência de ideais, abstratamente de maior valoração, opera a compartimentalização do direito e seu isolamento de uma ética social, econômica e política. A compartimentalização produz uma consciência falsa de resolução do conflito, que é concluído por um raciocínio objetivo alicerçado em princípios absolutos e pouco flexíveis, oportunizando uma solução técnica (quase matemática) do conflito. Assim, é inegável a relatividade histórica das instituições jurídicas, especialmente das de direito público, que refletem diretamente o modo de ser do próprio Estado em que se inserem, recebendo influxos do regime político em vigor.

A relativização do conceito de justiça acontece pela evolução histórica, considerando-se, para tanto, as estruturas extrínsecas pelas quais se desenvolvem a distribuição da justiça e os métodos lógicos aptos a julgar. Ambos encerram valores contingentes, que não são possíveis de serem determinados, a não ser pela valoração do momento histórico da feitura da norma jurídica e de sua interpretação pelos operadores do direito.

O juiz inserido no processo hermenêutico

Se o real objetivo da lei fosse realmente a harmonia social, a mediação neutra dos conflitos emergentes numa dada sociedade, contraditória seria a assertiva de que o direito, na realidade, representa os valores de determinados grupos, que, por meio do poder, detêm o manus de legislar. Evidente, então, sua característica de ciência comprometida, pois o direito não é imparcial, ele é sempre parcial por traduzir a ideologia do poder[31].

A neutralidade proposta pelo positivismo jurídico ignora o contexto social no qual as normas jurídicas estão inseridas, privilegiando de tal forma o ordenamento que acaba por relegar a um segundo plano o social. Esse tecnicismo acrítico reafirma o caráter restritivo e limitativo do positivismo jurídico-filosófico, implicando na desconsideração do processo histórico global e sua evolução. Mas, este rigor formal não é por acaso, ele serve aos propósitos dos detentores do poder, na medida em que confirma e legitima a ideologia da norma original, adaptando-a, interpretando-a no mais das vezes em função dos interesses dos detentores do poder.

Sustenta Faraco[32] que o positivismo cumpre a função ideológica de congelar e petrificar as instituições e os conceitos jurídicos, consagrando, à sombra da indiferença ética a desconformidade entre o direito e a realidade histórica. Menosprezando a evolução histórica, substitui o intérprete a realidade pelo jogo conceitual, terminando por desconsiderar a realidade social sob o argumento de obediência ao rito metodológico positivista, negando por via de conseqüência o engajamento social e a realização da justiça.

Se a relação humana se funda em interesse, esses, à vista da complexidade e da contingência do sistema social, precisam ser priorizados; para tanto a sociedade desenvolve uma série de estruturas, que visam a organização dos valores; uma delas é o direito, que considerado como subsistema, organiza e hierarquicaliza esses interesses, ora privilegiando determinado valor, ora outro. Conduto, [33]para que o sistema possa servir para a estabilização dos conflitos entre os diversos interesses, visto agora sob o prisma das normas, é necessário que ele neutralize determinados valores, de um ponto de vista aparentemente isento: este é o papel da ideologia.

Como vimos, a ideologia, neste contexto, ocupa papel de mediadora entre a norma jurídica e o estado de desconformidade social por ela gerado, que por meio de estratégias de convencimento, o emissor normativo dispersa, atenuando os comportamentos divergentes, controlando a rejeição à norma[34].


Todo juiz, ao julgar, necessariamente faz uso do processo hermenêutico; a interpretação tão importante quando do ato decisório, deve servir instrumento para a superação da opressão instituída. O magistrado subsumindo o caso concreto a norma jurídica, equalizando direitos conflitantes, não poderá deixar de lembrar que o direito funciona como estratagema de controle social, sendo inegável seu caráter político. Ao proferir uma decisão deve ter sempre presente que o discurso legal trabalha estrategicamente com elementos ocultos que privilegiam certas camadas sociais e que propagam, dissimuladamente, padrões culpabilizantes, na tentativa de encobrir sua enorme carga ideológica.

Para Alflen[35], enquanto a interpretação e a exploração hermenêutica permanecerem limitadas ao âmbito dos enunciados lingüísticos, por meio de um processo dedutivo de justificação que se completa na norma-decisão, estar-se-á possibilitando a legitimação da rejeição da responsabilidade política e função de decisões cada vez mais anautênticas em relação à coletividade e à sociedade e das conseqüências efetivas destas decisões na realidade social.

Se quem legisla é o grupo social que detém o poder, esse precisa se legitimar desenvolvendo uma ideologia, uma visão do mundo segundo sua ética, impondo sua visão de mundo, sua moralidade como padrão e normas jurídicas como expectativas comportamentais de pessoas concretas, de determinação de papéis ou de relevância de valores. A compreensão do conteúdo da norma e sua possibilidade de ajustá-la ao caso concreto pressupõem a postura crítica de um sujeito engajado ao ambiente sócio-cultural que deu origem à mesma, ou que pelo menos dela tenha conhecimento. A filosofia hermenêutica não acontece sem se debruçar numa crítica à ideologia[36] subjacente à norma, não podendo o intérprete se colocar à mercê da história, distanciado do objeto, pela impossibilidade imposta por uma análise apenas racional.

Porém, essa “elasticidade” legal que propõe a contemplação da norma com a observância de seu sentido social e ideológico, não se coaduna com a função estabilizadora que se exige do direito[37], pelo que é necessário investigar a existência de outros recursos, ínsitos à dimensão axiológica, que possibilitem o exercício desta função social.

O ato de interpretar implica em ver o direito inserido dentro do processo histórico global. Refletir a respeito da interpretação do direito é considerar um discurso lingüístico onde está implícita uma ideologia, aqui entendida como conjunto de crenças adotadas por um grupo social para justificar seus atos e opiniões, constituindo-se como elemento motivador de determinados comportamentos sociais.

Saliente-se que, muitas vezes, com o objetivo de embasar decisões e opiniões, cria-se um conjunto de representações ideologicamente estereotipadas que irão persuadir o receptor da idéia, convencendo-o do argumento apresentado. Faz-se a persuasão sempre a partir de um reconhecimento ideológico: esse efeito de reconhecimento se dá no interior de um raciocínio justificado por uma determinada interpretação do sentido da norma que para convencer como argumento opera a persuasão.

Indispensável, então, a consideração e a valoração do condicionamento exercido pelo contexto situacional para que seja realizada uma interpretação autêntica, não apenas conceitual, pois a atividade hermenêutica não deve ceder ao automatismo, em que bem se acomodam a deficiência de formação e a docilidade acrítica, na aplicação das normas jurídicas, (…) a função do juiz importa sempre em uma atividade estimativa e, portanto, na realização implícita ou explícita de uma série de valorações[38].


No dizer de Streck[39], interpretar é, pois, compreender; somente pela compreensão é que é possível interpretar. A ontologia hermenêutica da compreensão baseia-se na tradição de uma pré-compreensão. Esse é o ponto de partida adotado pelo atual processo interpretativo: considerar que o julgador está inserido no acontecer histórico e com ele interage, quando está julgando, através de sua pré-cognição da realidade. Entende o citado autor que a compreensão, condição de possibilidade de interpretação, pressupõe uma antecipação de sentido, consistindo em processo de aproximação ou direção ao indivíduo, à história e ao contexto das suas tradições sociais. Nesse sentido, é impossível desconsiderar a participação da visão individual do julgador e de seu arcabouço de valores no ato de julgar. É a partir dessa constatação que se conclui que inexiste uma compreensão neutra e imparcial, pois a verdade passa a ser um fenômeno que se mescla com a realidade personalíssima do julgador.

Para Warat[40], interpretar a lei implica a produção de definições eticamente comprometidas, nas quais estão determinadas premissas que adotam critérios de relevância, destinados a convencer o receptor a compartilhar o juízo valorativo postulado pelo emissor. O discurso jurídico é, então, persuasivo[41] e manipulatório, na medida em que carrega consigo toda a proposta ideológica dos seus juízos valorativos, conduzindo o receptor a dirigir o comportamento dos outros de acordo com os seus interesses.

Quanto se questiona a relação entre direito e linguagem, aponta-se para o fato de que a linguagem jurídica possui um caráter verdadeiramente ideológico. Diz-se que na base de determinadas interpretações do texto normativo encontra-se, muitas vezes, a pretensão de identificar a realidade como nossos ideais valorativos e que, em se tratando de juízos valorativos, o intérprete, ao recorrer às definições reais, propõe, em termos de essência, aquilo que reputa importante do ponto de vista prático, operando-se um mecanismo de projeção ativada com a finalidade de transformar a subjetividade da posição sustentada em possibilidades objetivas. Todo esse trabalho do intérprete é necessário, pois a dinâmica da realidade que não consegue ser aprisionada por classificações jurídicas estanques, forjadas por um discurso de adaptação da norma à realidade social.

Vale observar que, ao denunciar o substrato ideológico da norma, os aplicadores do direito instauram a reflexibilidade dos valores adotados em sua concepção e em sua aplicação, dispersando o ‘consenso social’ que a fundou. Se o emissor normativo, apesar do emprego de técnicas de neutralização, não conseguir desqualificar o discurso do receptor, haverá a ruptura do sistema, cuja estrutura ter-se-á demonstrado insuficiente para controlar seu elevado grau de contingência.[42]

Diante de um discurso persuasivo, é necessário perceber que os níveis de significações basilares dessa proposta persuasória têm como elemento central um sentido designativo contextualmente construído. Assim, se pretendemos definir o direito positivo como um conjunto de normas justas, introduzimos como nota designativa uma propriedade conotativa, um plus de significações emotivas, (…) coincidência ideológica do emissor e do receptor, que é sempre resultante de um processo de persuasão.[43]

Neste jogo de significâncias, vale analisarem-se as estratégias elaboradoras como instrumento de controle social, normatizador e disciplinador dos indivíduos, como fórmulas produtoras de consenso, como visualizações distorcidas do real com a finalidade de legitimar comportamentos. Nessa perspectiva, interpretar, para o novo modelo hermenêutico, é pensar o direito como uma linguagem que considera a tradição sob uma visão crítica.

Em assim sendo, [44]a lógica da persuasão é que se encarrega de estabelecer o consenso em torno do significado da norma a ser aplicada. No fundo das disputas doutrinárias, obscurecidas por uma rede de conjuntos simbólicos, confrontam-se forças antagônicas, a exemplo do direito oficial e do direito não oficial.


Kelsen[45], em sua Teoria Pura, com todo o seu dogmatismo, reconhece que a justiça absoluta não é cognoscível pela razão humana, conseqüentemente, para ele o ideal de justiça absoluta é irracional como objetivo a ser alcançado pelo direito. Argumenta o autor que a justiça é portanto, a qualidade de uma conduta humana específica, de uma conduta que consiste no tratamento dado a outros homens. O juízo segundo o qual uma justa ou injusta, representa uma apreciação uma valoração da conduta. A conduta que é um fato da ordem do ser existente no tempo e no espaço, é confrontada com uma norma de justiça, que estatui um dever-ser. Somente um fato da ordem do ser pode, quando confrontado com uma norma, ser julgado como valioso ou desvalioso, pode ter um valor positivo ou negativo. Por outras palavras: o que é avaliado o que pode ser valioso ou desvalioso, ter um valor positivo ou negativo é a realidade. E podemos acrescentar que no ato de avaliar a realidade o juiz é e deve ser sempre parcial ajustando a norma do dever ser às aspirações sociais, dando-lhe eficácia e proporcionando uma decisão justa.

Vale considerar, também, que o produtor da norma legislativa e o seu intérprete são seres herdeiros de uma nova filosofia da consciência[46], agora mutável[47] e interativa com a produção cultural em nível global. Assim, à guisa de conclusão, não se pode ignorar a existência de conteúdos históricos, ideológicos, sociais, psicológicos que precedem à formulação de um conceito e sua valoração como hipótese. E o direito, como ciência essencialmente humana, não foge à regra: valora comprometido, entre outras coisas, com questões ideológicas subjacentes ao literal sentido da lei. Daí o porquê que não se afastar nem se temer o subjetividade do juiz no ato de julgar, pois[48] o juiz consciente dos elementos subjetivos do processo de decidir e que não se rende à ilusão de perfeita neutralidade, é mais capaz de controlar seus gostos e desgostos; esse mesmo juiz também será mais apto para o uso responsável da liberdade que possui quando interpreta decisões legais e põe na balança interesses conflitantes sem refugiar-se atrás de fórmulas aparentemente objetivas.

A imparcialidade e o espírito corporativo

É natural em todo o ser humano o espírito de corpo. Os seres humanos se associam em grupos afins para assim se fortificarem e defenderem seus interesses[49]. Então, é demagogia de qualquer ser humano não se intitular como representante dos interesses de certa facção, todos nós o somos desde de que nascemos, direta ou indiretamente.

Não representar nenhuma classe ou idéia é omitir-se em relação ao todo e a qualquer interesse coletivo, é tornar-se alheio a fatos e acontecimentos. Não é essa a postura da magistratura, que ocupa seu devido espaço no cenário nacional, não admitindo intervencionismos, enfim, cumprindo o papel para a qual foi designada: de representante um dos poderes do Estado.

Essa instituição que é atuante, principalmente no Rio Grande do Sul, perderia esses atributos se ficasse à mercê de um controle externo, pois, se assim o fosse, abdicaria de sua autonomia como instituição e estaria suscetível a outros interesses que não o de desempenhar sua função com a maior excelência possível dentro das limitações e condicionamentos da espécie humana.

A idéia da intervenção externa no judiciário[50] ameaça, entre outras coisas, o preceito de indeclinabilidade da decisão judicial definitiva, única opção dos que lhe são destinatários — quer se trate de particulares, quer de detentores de poder — no sentido do acatamento inconteste da coisa julgada. A decisão judicial irrecorrível, no âmbito do Poder Judiciário, constitui, em uma ordem dita democrática, comando incontestável, tornando-se, pois, fora de propósito, qualquer indagação ou perplexidade a seu respeito.


Ademais, vale lembrar a existência da possibilidade jurídica da chamada judicial review, prerrogativa legal que confere ao judiciário a competência para operar, acerca da lei, declarando sua constitucionalidade ou não, prerrogativa que revela manifesto poder político, porquanto, se existe órgão competente para elaborar a lei, cumpre entender a necessidade da existência inafastável, de órgão exclusivamente competente para declarar-lhe sua inconstitucionalidade, prerrogativa de império para a manutenção da separação dos poderes e de um estado democrático de direito.

Como salienta Nery Junior[51], essa dimensão política do Judiciário, na qual está consagrado o controle judicial da constitucionalidade dos atos do Congresso e do Governo, é que lhe confere inequívoca nota de independência.

Observe-se que o Estado Democrático de Direito, conforme argumentação desenvolvida no artigo Democratizando a própria casa[52], põe à disposição dos operadores do direito os mecanismos para a implantação das políticas do welfare state compatíveis com o atendimento ao princípio da dignidade humana, por isso é possível sustentar que no Estado democrático de direito, há (ou deveria haver) um sensível deslocamento dos centro das decisões do Legislativo e do Executivo, para o Judiciário, no sentido de que eventuais inércias do Executivo e do Legislativo passam a poder ser suprimidas pelo judiciário. Por óbvio que este deslocamento impôs outra conduta ao juiz, resgatando-o de uma postura absenteísta, para uma função de transformadora, logo aumentando consideravelmente sua importância social e institucional, com agente estatal, detentor de uma função que exterioriza parcela da soberania popular, envolvido num projeto de construção de uma sociedade livre, justa fraterna e solidária, bem como no compromisso de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzindo as desigualdades. Essa utopia, que deve ser buscada pelo magistrado sem dúvida sepulta a idéia de um juiz burocrático, descerebrado.

Muitas vezes o temor de certas classes privilegiadas (grupos que intervêm na elaboração da lei) é a possibilidade de o juiz, através da hermenêutica[53] [54], dar rumo diverso daquele imaginado quando da feitura da norma. Essa possibilidade é ameaçadora para certos grupos que, por certo, são os mesmos que fomentam a intervenção externa do judiciário.

Cumpre entender, entretanto, que o juiz não é um ser autômato no ato de julgar, e que é essa sua prerrogativa personalíssima que garante sua independência e legitimação para, em solvendo litígios, interpretar a lei, atendendo a seus fins sociais e aos imperativos do bem comum, que também lhe cumpre promover, no ato de julgar[55]. Só se voltando à realidade do mundo social e econômico em que vive, é que atenderá o juiz ao caráter prático de seu ofício, considerando, na aplicação da lei, conforme preceito em voga, os fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. Vasculhando a face dramática inerente ao caso concreto, suas pulsações na vida social e guardando as palavras da lei e seu propósito como consenso de valor, o juiz deve possuir discricionalidade para agir com liberdade em suas decisões; mas não deve temer guiar-se também pela sua sensibilidade: partindo-se da lei, nada obsta que o magistrado a ela transcenda (indo além).

Ora, essa constatação de imparcialidade à revelia do desejo de objetividade e isenção é, sem dúvida, angustiante e essa angústia não deve se aplacar, mas ser preocupação de todo juiz. Provavelmente, é por isso que a doutrina permanece afirmando que o ato decisório será motivado e imparcial. A imparcialidade deve ser o apanágio da justiça e do juiz, sendo o mesmo responsável por dar significado e alcance universal à ordem de valores imprimidos nas normas jurídicas. Este ato de dar significação, concomitante ao dever de ser imparcial, é tarefa extremamente difícil e penosa, é meta a ser perseguida que não prescinde da consideração de muitos conceitos e de uma interpretação voltada para a realidade social[56] [57].


O magistrado mais do que ninguém tem o dever de ser livre fugindo de qualquer proposta totalitária que embote sua possibilidade de manifestação do pensamento comprometida. Nessa fuga contra omissões, contra ordens totalitárias, é claro que não pode ser dispensada a razão. Entretanto, a isenção pretendida pelo magistrado só tem chance de ser alcançada averiguando-se e questionando-se os limites e as premissas que embasaram essa razão, atendendo-se a necessidade de uma razão crítica e emancipatória.

Segundo Warat[58] [59], o trabalho emancipatório da razão descansa quase forçosamente numa razão sem certezas nem onipotências, capaz de reconhecer seus aspectos negativos, diagnosticar suas insuficiências, suas pretensões soberanas, ingenuidades e vínculos com o poder. Aposta-se deste modo numa razão que reconhece os limites internos e externos que a determinam.

A razão emancipatória é a razão consciente de sua vulnerabilidade ao irracional e ao jogo do poder. É uma razão sempre disposta a revelar-se contra os lugares que encarná-la. É evidente que quando se combatem os efeitos perniciosos da razão, não se está combatendo a própria razão. No fundo procura-se um novo modelo de razão para equiparar o homem contra as forças que asfixiam a vida e a própria razão. Não se cai no irracionalismo e ilusões que cercam a razão quando se os combate.

O juiz, desse modo, há de estar atento aos fatos, ao tempo em que vive, não lhe bastando o conhecimento da técnica de Direito para que se resolvam adequadamente os conflitos e se avance, de maneira segura e equilibrada, em direção ao que deve ser. Válido é, no particular, afirmar-se que, em princípio, o que se procura, no processo, é a vida, nas suas múltiplas manifestações. E o juiz tem que penetrar na parte noturna do ser, nas suas manifestações de rebeldia, na suas variadas manifestações: no crime, na fraude, no desamor, no ódio. Em princípio, em cada processo, há problemas humanos, e não apenas problemas de técnica jurídica.

Segundo Borba[60], o direito não pode servir para deleite dos deuses ou dos doutos, ao contrário, pode e deve (numa realidade terceiro-mundista) servir à transformação e à realização digna do homem, ainda mais no Brasil, na medida em que não houve Estado social, na medida em que as vantagens do Estado intervencionista não beneficiaram a maioria, na medida em que as promessas da modernidade não foram cumpridas; o direito não pode ser encarado como um redutor de complexidades ou reprodutor de injustiças sociais. Ao contrário, deve ser transformador. À evidência, o direito não pode mais ser visto como uma mera racionalidade formal e sim como instrumento de transformação da sociedade.

A norma como mandamento estanque, por mais genérica que seja, não consegue acompanhar a evolução histórica, tornando-se necessário, para dar-lhe eficácia temporal, extrair-lhe sentidos inéditos e emprestar-lhe conseqüências inesperadas, cabendo ao juiz desdobrar-se no completar e desenvolver, no restringir e atenuar, segundo critérios emergentes, e preenchendo as deficiências e arestas dos textos legais. Tal oficio só poderá ser feito dentro de um pensar valorativo e de uma visão parcialmente interpretativa da norma, para que, recuperando novos sentidos, a norma se torne atual, tendo em vista as modificações dos fenômenos sociais sobre os quais deve projetar-se.

Nessa direção, Barros[61] — reafirmando que o direito precisa ser temporal como a sociedade, pois é seu produto, sua existência e decorrência natural da vida social e está não é estável — recomenda que se deve isolá-lo dos termos rígidos de uma realidade passada, libertando-o de amarras e possibilitando que se questione sua validade e eficácia para resolver conflitos de uma realidade presente. Como instituição e regra de controle social, seus ditames devem corresponder ao anseio geral. Por sua própria composição, esse anseio é dinâmico, pois engloba fatores econômicos e políticos, fatores por si só altamente mutáveis. O direito, portanto, tem que ser temporal para se adequar às mudanças sociais; se não o fizer, será por elas atropelado.


Segundo Nery Junior[62], o direito, para servir à sociedade, não pode ficar na pura abstração, mas deve existir na convivência humana, ser companheiro da vida, assistindo, protegendo e promovendo o convívio harmônico e a segurança nas relações sociais. Se não lhe é possível a criação livre do Direito, para o caso concreto, partindo o Juiz, nas decisões, ou de meras ideologias ou concepções pessoais sobre a sociedade ou o homem, ou curvando-se ao império das emoções no subjetivismo de seus julgamentos, não lhe compete, também, perder-se em puras divagações doutrinárias alheias às realidades da vida.

Desse modo, o conhecimento do mundo, de par com uma profunda seriedade moral, a presença do humano e do social, à luz de seu tempo, o amor ao saber e à verdade, a inflexibilidade na defesa do valor da justiça, não podem estar ausentes da vida do juiz. Cumpre-lhe, pois, pelo estudo e a reflexão, tecer suas construções, a partir da descoberta de elementos existentes na intimidade do ordenamento jurídico, com base nos quais encontra, dentro do possível e enquanto cabível, a prudente solução às transformações sociais necessárias e, por vezes, indiscutivelmente, desejadas.

Outrossim, se no processo hermenêutico e na construção do direito é vedado violar limites, expressamente demarcados pela lei, indiscutível também o é a necessidade de que a busca da justiça possa sustentar a função social e conciliadora a que se propõe. O juiz não pode descartar o caráter prático do grave ofício de julgar, e, desse modo, embora respeitando os limites de sua discricionalidade, cumpre-lhe não expor suas decisões, em nenhum momento, ao perigo da ausência do real, não podendo o mesmo profanar uma justiça cega aos imperativos do bem comum.

Contudo, afirma Boeira[63], que o controle sobre os atos de autogoverno da Magistratura por um conselho externo, seja ele constituído de forma mesclada, com a participação de juizes, seja ele composto exclusivamente por agentes não pertencentes ao Judiciário, não coaduna com os pregados ditames constitucionais de independência dos Poderes e de harmonia e equilíbrio entre os Poderes.

Por isso, no exercício de suas funções primordiais, o órgão do Poder Judiciário não pode ser molestado — interna e muito menos externamente — sob pena de ter-se por malograda, ou, pelo menos, enfraquecida a sua independência e, portanto, a soberania do Poder, afetando a (im)parcialidade da prestação jurisdicional; (…) a própria Constituição Federal de 1988 prevê mecanismos de controle sem, todavia, agredir a independência e a autonomia de Poder Judiciário. Prerrogativas constitucionais exclusivas do Judiciário asseguram o controle interno e a regulação das atividades judiciárias — gestão administrativa e financeira —, resguardando e preservando o desempenho de suas funções, com autonomia e independência próprias de Poder de Estado, da atuação do controle externo ou por conselhos externos.

Em última análise, portanto, sob pena de ter-se por infringido o princípio constitucional fundamental da separação dos Poderes Políticos, harmônicos e independentes entre si, não há que se admitir a interferência estrangeira no controle dos atos do Poder Judiciário – nem, indiscutivelmente, no que diz respeito aos atos típicos da função jurisdicional, nem mesmo no que toca aos atos de autogoverno da Magistratura.

A autonomia do judiciário representa, indubitavelmente, garantia dos direitos dos cidadãos, sem a qual não é possível o florescimento da vida democrática. Então, impõe-se à magistratura o exercício da competência jurisdicional, descartando decisões pautadas unicamente na dogmática legal, cabendo-lhe juízos valorativos feitos com lucidez na tentativa de equilibrar as relações de tensão estabelecidas entre os interesses sociais e legítimos interesses individuais, ora para acautelar, desde logo, estes, ora para não comprometer aqueles.


Suspeição de parcialidade

Leciona Plácido e Silva[64] que em sentido do direito processual, a suspeição envolve, naturalmente, a suspeita de parcialidade, em virtude do que não somente o juiz, como qualquer outro funcionário da justiça, é tido ou temido como parcial, ou capaz de ser influenciado a agir de certa forma, em detrimento de uma das partes. A suspeição de parcialidade é tecnicamente indicada como suspeição legitima, nascendo do justo receio, inspirado por toda a circunstância que possa influir ou influenciar uma pessoa a tomar uma atitude diversa do que é seu dever.

A argüição de suspeição, efetivada pela exceção de suspeição, tem a finalidade de afastar do processo a pessoa cuja suspeita é suscitada. Pode fundar-se na íntima amizade, a inimizade capital, no parentesco até o terceiro grau ou no interesse particular que o sujeito possa ter na própria questão.

As exceções de impedimento e de suspeição são meios pelos quais tanto o juiz quanto as partes podem pronunciar a ausência de capacidade subjetiva do juiz de julgar a causa com a isenção buscada pelo direito, provocando, provocando ao ser suscitada o declinar da competência do magistrado dessa relação processual[65]. É prerrogativa inarredável do juiz declarar-se impedido ou suspeito, sempre que o seja (art. 137 do Código de Processo Civil), quer quando incida num dos casos de impedimento (Cód. cit., art. 134) ou de suspeição (Cód. cit., art. 135), quer ainda quando seja suspeito por motivo íntimo (Cód. cit., art. 135, parágrafo único).

Segundo Mirabete, a suspeição pode ser afirmada pelo juiz (…), o juiz pode abster-se ele próprio, reconhecendo a existência de motivo que o impediria de julgar com absoluta isenção de ânimo dá-se por suspeito. Nos termos do art. 97 do Código de Processo Civil, o juiz nessa hipótese, deve afirmar sua suspeição por escrito A fundamentação é necessária tendo em vista a relevância do instituto, estabelecido pelo legislador não somente no interesse das partes, mas da justiça. Em seguida, os autos devem ser remetidos pelo juiz ao seu substituto legal, de acordo com as normas de organização judiciária. Tal decisão é irrecorrível, mas nada impede que o substituto que receber o processo, percebendo inexistir motivo legal que autorize a abstenção, comunique o fato aos órgãos concessórios da magistratura.

Para Santos, o impedimento corresponde à situação do juiz que, por força de lei, o qualifica de parcial; essa situação lhe atribui a presunção absoluta de parcialidade. Por isso mesmo, o juiz impedido está proibido de exercer as suas funções no pro­cesso, seja esse impedimento contencioso ou voluntário: (art. 134 do Código de Processo Civil), sendo inválidos tanto os atos que praticar, ainda que não suscitada a exceção de impedimento, como, também, a sentença que proferir, que poderá ser rescindida por via de ação rescisória (art. 485, inciso II, Código de Processo Civil).

A suspeita de parcialidade, pode ser argüida através de exceção de suspeição, que pode ser a qualquer momento processual suscitada pelo juiz, independentemente de causas, sempre que se julgar comprometido na mínima parcialidade que deve ser buscada no processo. Saliente-se que, ao nosso ver, como a imparcialidade se trata de qualidade de cunho subjetivo buscada pelo juiz, que só o mesmo poderá analisar, não cabem inibições nem justificativas, para seu reconhecimento[66].

Mas a suspeição pode ser superveniente, ou seja, a causa da suspeição pode manifestar-se no curso da demanda. Trata-se de causa posterior ou mesmo anterior ao início do processo, mas da qual a parte só veio a saber e poder provar no curso deste. Nessa hipótese, a preclusão do direito de excepcionar se verifica nos mesmos casos acima referidos, com a ressalva de que o prazo de quinze dias, dentro do qual deverá ser oposta a exceção, se conta da data da ciência do fato que ocasionou a suspeição.


Percebe-se que essa exigência de neutralidade afirma-se como braço eficaz do sistema, na projeção de suas aspirações, para manter exatamente o direito posto por classes privilegiadas e em detrimento delas. Logo o juiz que abre mão de ditar a norma justa, no caso concreto, para aplicar a lei injusta no caso sub judice, abre mão da essência da função judicante e submete-se ideologicamente e politicamente ao legislador.

Exige-se imparcialidade do juiz no que diz: a) ao respeito à oferta de iguais oportunidades à parte; b) a recusa a estabelecer a distinções em razão das próprias pessoas ou reveladoras de preferenciais personalíssima; e c) aos óbices legais dos artigos 134 e 135 do CPC. Já a neutralidade liga-se ao conteúdo geral do juiz homem social no contexto da comunidade e da ciência. O juiz, como cientista, quer queira que não., tem um engajamento pessoal com algum tipo de valoração, pois sendo um produto humano, a ciência participa das vicissitudes da ação social. Não é ciência absolutamente isenta de valoração e de ideologia[67].

Entretanto observa Silva[68], que o reconhecimento consciente constitui uma tentativa de restabelecimento da continuidade interrompida entre o passado e o presente por meio de uma contraposição a fim de incorporar o passado no presente a atenuar as diferenças entre eles. Esta contraposição é pressuposto necessário de modo crítico e consciente o passado como subsídio da ação em função normativa ou em função meramente contemplativa.

Um reconhecimento consciente é elaborado por meio de um esforço reflexo de consciência para que seja na ocasião de uma situação presente as imagens semelhantes em graus diversos e eliminando gradualmente os aspectos de discordância entre elas se destacam por meio de uma reconstrução e de uma adaptação definitivas para compor a identidade.

Por meio da memória o reconhecimento estabelece dinamicamente a continuidade da existência humana libertando o passado para responder a orientação do presente bem como a adaptação do passado reciprocamente, assegurando, assim o fio condutor da continuidade e da coerência no desenvolvimento do modo que o emprego do passado no presente não significa um puro instrumento da ação ignorando como tal, porém enquadrá-lo na totalidade histórica.

Para Puggina[69], questionar a justiça ou a injustiça é atividade que pode por em risco a lógica do sistema legal que, ao seu turno, se constitui no instrumento de manutenção das estruturas de poder. Por isso interessa tanto que o juiz como neutro e imparcial aplicador da lei, que não ameaça o status quo. Segundo o autor, boa parte da preocupação deontologica reside nessa configuração de dever de imparcialidade do juiz, pois ela permite que se exija, a partir desse dever, toda uma conduta que seria apanágio do juiz imparcial. Acontece que não raro, sem se definir com precisão o que seja imparcialidade, avança-se dela para a exigência de um pensamento desideologizado e de uma conduta apolítica.

Evidentemente que sendo o juiz o condutor do processo, é seu dever ser imparcial neste mister, fazendo todo o possível para manter-se isento em relação as partes em confronto. Mas, a imparcialidade e a isenção que caracterizam a atividade de condução do processo, cessam, necessariamente, no momento da sentença, em que o juiz examinando possibilidades e valorando fatos e normas jurídicas, se individualiza, tomando partido. Os fundamentos de neutralidade do juiz servem, tão somente, ao juiz eminentemente positivista, que se limita à aplicação da lei.

O segundo momento de realização do direito corresponde ao de sua aplicação via jurisdicional. Tanto como no momento de sua criação, como na aplicação do direito o fenômeno se repete, devendo o juiz de direito apreciar os contextos apresentados diante de si em sua tríplice dimensão: fato, valor e norma. Se o caminho do legislador parte dos fatos, emitindo juízos políticos para chegar a norma, a trajetória do juiz é inversa: ao juiz é dado um fato (causa de pedir ou fato delituoso), devendo este declinar desse fato apresentado uma norma jurídica correspondente conducente com a conseqüência da perseguida justiça, promovendo o sentido do justo. Se o fato é causa de pedir, se a norma é fundamento jurídico, a sentença é ato eminentemente valorativo, através do qual o juiz, tanto quanto o legislador, emite um juízo, posiciona-se, parcializa-se, redimensionando a norma à luz de um fato concreto.


Em assim sendo a função jurisdicional e o ato decisório são manifestações personalíssimas (através do livre convencimento do juiz), parciais, e necessariamente políticas, nas quais é atribuído ao juiz o poder único e soberano de elaborar a adaptação da norma abstrata as peculiares condições sociais e econômicas em que se verifica o caso concreto. No momento da aplicação do direito, apenas a lei é um dado fixo: o fato e os juízos de valor são variáveis presentes ao juiz. Então, arbitrária é qualquer doutrina que visa suprimir do poder judiciário a necessária dimensão valorativa do direito, vale dizer: a sua dimensão política.

Na mesma linha de idéias argumenta Carvalho[70], que inexiste justiça neutra, a cegueira ou neutralidade só favorece aos que já detém privilégios por serem a parte hipersuficiente no processo. E é do cotejo dos argumentos no processo, do apreciar do conflito de interesses entre as classes em luta, das necessidades objetivas dos litigantes, que deve emergir a busca do justo. Nessa busca não há como abstrair do direito as funções do legislativo e do judiciário, aquele, extraindo da realidade normas politico-normativas abstratas, este mergulhando na realidade proferindo sentenças político valorativas que resultam na norma concreta.

E buscar a adequação da norma jurídica as aspirações sociais só se consegue através da hermenêutica. Salienta SILVA[71] que em matéria de interpretação, o reconhecimento efetiva-se por meio do estabelecimento de uma ligação entre o sustento material e a dotação espiritual nela fixada enquanto transcende e se desprende do no processo histórico bem como no reviver e recriar de uma síntese entre o tempo aquiescente e inerte à forma representativa e o conteúdo representado para poder ser entendido o sentido da forma. Compete ao espírito intérprete retirar-se de modo consciente da sua presente atualidade e a essa contrapor-se de maneira a surgir uma outreidade.

O que é conservado no tempo, pois, é qualquer coisa relacionado à mediata objetivação sem uma identificação com o sustento material nem com o produto espiritual nessa fixado. Trata-se do processo de integração, segundo o qual o espírito vivente reconhece e desenvolve o valor da experiência passada ao dado perceptivo atual, já que o ser ideal da obra não subsiste ligado à objetivação sem um liame com um mundo real.

E através dessa dimensão que o judiciário se afirma como Poder Político do Estado, independente e soberano. A supressão do direito que assiste ao juiz de se posicionar significa a mais grave forma de alienação do trabalho do juiz. Por certo que a sentença enquanto ato de valoração do fato social sub judice, é obra de criação do próprio direito, sendo portanto produto muito diverso daquele que é mero resultado da aplicação massiva e automática do direito positivo.

Considerações finais

Não deveríamos dispensar todo conhecimento que diz de nós mesmos. Não deveríamos deixar de reconhecer que somos cegos às escuras de nosso inconsciente que trabalha paralelamente à consciência racional de nós mesmos e do mundo. Não deveríamos deixar de reconhecer que, mesmo quando dizemos estar atuando de maneira racional, é nosso inconsciente que pauta nossas escolhas, justificadas ponto a ponto sob premissas racionais, mas que no fundo maquiam opções impetuosamente inconscientes.

Se o tributo da consciência de si mesmo (mesmo que parcial), é devido a qualquer ser humano, mais ainda quando ele se trata de um juiz, que tem o ônus e o privilégio de analisar as situações, posicionando-se, dentre as escolhas possíveis a que maior oferece seguridade, legalidade e imparcialidade. Não podendo abdicar dessa imensa tarefa, carregada de profunda reflexão e responsabilidade, deve o juiz saber das influências e abalos que sofrem a razão quando da sua escolha, para nela mais dificilmente resvalar.


Em assim sendo, consciente o juiz dos conceitos e preconceitos apriorísticos que formam a personalidade de cada ser humano, pode proferir uma decisão mais justa, adequada ao verdadeiro sentido que determina a lei, tendo como propósito o momento histórico em que está inserido.

Cabe, pois, ao julgador não só romper com certos processos inconscientes, como também, num segundo momento, com um pensar eminentemente positivista de direito, aproximando a lei do fato social e das aspirações do bem-comum[72].

É preciso deixar claro que essa postura alternativa nada tem a ver com o discurso de alguns juristas, que entendem que possibilitar essa amplitude à magistratura, seria conceder-lhe a oportunidade de avocar para si um poder supremo e ilimitado de discricionalidade. Não entendemos assim.

Por tudo o que anteriormente se expôs, seria, ao nosso ver ilógico pensar o papel da magistratura como a tarefa de especulação abstrata ou simples exegese do direito constituído[73]. O direito e a instituição da magistratura tem o dever de ser mais do que isso e o é. Dessa forma, temos para nós que não é dispensável no ato de julgar estudo e reflexão sobre si mesmo e sobre a sociedade, bem como, sobre a construção doutrinária e jurisprudencial pautada na descoberta de elementos existentes na intimidade do ordenamento jurídico, com base nas quais, a magistratura encontrará, dentro do possível, enquanto cabível e gradativamente soluções que incorporem às transformações sociais necessárias e, indiscutivelmente, desejadas.

Parafraseando Nery Junior[74], a independência pessoal é prerrogativa intocável do magistrado, que a Constituição garante, devendo representar âncora de seu agir, mas, acima de tudo, constituir-se em instrumento para a realização do justo, não podendo inspirar-se em premissas maiores de diversa natureza, nem servir à promoção de qualquer outra finalidade. A alma de um magistrado autêntico não se pode moldar pelo egoísmo ou a soberba, mas, sim, pela generosa comunicação da verdade e da justiça.

Na eqüidistância dos interesses em conflito, na preocupação exclusiva com a verdade, a justiça e o bem-comum, confere ao Juiz a íntima convicção de que, em essência, o mistério do poder é simplesmente o mistério do amor, que se revela no servir aos outros. E nisso o juiz compreende, também, que a solidão do julgar é a solidão do sentinela, à beira do acampamento, responsável, mais que ninguém, pela tranqüilidade de todos e, não obstante, tranqüilo e silencioso para com ele próprio.

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[1] Conforme o Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa (…), imparcialidade é aquilo que não é parcial, que não se deixa corromper; que julga sem paixão.

[2] KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Coleção os pensadores, Editora Nova Cultural, São Paulo:1999, p.202.

[3] PASUKANIS, Eugeny Bronislanovich. A teoria geral do direito e o marxismo. Renovar, Rio de Janeiro: 1989, p. 130 “Se a pessoa moral não é outra coisa além do sujeito da sociedade de produção mercantil, então a lei moral deve se manifestar como regra das relações entre proprietários de mercadorias. Isto confere inevitavelmente a lei moral um caráter antinômico. De uma parte esta lei deve ser social e encontrar-se, portanto, acima do individual; de outra parte do proprietário de mercadorias é por natureza o portador da liberdade (da liberdade de apropriação e alienação ), de sorte que a regra que determina as relações entre proprietário de mercadorias deve ser igualmente transportada a alma de cada proprietário de mercadorias, ser a lei interna. O imperativo categórico de Kant uniu essas exigências contraditórias. Ela é supra-individual porque não tem nada a ver com impulsos naturais (temor, simpatia, piedade, sentimentos de solidariedade, etc..). Segundo as palavras de Kant, efetivamente ele não ameaça, não persuade, não lisonjeia. Está situado fora de toda a motivação empírica, isto é, simplesmente humana. Ao mesmo tempo ele se manifesta independentemente de qualquer pressão exterior, no significado direto e grosseiro da palavra. Age exclusivamente pela consciência de sua universalidade. A ética kantiana é a ética típica da sociedade de produção mercantil, mas igualmente é a forma mais pura e acabada da ética em geral. Kant conferiu esta forma uma figura lógica acabada, que a sociedade burguesa atomizada esforçou-se em transportar para a realidade, libertando as pessoas dos liames orgânicos das épocas patriarcais e feudais. Os conceitos fundamentais da moral perdem sua significação se os descartarmos da sociedade de produção mercantil e se tentarmos aplica-las a outra estrutura. O imperativo categórico não é, de forma alguma, um instituto social, pois sua destinação essencial é ser ativo onde seja impossível qualquer motivação natural, orgânica, supra-individual. Onde exista uma estreita ligação emocional entre os indivíduos, que transborde os limites do eu individual, o fenômeno da obrigação moral não pode ter lugar. Se quisermos compreender essa categoria, não podemos partir do vínculo orgânico existente, por exemplo, entre a mulher e seu filho, ou entre a família e cada um de seu membros, mas do estado de isolamento. O ser moral é complemento necessário do ser jurídico, e os dois são modos de relações entre os produtores de mercadorias. Todo o phatos do imperativo categórico kantiano reduz-se a que o homem cumpra “livremente”, ou seja, com convicção interna aquilo que lhe seria compelido a fazer no âmbito do direito. Quanto a isso, os exemplos que Kant cita, para ilustrar o seu pensamento, são muito característicos. Eles reduzem-se a simples manifestação de conveniência burguesa. O heroísmo e as proezas não encontram lugar nos quadros do imperativo kantiano. Não é necessário sacrificar-se desde que não exijamos do outro tal sacrifício. As ações irracionais de abnegação tanto quanto o desprezo de seus próprios interesses em nome da construção de uma vocação histórica, de sua função social, ações nas quais se manifesta a mais alta tensão do instinto situam-se fora da ética no sentido estrito do termo”.


[4] HEGEL. 1966: 117-9.

[5] A prepotência ingênua do senhor é a marca de uma dependência real. Exprime uma aparência enganadora: o que inicialmente parece uma relação assimétrica em favor do senhor, revela-se uma dependência em favor do escravo.

[6] O encontro dessa duas consciência é marcado por uma luta de puro prestígio, durante a qual cada consciência quer ser reconhecida sem reconhecer a outra. Cada consciência procura a morte da outra, diz Hegel. Desta luta de puro prestígio, na qual ninguém deve morrer, é que deve surgir a consciência de si. Quem assumir o risco absoluto e aceitar perder a vida para ganhar essa verdade da consciência de si torna-se senhor. Aquele que recuar diante da morte torna-se escravo. Mas o senhor acaba prisioneiro de um falso reconhecimento. O homem que ele reduziu a escravidão não pode mais lhe propiciar um reconhecimento autêntico, cujo o fundamento é sua liberdade.

[7] PASUKANIS, Eugeny Bronislanovich. A teoria geral do direito e o marxismo. Renovar Editora, Rio de Janeiro: 1999 “A dominação de classes, em sua forma organizada, como em sua forma desorganizada, é muito mais ampla do que do que o domínio que podemos designar como sendo a esfera oficial da dominação do poder estatal. A dominação da burguesia se exprime tanto na dependência dos governos ao bancos e grupos capitalistas quanto na dependência de cada trabalhador em particular em relação ao seu empregador, e no fato de que os funcionários do aparelho de Estado são intimamente vinculados a classe dominante. Todos esses fatos cujos números poderíamos multiplicar até o infinito, não possuem qualquer expressão jurídica oficial mas concordam, em sua significação, com os fatos que possuem expressão jurídica muito oficial, tal como a subordinação dos mesmos operários às lei do Estado burguês, às ordens e decretos de seus organismos, ao julgamento de seus tribunais, etc… Ao lado da dominação de classe direta e imediata constitui-se uma dominação mediata, refletida sob a forma do poder oficial do Estado enquanto poder particular destacado da sociedade”.

[8] MARX & HEGEL. 1974: 19: “São os homens os produtores de suas representações, das suas idéias, etc., mas homens reais, atuantes, tal como estão condicionados por um desenvolvimento determinado de suas forças produtivas e das relações que lhe correspondem…”.

[9] MARX & HEGEL. 1974: 22.

[10] FREUD. 1976: 80 “… as crianças de tenra idade são amorais e não possuem inibições internas contra os seus impulsos que buscam o prazer. O papel que mais tarde é assumido pelo superego é desempenhado, no início por um poder externo, pela autoridade dos pais”.

[11] FREUD. 1976: 92 “Para FREUD, há três regiões no aparelho mental do indivíduo – o superego, o ego e o id – que são instâncias da personalidade mental e que possuem características e funções diversas Configura as relações estruturais entre essas instâncias de personalidade mental da seguinte forma: os seres humanos vivem num conflito interno entre as exigências da vida instintual e a resistência que se ergue dentro deles contra isto”.

[12] FREUD. 1976: 87 “torna-se o veículo da tradição e de todos os duradouros julgamentos de valores que desta forma se transmitiriam de geração em geração. Facilmente podem adivinhar que, quando levamos em conta o superego, estamos dando um passo importante para a nossas compreensão do comportamento social da humanidade”.

[13] FREUD. 1976: 97. “o que é uma sorte para o id, que não poderia escapar à destruição se, em seus cegos intentos que visam a satisfação de seus instintos, não atentasse para este poder externo supremo”.

[14] JUNG. 1986, p.101. Convém lembrar que outros estudiosos, entre eles Jung também demonstra, através do chamado teste de associações, a existência de um inconsciente pulsante e interativo. Com a tese das associações Jung consegue comprovar a existência uma atividade inconsciente. As palavras-estímulo que apresentavam um tempo maior de reação nos experimentos do mestre são consideradas como a expressão da atividade de complexos inconscientes.O complexo inconsciente é definido pelo autor, como a imagem de uma determinada situação psíquica de forte carga emocional e, além disso, incompatível com as disposições ou atitudes habituais da consciência. Esta imagem, que segundo Jung, é dotada de uma poderosa coerência interior, tem sua totalidade própria e goza de um grau relativamente elevado de autonomia, estando sujeita ao controle das disposições da consciência apenas até um certo limite; por isso, se comporta, na esfera do consciente, como um corpus alienum, animado de vida própria. O Jung define o complexo como um agrupamento de idéias com um núcleo de sentido. Esse núcleo de sentido tem um caráter fortemente emocional e existe em qualquer ser humano indistintamente, independentemente, da experiência emocional que o indivíduo carrega, o que demonstra a existência de uma consciência fragmentada. Para Jung, a existência do complexo, que se opera indistintamente em todos os indivíduos, independentemente do seu conhecimento da realidade e de seu grau de ajuste social, decorre do conflito moral, cuja razão última reside na impossibilidade de ajuste do ser humano à totalidade dos dogmas e regras sociais que pautam o convívio social cultural.. Tal impossibilidade pressupõe uma dissociação imediata, quer a consciência do eu sabia, quer não. A inconsciência a respeito dos complexos, fato corriqueiro entre as pessoas ditas ‘normais’, confere a estes liberdade ainda maior de atuar na psiquê humana. A inconsciência do complexo ajuda a assimilar, inclusive, o eu, resultando daí uma modificação momentânea e inconsciente da personalidade, chamada identificação com o complexo. Diz o autor que os complexos fazem parte da estrutura psíquica. Eles não possuem apenas um caráter mórbido, são manifestações vitais próprias da psique. Isso faz com que se encontrem traços dos complexos em culturas diversas e em todas as épocas. A discussão sobre os complexos é de suma importância para o autor, pois, segundo ele, os complexos condicionam todo o conhecimento sobre o objeto. Na verdade, os complexos fazem parte da constituição psíquica que é o elemento absolutamente predeterminado de cada indivíduo, diante dos quais nada podemos fazer.

[15] PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p.

[16] HERKENHOFF, João Batista. Direito e utopia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 4.ed.

[17] Temos todo um sistema que sacramenta injustiças e as disparidades sociais. Os juristas e os juizes que se submetem docilmente a esse sistema, sem mesmo descobrir algumas de suas brechas, que possam servir as maiorias oprimidas, colocam-se docilmente do lado das minorias aquinhoadas.

[18] SILVEIRA, José Néri da. A Função do Juiz.

[19] PASUKANIS, Eugeny Bronislanovich. A teoria geral do direito e o marxismo. Renovar, Rio de Janeiro: 1989, p. 58 “O Direito enquanto fenômeno social objetivo não pode esgotar-se na norma, seja ela escrita ou não. A norma como tal, isto é, o seu conteúdo lógico, ou é deduzida diretamente de relações preexistentes, ou então representa, quando promulgada como lei estatal, um sintoma que nos permite prever, com certa verossimilhança, o futuro nascimento de relações correspondentes. Para afirmar a existência objetiva do direito não é suficiente conhecer o seu conteúdo normativo, mas é necessário saber se esse conteúdo normativo é realizado na vida pelas relações sociais. A fonte habitual de erros neste caso [e o modo de pensar dogmático que confere, ao conceito de norma vigente, uma significação específica que não coincide com aquilo que aquilo que o sociólogo ou historiador compreendem por existência objetiva do direito. Quando o jurista dogmático deve decidir se uma forma jurídica determinada está em vigor ou não ele não busca estabelecer genericamente a existência ou não de um fenômeno social objetivo determinado, mas, unicamente, a presença ou não de um vínculo lógico entre a proposição normativa dada e as premissas normativas mais gerais. Não existe, para o jurista dogmático, no interior dos estreitos limites de sua atividade puramente técnica, verdadeiramente, nada além das normas; ele pode identificar, com muita serenidade, direito e norma. No que concerne ao Direito costumeiro, ele deve, queira ou não, voltar-se para a realidade. Mas se a lei estatal é para o jurista o supremo princípio normativo, ou para empregar a expressão técnica, a fonte do direito, as considerações do jurista dogmático acerca da existência do direito vigente nada significam para o historiador que queira estudar o direito efetivamente existente. O estudo científico, vale dizer, teórico só pode levar em consideração realidades de fato. Se certas relações constituíram-se em concreto, isto significa que um direito correspondente nasceu; mas se uma lei ou decreto forem editados sem que nenhuma relação correspondente tenha aparecido, na prática, isto significa que foi feito um ensaio de criação de direito, sem nenhum sucesso.. Este ponto de vista não equivale à negação da vontade de classe como fator da evolução ou a renúncia da intervenção consciente no curso do desenvolvimento. A ação política pode superar muitas dificuldades; pode realizar amanhã aquilo que não existe hoje, mas, não pode fazer existir subitamente, aquilo que não existiu no passado”.

[20] FARIA. 1988, p.14.

[21] ALMEIDA, Edmundo Lima de. 1988, p.53.

[22] PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p.

[23] MIAILLE. op. cit., p. 200 o direito tradicional quer fazer crer na existência de várias fontes do direito, embora haja uma única fonte real: aquela dada pela determinação do modo de produção capitalista.

[24] FARIA. 1989, p.24.

[25] PORTANOVA, Rui. As motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. “Por sua vez, a segurança é valor que por si só se opõe ao valor justiça. O desejado de decisões mais previsíveis, mais uniformes, choca-se com os ideais de justiça. É que justiça tem que compreender o ineditismo da vida, a mudança continua. O valor justiça é mais importante que o valor segurança. Esta fundamentalmente garante a segurança das classes que fizeram a lei ou tiveram papel preponderante na sua feitura”.

[26] Sempre o núcleo social desenvolverá um processo de insurreição ou acomodação no que se refere às disputas de poder entre os sexos, sendo que a pacificação global dessas tensões é inatingível. A sociedade, por ser desigual, não é harmônica, é fracionada em classes sociais que vivem em disputa de poder, tentando demarcar os espaços que a farão superiores ou inferiores na escala hierárquica.

[27] FILHO, Lyra. 1986, p.18. “A ideologia da classe no poder vai influenciar desde o conceito de ciência (em geral) até. o Direito (em particular) sem esquecer a lei e a atividade judicante. À ciência não é neutra. Em todas as ciências existem interferências ideológicas: “a ciência não só carrega elementos ideológicos no seu interior, mas até serve à dominação social dos donos do Poder, quando impõem aqueles falsos conteúdos à práxis social”.

[28] Quando os juristas identificam, acompanhando o pensamento kelseano, o Estado e o Direito, suprimem a vida privada delegando aos órgãos encarregados de produzir as significações jurídicas o poder absoluto para ler a história das normas jurídicas. Assim, o estado adquire o monopólio da memória jurídica e provoca a purificação da memória coletiva sobre o passado e presente das normas. Certamente controlando-se o passado e o presente das normas, controla-se também o passado e o futuro da sociedade. Desse modo resulta difícil aceitar que a democracia se realize reconhecendo aos encarregados da produção dos significados jurídicos, como única instância habilitada para reescrever a história da lei. Uma história ‘pura’ que é sempre uma história elaborada pelo desejo do esquecimento: as normas são válidas se pertencerem a um sistema sem memória, que em sua totalidade é ineficaz. A instituição da sociedade precisou, até a hora, de um conjunto de significações imaginárias, organizadas e constituintes. Elas são sempre uma resposta aos caos, são sempre sua negação simbólica. Visam dar uma significância ao ser, ao mundo e a sociedade pela própria sociedade. Devem mascarar o caos, e, em particular, ao caos constituído pela própria sociedade. Elas o mascaram reconhecendo-o como falso por sua omissão-ocultação, fornecendo-se uma imagem, uma figura, um simulacro que preserva o homem da dolorosa experiência de enfrentar o abismo de sua existência, sem compensações imaginárias.

[29] FADA. 1988, p.12. “O tradicional estado de direito também é ficção. É denominador comum entre o liberalismo e sua democracia. É pelo estado de direito que a ordem tradicional articula a conservação dos interesses particulares em interesses gerais. Ou seja, ele faz a aparente conciliação do pluralismo sócio-econômico com a unidade do sistema legal. Na verdade, o estado de direito é o topos justificador de exercício da dominação política, uma vez que a amplitude das abstrações e generalizações exige a continuidade do monopólio da interpretação do sistema legal judiciário”.

[30] FADA. 1989d. p.10 e 20.

[31] AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, poder e opressão. São Paulo: Alfa-Ômega, 1990, p.VII.

[32] AZEVEDO, Plauto Faraco. Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica. Antônio Fabris Editor, 1989.

[33] SOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de. O papel da ideologia no preenchimento das lacunas do direito. Revista dos Tribunais, p.206.

[34] SOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de. O papel da ideologia no preenchimento das lacunas do direito. Editora Revista dos Tribunais, p.207 “Para tanto, o jurista se utiliza de determinadas falácias, despertando no receptor normativo uma disposição em aceitar certas imposições de sentido da norma, com vistas à obtenção do consenso social. Isto se mostra sobretudo importante quando se tem uma visão incremental do direito. O recente plano econômico é pródigo em exemplos. A proibição de medidas liminares, em ações propostas para a liberação das quantias expressas em cruzados novos, foi vista, por alguns, como forma de cerceamento do poder judiciário por parte do Poder Executivo, o que é vedado expressamente do constitucional. inobstante houve quem argumentasse com a inexistência de limitação do conteúdo das medidas provisórias ou mesmo com parêmia segundo a qual ‘quem dá fins tem de conceder os meios’, o que justificaria a legalidade da proibição. Vê-se que, no exemplo mencionado, o desacordo de atitudes é apresentado como divergência de convicções”.

[35] SILVA, Kelly Susane Alflen da. Hermenêutica jurídica e concretização judicial. Porto Alegre: SafE, 2000, p.444-5.

[36] AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, poder e opressão. São Paulo: Alfa-Ômega, 1990, p.XVII. “Se tomarmos a expressão bem comum, sem qualquer esforço poderemos entendê-la como bem de todos, como bem de todos os membros de uma sociedade. Mas a observação dos fatos não possibilita chegar-se a essa conclusão, pois sendo a lei a emanação normativa de um poder, e sendo esse poder instrumento de domínio de grupos sociais sobre outros, dificilmente esses grupos iriam legislar contra si mesmos, sob pena de se constituírem, pela primeira vez na História, em detentores suicidas do poder. Por isso, os grupos detentores do poder não vão permitir uma normatividade que venha ferir seus interesses, sua ideologia, seu modus vivendi. Ora, uma normatividade que favoreça dados grupos ou classes, necessariamente irá ferir os interesses, a ideologia e o modo de viver de outros grupos ou classes; logo, o bem legal não pode ser comum, pois emana de grupos para incidir sobre outros grupos. O bem comum, empiricamente observável, é o bem particular dos detentores das decisões”.

[37] SOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de. O papel da ideologia no preenchimento das lacunas do direito. Editora Revista dos Tribunais, p.204.

[38] AZEVEDO, Plauto Faraco. Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica. Antônio Fabris Editor. 1989, p.17.

[39] Op. cit., p.275.

[40] Idem, ibidem, p.31-6.

[41] Idem, ibidem, p.35: “Assim, as definições persuasivas têm a finalidade de cobrir com um manto descritivo um desacordo valorativo, que fica encoberto pela utilização de uma definição com pretensões persuasivas. A definição persuasiva, diz Carrió, é uma armadilha verbal dirigida ao receptor da mensagem”.

[42] SOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de. O papel da ideologia no preenchimento das lacunas do direito. Editora Revista dos Tribunais. p.206.

[43] WARAT, Luiz Alberto. O direito e sua linguagem. Sérgio Antônio Fabris Editor: Porto Alegre, 1984.

[44] SOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de. O papel da ideologia no preenchimento das lacunas do direito. Editora Revista dos Tribunais, p.241.

[45] KELSEN, Hans. O problema da justiça. Martins Fontes Editora, São Paulo: 1993, p. 4.

[46] STRECK, Lênio. Hermenêutica Jurídica E(M) Crise. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 1999, “(…) o jurista conformará uma nova compreensão, com o que não (re)produzirá o sentido inautêntico, e sim, um novo sentido que possibilitará a aplicação/concreção do texto jurídico de acordo com os objetivos e o cânones do Estado Democrático de Direito, que funciona como a nova linguagem (condição de possibilidade) a qual, ao se fundir com o (velho) horizonte oriundo da tradição (sentido comum teórico), proporciona o desvelar do ser do (daquele) ente (o texto jurídico e sua inserção no mundo)”.

[47] AZEVEDO, Plauto Faraco de. Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1989, p.75 “Acresce que, em nossa época, notadamente nas últimas décadas, a rapidez e o inesperado das transformações imprimem uma aceleração tal ao processo histórico que a marcha do direito, por mais rápida que seja, não lhe pode acompanhar o ritmo. Por outro lado, legislar não pode ser obra da irreflexão, mas ao contrário, longo trabalho de aferição dos contornos dos fatos sociais e das forças sociais que o suscitam, refreiam ou por qualquer forma por eles se interessam. Legislar é trabalho difícil, envolvendo discussões, confrontos e transação de opiniões, afrouxamento de visões de mundo, tudo demandando tempo, enquanto o fluxo da vida não se detém. E nada nos assegura que a esse descompasso ocasionado pela lentidão com que se elaboram as leis e as urgência das razões que a reclamam, não se venha somar a sua inadequação maior ou menor aos fatos a que são prepostas”.

[48] RODRIGUES, Leda Boechat. Direito e Política. Os direitos humanos no Brasil. V.8. Porto Alegre: Coleção Ajuris, 1977, p.9.

[49] ROSA, João Abílio de Carvalho. Pedido de Intervenção no Estado: um precedente corporativista da AJURIS? “Há quem insista, é verdade, que ao magistrado não cabe manifestar-se sobre questões que refujam ao âmbito corporativista da sua associação. Outros existem, entretanto, que conferem aos magistrados o que a todos os brasileiros é um direito, ou seja, o poder de expressarem as suas opiniões e de influírem nos destinos não apenas da instituição da qual são membros mas também no futuro do país do qual são cidadãos. O direito constitucional de associação e de expressão é uma conquista de toda a cidadania, inclusive dos juizes, e quanto mais caminhe a associação na direção da sociedade pluralista e democrática mais se ligará ela aos interesses de todos e não apenas da corporação. Não parece haver dúvida de que o rompimento das raízes corporativistas da AJURIS e o vôo que a associação alça na direção da cidadania, – como no episódio da intervenção federal – reinventa a idéia de que um país emergente não pode abrir mão da consciência e da militância do juiz-cidadão”.

[50] MACIEL, Cláudio Baldino. O Supremo e o controle externo. Site Ajuris “Incontáveis têm sido os debates sobre a necessidade ou conveniência da adoção de controle externo para o Judiciário, como se tal fosse possível em nosso sistema constitucional sem ferir a sua condição de Poder de Estado. A proposta desenhada chega ao absurdo de prever controle jurisdicional, pois confere jurisdição ao órgão controlador em todo o território nacional. No entanto a tese do controle externo do Poder Judiciário, através da pretendida criação de Conselho Nacional de Justiça, composto também por pessoas estranhas à magistratura, foi virtualmente sepultada, (…) pela inconstitucionalidade perante o princípio da separação dos Poderes – art. 2º da Constituição Federal – de que são corolários o auto-governo dos Tribunais e a sua autonomia administrativa, financeira e orçamentária (artigos 96, 99, e parágrafos e 168 da Carta da República)”. A manter-se a presumível e esperada coerência do STF no trato da matéria, e a serem confirmados os mesmos valiosos fundamentos já adotados, haveremos de ver declarado inconstitucional, por idênticos motivos, dispositivo criador de controle externo do Judiciário em âmbito nacional, se a tanto chegarem os reformadores da nossa Constituição Federal.

[51] SILVEIRA, José Néri da. A Função do Juiz.

[52] BORBA, Mauro. Democratizando a própria casa. IV Congresso de Magistrados Estaduais, Democratização Interna do Poder Judiciário, Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, Dez/2001.

[53] DIFINI, Luis Felipe Silveira & COSTA, Maria Isabel Pereira da. A súmula vinculante e a supressão da função legislativa. “Com a instituição das súmulas com efeito vinculante, o Poder Legislativo passa a ser apenas figurativo. A cúpula do Poder Judiciário torna-se-á um órgão supra legislativo, pois á lei é possível haver interpretação controvertida somente enquanto houver permissão pelo Supremo Tribunal Federal. Porém quando ele resolver fixar o seu entendimento sobre o conteúdo da lei, esta fica cristalizada, sem possibilidade de ajuste ao caso concreto. É a supressão de prerrogativa do Poder Legislativo, a par da perda de função dos juízes de instâncias inferiores de sua atribuição de julgar. Por conseqüência, institui-se uma poderosa estrutura de enfraquecimento da cidadania. Aliás, objetivo visado pelo neoliberalismo, com a finalidade de implantar a globalização da economia, com maior facilidade”.

[54] DIFINI, Luis Felipe Silveira & COSTA, Maria Isabel Pereira da. A súmula vinculante e a supressão da função legislativa. “Zaffaroni assegura que, na casuística latino-americana nossos ditadores sempre controlaram as cúpulas dos judiciários e jamais sentiram a necessidade de horizontalizar e distribuir organicamente o poder dessas cúpulas. Ao contrário, procuram aumentar e centralizar ainda mas este poder. A lógica de nossos executivos foi pelo caminho mais simples: a facilidade de controlar um pequeno grupo de amigos que mandam sobre os demais, (agora demensuradamente através do Controle Nacional de Justiça) do que controlar diretamente todo um poder judiciário, ou seja, juízes de todas as instâncias”.

[55] Com efeito, vencida está a era em que uma concepção predominante diversa do comportamento dos Poderes constitucionais, como ‘províncias estanques do Estado’, operava, em princípio, a submissão inquestionável do magistrado ao texto literal e frio da lei, reduzida a função judiciária a atividade estritamente jurídica, incumbindo ao Juiz, apenas, dizer o Direito, tal como preexiste a seu pronunciamento, jungido a limites lógico-formais, sem permissão para liberdades que possam acrescentar ao mundo jurídico qualquer elemento que, se, já não figure de modo explícito ou latente.

[56] GOMES, Antônio Carlos. Revista AJURIS, Artigo: Aspectos Ideológicos na Criação Jurisprudencial do Direito. A atitude do juiz em relação a lei não se caracteriza jamais pela passividade, nem tampouco será a lei elemento exclusivo na busca de soluções justas aos conflitos, a lei se constitui em um ou outro elemento, entre tantos que intervém no exercício jurisdicional.

[57] O magistrado Carvalho[57], ao lecionar sobre a necessidade de um alcance social a lei assim se pronunciou, destacou a necessidade de uma reflexão sobre nossa relação ética com a lei, pensando que ela não acontece desvinculada do movimento do ser. Temos consciência que ao falarmos do movimento do ser já se faz uma opção ontológica. Por ética entendemos uma relação de comprometimento para com os indivíduos e grupos específicos dentro de um projeto para a humanidade.

[58] WARAT, Luiz Alberto. Manifesto para uma ecologia do desejo. Editora Acadêmica, São Paulo: 1990, p. 60.

[59] WARAT, Luiz Alberto. Manifesto para uma ecologia do desejo. Editora Acadêmica, São Paulo: 1990, p. 60 “No saber jurídicos encontramos teorias, como a kelsiana, que, tentando desvincular-se da lógica do sagrado, procuram a compreensão transparente das significações normativas, legando-nos assim a ilusão de um conhecimento neutro sobre o direito, um conhecimento distante dos antagonismos. Um conhecimento que, como o mundo encantado da Disney Word, envolve-nos na magia de uma hiperrealidade muito mais prazerosa que a realidade que nos toca, em sorte viver”.

[60] BORBA, Mauro. A racionalidade do operador. Site da Ajuris-Doutrina.

[61] BARROS, Wellington Pacheco. Dimensões do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p.62.

[62] SILVEIRA, José Néri da. A Função do Juiz.

[63] BOEIRA, Alex Perozzo. Poder judiciário e controle. Site Ajuris. Doutrina.

[64] SILVA, Plácido e Vocabulário Jurídico. v. III e IV. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

[65] Dissemos que são meios pelos quais a parte denuncia a falta, de capa­cidade subjetiva do juiz. Qualquer das partes, não apenas o réu. Caso contrário, ficaria o autor constrangido a suportar juiz impedido ou sus­peito de parcialidade, quando este próprio não se desse por impedido ou suspeito.

[66] Na suspeição,suspeita de parcialidade, que obsta o juiz de exercer suas funções no processo, quando ele próprio se reconhecer suspeito ou quando, por denúncia da parte, através da exceção correspondente, for julgado suspeito.

[67] PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. p.143.

[68] SILVA, Kelly Susane Alflen. Hermenêutica jurídica e concretização judicial. Sérgio Antonio Fabris Editor, p.148.

[69] Idem, ibidem, p.177.

[70] CARVALHO, Amilton Bueno de e in PUGGINA, Marcio Oliveira. Deontologia, magistratura e alienação. Revista da Ajuris n 59, ano XX, 1993, p.177.

[71] SILVA, Kelly Susane Alflen da. Hermenêutica jurídica e concretização judicial. Porto Alegre: SafE, 2000, p.149.

[72] Esse pensar crítico abrange adequação do próprio julgador, como também da lei, trata-se ao nosso ver o verdadeiro conceito de jurisdição alternativa.

[73] Se não lhe é possível a criação livre do Direito, para o caso concreto, partindo o Juiz, nas decisões, ou de meras ideologias ou concepções pessoais sobre a sociedade ou o homem, ou curvando-se ao império das emoções no subjetivismo de seus julgamentos, não lhe compete, também, perder-se em puras divagações doutrinárias alheias as realidades da vida. Desse modo, o conhecimento do mundo, de par com uma profunda seriedade moral, a presença do humano e do social, à luz de seu tempo, o amor ao saber e à verdade, a inflexibilidade na defesa do valor da justiça, não podem estar ausentes da vida do Juiz.

[74] SILVEIRA, José Néri da. A Função do Juiz.

Autores

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    é advogada, professora da Universidade Luterana do Brasil, especialista em Direito Penal e mestre em Gestão de Negócios do Mercosul pela Uces — Universidad de Ciencias Empresariales y Socialies.

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