Luta em casa

Acima da lei, entidades praticam achaques contra a população

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15 de julho de 2006, 14h15

A omissão e ineficiência do Estado para a lei ser observada e cumprida submetem a população de maneira perversa e absurda aos interesses, nem sempre legais, de grupos e entidades particulares. Acima da lei, entidades denominadas “associações” e “administradoras” praticam achaques contra a população.

A afirmação é de Nicodemo Sposato Neto, presidente da Avilesp — Associação das Vítimas de Loteamentos do Estado de São Paulo, entidade que luta juridicamente contra abusos praticados por administradoras de alguns condomínios no estado de São Paulo.

Segundo ele, essas associações, agindo em substituição ao Estado, afrontam a democracia e o Estado de Direito. “Desfraldam a bandeira do bem-comum, mas, visando lucros fáceis e sempre crescentes, dedicam-se apenas e tão somente à consolidação do Estado Paralelo”.

Nicodemo Sposato Neto atesta que algumas entidades se aproveitam da violência e do medo que atinge grande parte da população para cercar bairros e fechar vias públicas e se passar à exploração. “Mais sério, porém, é o fato de tentarem mudar o regime jurídico das propriedades e das obrigações, numa visível afronta à Lei e à Constituição Federal”.

Para Sposato, o Estado Paralelo só se tornou viável porque não há interesse do Ministério Público em fiscalizar o cumprimento da lei e o Judiciário, além de tolerante, “não atentou para a flagrante ilegalidade da transformação de obrigações de direito pessoal, para as de direito real, ensejando, dessa forma, a vinculação de propriedades às simples mensalidades associativas.”

Leia a entrevista

ConJur — Quando começou a luta dos senhores?

Nicodemo Sposato Neto — Em 1997, quando a Associação dos Proprietários do Loteamento Colonial Village passou a se utilizar do subterfúgio da criação de um bolsão residencial que pretendia obter do Poder Municipal de Cotia para englobar nos seus objetivos o Loteamento Colonial Village Dois. Na aquisição das propriedades, não só o Loteamento Colonial Village Dois era totalmente aberto, como na escritura de compra e venda e seu respectivo registro isso se fez constar. Tratava-se de imóveis únicos e indivisos, sem nenhum tipo de obrigação para com terceiros. Os proprietários respondiam, única e exclusivamente, pelos impostos incidentes sobre eles.

À época, dadas às constantes e insistentes cobranças de mensalidades, taxas extras para construção de muros, rateios para implantação de sistemas de segurança, eu e mais alguns proprietários de imóveis no Colonial Village Dois nos unimos. Argumentamos nas reuniões da “associação” que o corpo de associados deveria se limitar aos moradores e proprietários do loteamento. E observamos, em função de preceitos constitucionais (art. 5º, incisos II, XV e XX), a ilegalidade praticada pela “associação”, obrigando proprietários à associação compulsória. Mesmo assim, a “associação” interpôs várias ações judiciais de cobrança de mensalidades, taxas e rateios contra proprietários do Colonial Village Dois, que jamais se associaram ou aderiram à entidade. A partir daí, passamos a denunciar publicamente as ilegalidades praticadas pelas associações e pelas administradoras.

ConJur — Quem tem abusado dos senhores, infringindo a da lei?

Nicodemo Sposato Neto — As associações. Na verdade, como sociedades civis sem fins lucrativos, as associações vêm-se servindo de “administradoras”, das quais há sólidos indícios da participação de dirigentes de “associações”, para planejar e implementar gastos. Isso porque as administradoras são remuneradas em porcentagens que oscilam entre os 10, 15 e 20% de tudo que as associações arrecadam, inclusive, de acordos e de ações judiciais que alcançam algumas dezenas de milhões de reais. Tramitam na Justiça ações que tem o objetivo de penalizar os cidadãos proprietários. “Associações” civis sem fins lucrativos, servindo-se da Justiça, estão levando simples e pacatos cidadãos ao desespero e à miséria.

ConJur — Qual o amparo legal que os senhores têm tido de juizes, promotores?

Nicodemo Sposato Neto — A Justiça tornou controvertida e polêmica uma questão simples. Observando-se o inciso XXXVI, do artigo 5º da Constituição Federal, as ações interpostas por associações civis sem fins lucrativos deveriam, para serem providas, juntar, além do contrato inter-partes, documentos legitimando o pólo passivo, ou seja, minimamente, a ficha de inscrição ou de adesão do cidadão à associação. Ao deixar de observar essa condição da ação, o Judiciário afasta, de início, o que determina a Carta Magna. As ações de cobrança de mensalidades atrasadas propostas pelas “associações” são erroneamente catalogadas como “Ação de Cobrança de Condomínio”.


Temos de reconhecer que temos amplo acesso ao Ministério Público. Porém, as representações dificilmente chegam a se transformar em Inquéritos Civis Públicos, para que seja apurado o que vem ocorrendo nas ações empreendidas pelas associações e administradoras. Todo o esforço para que as autoridades ministeriais fiscalizem o cumprimento da lei, acaba num pedido de arquivamento. O Conselho Superior da Magistratura, que deve se manifestar em relação ao pedido de arquivamento corrobora, in totum, com as justificativas do promotor local e nada acontece.

Os cidadãos que representam junto ao MP, nas mais diversas comarcas do estado, não são oficialmente informados das decisões dos promotores. Ele também não é intimado para defender seu ponto-de-vista junto ao Conselho Superior da Magistratura. Denúncias fundadas e cabalmente comprovadas com farta documentação juntada, acabam arquivadas.

ConJur — Fale sobre a legislação que regula o tema e suas imperfeições.

Nicodemo Sposato Neto — Vários diplomas legais estão deixando de ser observados: o direito de propriedade, o direito de livremente contratar, o direito de associar-se ou não e praticamente toda a legislação do Código de Defesa do Consumidor. Todo o problema começa com a aquisição do imóvel. Como são poucas as pessoas que ao adquirir uma propriedade se socorrem da assistência de um advogado, também são poucos os cidadãos que se dão ao trabalho de analisar a matrícula imobiliária e para saber o que estão comprando.

É da tradição e do conhecimento da maior parte das pessoas que, ao comprar um terreno ou um terreno com uma casa num loteamento, o proprietário vai responder, a partir da transcrição do título da compra, pelos impostos e taxas que incidirem sobre o imóvel. Daí a necessidade de certidões negativas. Ocorre, porém, que muitos dos “loteamentos” já têm constituídas ou prevêem a formação de “associações”. Ou seja, embutem uma obrigação superveniente de associar-se, contrariando a Constituição Federal, o que levará o comprador a se obrigar ao pagamento de mensalidades, taxas e rateios de tudo que, em nome da associação, uma administradora vier a praticar.

Nos casos em que a aquisição foi anterior à constituição da “associação”, quando esta se forma, seus dirigentes passam a “vender” aos moradores e proprietários, num kit, a necessidade de maior bem-estar e mais segurança. Logo, a administradora, em nome da “associação” e por conseqüência, com aval de seus associados, passa a fazer todo o tipo de gastos e despesas em nome e em substituição ao Poder Público: manutenção de áreas públicas, portarias, segurança, etc.

Estas, acrescidas de 10, 15 ou 20%, são posteriormente rateadas entre todos moradores e proprietários, associados ou não. Como é possível a Justiça não ver isso? É tão claro e evidente que quem “enriquece ilicitamente” são as administradoras e associações e, ainda assim, num formidável passe de mágica, o pobre cidadão que é achacado é quem acaba acusado, pela Justiça, de “enriquecer ilicitamente”. George Orwell, em seu livro “1984”, em que tudo é interpretado de maneira inversa, já havia previsto isso.

É inadmissível que pessoas que escolheram adquirir suas propriedades e viver de forma mais simples, ainda que expostas a todos e quaisquer tipos de riscos, daí optarem por um loteamento, se vejam, sob a justificativa da prestação de serviços que não querem, não contrataram e não desejam, obrigadas a responder por despesas insuportáveis. Despesas, aliás, de responsabilidade do poder público e que são, ao arrepio da lei, praticadas por grupos particulares com o objetivo de lucro.

Mais danoso ainda é o fato de, com aval de setores do Poder Judiciário, simples mensalidades associativas, aplicadas a não associados e, sob o falso argumento do “enriquecimento ilícito”, se transformarem em obrigações de direito real. Ou seja, meras mensalidades passando a vincular a própria propriedade. Um absurdo jurídico jamais visto. Sentenças condenando os cidadãos e hipotecando suas propriedades com base no argumento que “taxas condominiais são obrigatórias”, apesar de as propriedades se localizarem em loteamentos e não em condomínios.

ConJur — Cite alguns casos emblemáticos que dão dimensão ao problema.

Nicodemo Sposato Neto —Muitos cidadãos, por ordem judicial, já tiveram e outros estão em vias de ter suas propriedades expropriadas por “associações” sem fins lucrativos. Publicitário de sucesso no passado, ele e sua esposa, ela hoje com 79 anos e vítima de câncer, escolheram construir sua propriedade num pitoresco arrebalde de Cotia: o Jardim Mediterrâneo. A Esquadro, empresa responsável pelo loteamento e de quem o casal adquiriu a propriedade, abandonou os adquirentes dos lotes à sua própria sorte, ou seja: nada de guias, sarjetas, pavimentação, iluminação, rede de água, de esgotos ou outros melhoramentos que pudessem proporcionar maior bem-estar aos adquirentes dos lotes.


Com apoio de mais 12 ou 15 moradores e proprietários no local, fundaram uma associação. Passo a passo foram implementando melhorias. Pouco mais de dez anos depois, em 1995, conseguiram, com o concurso da comunidade e o protesto dos que não concordam, pavimentar as ruas do loteamento e concluíram a construção da casa. Mas acabou por deixar de pagar alguns compromissos. Em 1999, descobriu que corria um processo no Fórum de Cotia contra ele. A sociedade que haviam criado os processava para o pagamento de mensalidades atrasadas do “condomínio”, no valor de R$ 14,8 mil. A casa foi penhorada como garantia de pagamento da dívida. Se não se achar uma alternativa, o bem irá a leilão para o pagamento de mensalidade atrasadas.

Mas entre as dezenas de casos muito próximos a este (e que estão ocorrendo em todo o Estado de São Paulo e, provavelmente, em todo o Brasil), são idênticas às expropriações ocorridas nos loteamentos Palos Verde, Represinha, Colonial Village Dois e tantos outros. Sempre sob a justificativa do não pagamento de “taxas condominiais” em loteamentos, acatada pelo Judiciário. O Condomínio Fazendinha fica no município e Comarca de Carapicuíba e lá estão localizados sete bairros. Para atender aos interesses de um grupo imobiliário — Fazendinha Empreendimentos Imobiliários — um ex-prefeito constituiu um bolsão envolvendo todos os bairros.

ConJur — Como?

Nicodemo Sposato Neto — Simples, permitiu que o grupo Fazendinha erigisse uma portaria numa das principais vias de acesso a Barueri, Jandira e outras cidades, a avenida São Camilo, e, assim, ficou criado o “Condomínio” Fazendinha. Um exemplo claro de tráfico de influência, desmando e corrupção. Instituído o bolsão no Fazendinha, um antigo proprietário, que adquiriu sua propriedade no local bem antes da instituição da associação, entendendo que “quem tem de pagar mensalidades são os que se associaram”, se vê processado e hoje corre o risco de ter penhorada a propriedade. Por atraso de mensalidades de condomínio, a associação foi à Justiça para cobrar R$ 21 mil. Ele nunca se associou e não há como alguém admitir que sete bairros possam ser transformados num bolsão residencial e muito menos num condomínio.

Se nem mesmo o Estado, com seu poder de império, reúne condições de direito para penhorar e levar a leilão uma propriedade particular, como é que é possível, uma simples associação, pelo não pagamento de meras mensalidades, convencer a Justiça de penhorar e levar a leilão uma propriedade particular? Concluiu-se, portanto, que “associação” tem muito mais poder que o Estado e, no caso, a Justiça, como um dos braços do Estado, tem de servir aos interesses das “associações”.

ConJur — A situação em São Paulo é única ou no Brasil o problema é o mesmo?

Nicodemo Sposato Neto — A sistemática de ação adotada pelas “associações” e “administradoras” originou-se em Goiás. Encontrou campo propício para sua rápida e crescente disseminação nos municípios da Região Oeste da Grande São Paulo e vem se alastrando por todo o Brasil, chegado até mesmo a Portugal, na Europa. A partir de Itapevi, na administração do então prefeito João Carlos Caramez, condenado em 1ª instância por improbidade administrativa, mas hoje deputado estadual, por força de recurso. De Cotia, na administração do então prefeito Ailton Ferreira, hoje inelegível, e então se disseminou por praticamente todos os municípios da região e alcança, hoje, a maior parte dos mais de cinco mil municípios brasileiros.

Trata-se de um estelionato quase perfeito, pois em conluio com autoridades municipais — prefeitos e vereadores — com a tolerância do Judiciário e o descaso do Ministério Público, grupos particulares, denominados de “associações” e “administradoras”, apropriam-se de espaços públicos e, visando lucros, passam a prestar serviços constitucionalmente reservados ao Poder Público. Com a alegação de serviços prestados, como se extensão fossem da administração pública, impõem mensalidades, taxas e rateios aos cidadãos, mesmo aos que não aderiram e não querem serviços de “associações”.

Prefeituras, Ministério Público e o próprio Judiciário assistem o crescimento dessas “organizações” e a invasão dos direitos e dos espaços públicos com se nada de anormal estivesse ocorrendo. Quando esses agentes políticos e os representantes do Estado são chamados a dirimir os conflitos que naturalmente emergem dessa anomalia, limitam-se, cada um nas suas respectivas esferas de competência, a ironizar a necessidade da responsabilidade social dos cidadãos, em face à falência dos órgãos do Estado.

O medo e a insegurança, aliados à omissão e ineficiência do Estado, constituem-se nas principais armas dessas “organizações”. Com o apelo de promover mais segurança e maior bem-estar, as vítimas, tomadas por uma verdadeira síndrome do pânico que “associações” e “administradoras” sabem tão bem destacar, insuflar e convencer, se transformam nas maiores defensoras desse formidável aplique. Não se dão conta da invasão dos seus direitos e do direito de pleitear do Estado os benefícios que necessitam. Todos nós deveríamos, como cidadãos, ao invés de incentivarmos e contribuirmos para a consolidação de um Estado Paralelo, que é visível cresce e se agiganta, forçar o Estado, a partir do Poder Judiciário, a cumprir as suas obrigações constitucionais. Isso somente será possível com justiça, cidadania e dignidade.

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