Aumento das autuações

O leão briga com a raposa e nós é que pagamos o pato

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15 de julho de 2006, 7h00

Os auditores da Receita Federal encerraram a recente greve, que vinha causando sérios prejuízos ao comércio exterior, porque receberam um aumento de 34% nas gratificações que são acrescidas a seus salários. Segundo notícia divulgada pelo sindicato dos fiscais, esse reajuste foi dado com o compromisso de que obtenham um acréscimo de arrecadação de pelo menos R$ 4 bilhões nos próximos 12 meses. O presidente do sindicato disse: “Esperamos aumentar a arrecadação por efeito de combate à sonegação”.

Ninguém questiona a necessidade de que os fiscais sejam bem remunerados e todos concordamos que a sonegação deve ser combatida com extremo rigor. Mas imaginar que o reajuste dos salários justifique o combate à sonegação é admitir que, antes do aumento, os fiscais prevaricavam, pois não a combatiam.

Por outro lado, o estabelecimento de uma hipotética “meta” de arrecadação sustentada em um suposto programa de combate ao crime é admitir que já existia uma avaliação ou uma previsão dos valores sonegados, o que também revela prevaricação, pois se sabiam da sonegação a ponto de poder estimá-la e não a combatiam antes do aumento, estavam apenas chantageando o executivo: “se não aumentarem meu salário, não trabalho”.

Os auditores fiscais são os melhores quadros técnicos do Poder Executivo. Provam isso os rigorosos concursos a que são submetidos portadores de nível universitário, nos quais os aprovados dominam amplos ramos do conhecimento, inclusive Direito, Economia, Contabilidade, Informática e tantas outras especialidades. Além disso, os aprovados passam por treinamento de altíssimo nível numa das melhores escolas de tributos do mundo, que é a Esaf — Escola Superior de Administração Fazendária. Pelo conhecimento que possuem, pelo rigor do concurso e pela responsabilidade de suas funções, os auditores deveriam ganhar tanto quanto um juiz federal ou talvez até mais.

Exatamente por isso, soam despropositadas as afirmações de que imaginam resolver o problema econômico do país apenas por meio do combate à sonegação. Nós já vimos esse filme e o final não foi nada feliz.

Consta que há cerca de dez anos, um secretário da Receita Federal, desejando tornar-se ministro, anunciou uma ampla campanha de “combate à sonegação” onde esperava provar a sua “tese”, segundo a qual haveria R$ 1 sonegado para cada R$ 1 arrecadado.

Ou seja, o então chefe do fisco federal (que não era concursado e dificilmente seria aprovado no concurso de auditor) “descobriu”, baseando-se não se sabe em que, que a carga tributária da época, já ultrapassando 30% do PIB, poderia e deveria ser de mais de 60% do PIB, bastando que os “sonegadores” fossem autuados.

Travestida de “leão”, a autoridade fazendária ordenou a seus subordinados que fossem “combater a sonegação”, fixando “metas” absurdas de “arrecadação”.

Uma das primeiras vítimas da selvagem investida foi uma empresa de importação de veículos, acusada de “subfaturamento”, contra quem se lavrou autuação de cerca de US$ 300 milhões.

Alguém, ignorando as normas legais que asseguram sigilo nesses casos, deixou vazar a autuação e, logo em seguida, alguns funcionários públicos, dos diversos Poderes da república, iniciaram uma sucessão de factóides e ameaças por meio da imprensa. Anunciaram que os bens da empresa seriam bloqueados, que os empresários poderiam ser presos, que outras empresas sofreriam iguais autuações, que o “escândalo” era internacional. Enfim, fizeram um “fuzuê” tamanho e, logo, a empresa foi para o buraco, pois não tinha crédito nem para comprar um café com leite na padaria da esquina.

Os US$ 300 milhões ajudaram a atingir a tal “meta”, mas a empresa foi, dois anos depois, absolvida de todas as acusações pelo setor de julgamento do próprio Ministério da Fazenda, já no julgamento de primeira instância, que prevaleceu nas instâncias superiores por unanimidade.

O fisco nada arrecadou, a “meta” revelou-se uma ilusão e a empresa acabou, levando consigo os milhares de empregos que gerava. Mas a “autoridade” nada sofreu, os funcionários continuaram recebendo seus salários ou aposentadorias. Enfim, o país, como sempre, acabou perdendo.

Pois essa “meta” de agora parece ser uma nova edição do mesmo “filme”. Aliás, nova versão de antigo filme de sucesso. A diferença é que cinema é ficção e serviço público não pode ser.

Recentes medidas do governo, especialmente em ano eleitoral, estão aí gerando uma fábula de novos gastos públicos, comprometendo a seriedade de qualquer orçamento, colocando em risco as finanças de todos os Poderes, em todos os níveis — federal, estadual e municipal.

Até os animais da floresta e as pedras do caminho sabem que não existe mais a possibilidade de criar ou aumentar tributos. A carga tributária nominal já ultrapassa 40% do PIB e, se formos incluir as despesas que a sociedade tem de pagar por serviços que deveriam ser prestados pelos governos (segurança, educação, saúde, etc.), seguramente já estamos com cerca de 60% de carga tributária efetiva. Ou seja, já não há contribuintes no Brasil, pois todos somos escravos dos governos.

Pretender alguém que haverá aumento na arrecadação em determinados valores só porque, até que enfim, finalmente, resolveram “combater a sonegação” é, no mínimo, ignorar a realidade.

Os autos de infração não podem ser lavrados como instrumentos de marketing, sem adequada fundamentação. Há casos, aliás, em que está bem configurada a prática criminosa adotada por alguns funcionários públicos, quando fazem lançamentos sabendo que o tributo não é devido. O Código Penal prevê o tipo, chamado de excesso de exação. Isso é crime, sim senhor, embora não me lembro de ter visto, em mais de três décadas de advocacia e quatro de jornalismo, algum caso de condenação por esse delito.

Ainda recentemente um fiscal, tendo acesso aos extratos bancários de um contribuinte, lançou imposto e multa por supostos rendimentos não declarados, quando esses rendimentos nada mais eram do que lançamentos de empréstimos na conta bancária ou até mesmo estornos de cheques e transferências de valores de uma conta para outra. Como o fiscal é um profissional de bom nível e bem treinado, não pode, sequer, alegar equívoco. Foi má fé mesmo, foi erro intencional, foi ato doloso, enfim, foi crime.

O pior de tudo é que o Congresso Nacional já aprovou inúmeras leis que viabilizam esses crimes e limitam a defesa dos contribuintes. Uma dessas leis é a que trata do “arrolamento” de bens, que cria problemas para o contribuinte, sempre considerado culpado, até prova em contrário.

Ou seja: a presunção de inocência, prevista na Constituição e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, não vale para contribuintes, para empresários, para gente que trabalha, que gera empregos. Só vale para estupradores, assassinos, assaltantes, traficantes e delinqüentes desse tipo. Portanto, neste país, quem tem uma empresa é pior que bandido.

A Justiça brasileira, por outro lado, em matéria tributária, está virando uma piada. Porque um ou outro bandido, no passado, vendeu uma sentença ou uma liminar, alguns juízes hoje se acovardam e dão razão sempre ao fisco, merecendo o apelido de “fazendeiros” a que Rui já se referia na “Oração aos Moços”, mais de 80 anos atrás.

Além disso, já é comum que despachos ou mesmo sentenças sejam feitos sem o mínimo cuidado. Ainda nesta semana, um Tribunal Regional Federal adotou por unanimidade voto de um juiz convocado que nada tem a ver com o que consta dos autos. Ou seja, o relator assinou sem ver os autos e seus colegas o apoiaram. O contribuinte que se dane e tratem seus advogados de correr atrás dos prazos, pagar novas custas e esperar que um dia alguém no STJ ou no STF tenha tempo de estudar o caso. Essa é uma das muitas razões pelas quais é melhor investir na Índia, na China ou no Confusiquistão.

Pelo que vimos, portanto, tudo indica que o leão, representando os fiscais, tenha feito acordo na sua briga com as “raposas” (o Executivo e o Legislativo) para receberem aumentos em troca desse papo furado de aumento de arrecadação. Se o aumento de arrecadação não vier, o que farão? Devolverão os aumentos de salário? Serão demitidos por incompetência ou “quebra de promessa”?

A única coisa de que temos certeza é que, nessa briga entre leão e raposas, nós é que pagamos o pato. Temos de nos defender dessas autuações absurdas. Temos de denunciar os abusos. Temos de enfrentar até mesmo as dificuldades da nossa Justiça. Afinal, um dia isso muda. Ou nós acabamos.

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