Barreira ao desenvolvimento

Monopólio de normas de padronização é ilegal e abusivo

Autores

  • Ivana Co Galdino Crivelli

    é advogada em São Paulo (SP) sócia de Crivelli e Carvalho Advogados e primeira vice-presidente da Associação Paulista da Propriedade Intelectual de São Paulo. É pós-graduada em Direito de Autor e Direitos Conexos pela Universidade de Buenos Aires e em Direito dos Contratos pelo Centro de Extensão Universitário.

  • Carlos Eduardo Neves de Carvalho

    é advogado especialista em propriedade intelectual.

12 de julho de 2006, 16h57

No último dia 9 de maio, o juiz Maurício Sato, da 21ª Vara Federal de São Paulo, concedeu tutela assecuratória de direitos contra a ABNT — Associação Brasileira de Normas Técnicas a favor da empresa Target Engenharia e Consultoria, uma das maiores empresas de tecnologia da informação da América do Sul.

A decisão reconhece que as normas brasileiras não são protegidas por Direito Autoral e determina que a ABNT se abstenha da prática de qualquer ato que implique na proibição ou perturbação do uso pela autora do conteúdo das normas brasileiras (Ação Ordinária 2006.61.00.010071-0).

A ABNT é o organismo de normalização no Brasil, sociedade civil, sem fins lucrativos, que exerce função delegada do Estado por intermédio do Conmetro/Sinmetro. Estes são órgãos do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio.

Em 21 de novembro de 1962, por meio da Lei 4.150, foi declarada de utilidade pública, e em 1992, por Resolução 07 do Conmetro, foi reconhecida como Fórum Nacional de Normalização. Esta resolução tornou público o Termo de Compromisso assinado entre o governo brasileiro e a ABNT, que atribui à ABNT a missão de coordenar, orientar e supervisionar o processo de elaboração de normas brasileiras. Assim, a ABNT adquiriu o status jurídico de agente do Estado, agência de normalização brasileira.

A normalização tem um papel preponderante no desenvolvimento do país, por objetivar reduzir a crescente variedade de procedimentos, eliminando o desperdício e o retrabalho, facilitando a troca de informações entre fornecedor e consumidor, especificando critérios de aferição do desempenho de produto ou serviço, amparando a vida e a saúde; fixando padrões de qualidade e segurança que regem a produtividade e o desenvolvimento tecnológico.

Assim é de se notar que as normas brasileiras, NBR’s, conhecidas vulgarmente como normas técnicas ou normas ABNT, exercem uma função social essencial e relevante no Estado-nação.

Um exemplo muito nítido da importância das normas no desenvolvimento econômico do país é estarem atreladas como obrigação de cada estado-parte perante o comércio internacional no TGB — Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio inerente ao Anexo dos Acordos da Organização Mundial do Comércio.

Todavia, ao exercício de atividade essencial de interesse público, administradores da ABNT têm se anteposto ao interesse da sociedade, movimentando o aparelho legislativo para a elaboração de lei que assegure à entidade de normalização direitos autorais exclusivos sobre normas (PL 002/06 — Senado — origem PL 1984/03 — Câmara de autoria do deputado federal Ricardo Barros do PP-PR).

Os administradores da ABNT, em função da natureza jurídica constitutiva ser de associação civil, entenderam que poderiam sim, como qualquer particular, ou melhor, como uma empresa privada, já que falam em nome de uma pessoa jurídica, reivindicar o domínio de normas de padronização para o exercício de exploração econômica exclusiva sobre normas brasileiras.

Durante anos, os administradores da ABNT licenciaram as normas brasileiras, apontando ilegítima e abusivamente em suas publicações o símbolo de reserva de domínio internacional de copyright.

Imaginem se:

a) analogamente, o congresso resolvesse pagar os salários dos deputados, senadores e assessores por meio da venda de leis;

b) o Congresso fosse declarado por lei titular de direitos autorais sobre normas de direito material;

c) o Congresso restringisse o acesso das normas à sociedade, tanto por meio de ausência de publicação em Diário Oficial, bem como por impedir sua reprodução e difusão;

d) o Congresso e/ou a Imprensa Nacional comercializasse com exclusividade os textos de leis, decretos, portarias;

Hoje, qualquer interessado, sem a devida autorização da ABNT, é constrangido por meio de notificações a não usar e a não gozar da livre utilização do conteúdo das normas brasileiras que nascem em domínio público à luz da Lei de Direito Autoral brasileira — Lei 9.610 de 1998 — incisos I, IV e V do artigo 8º.

Este texto não discute a legitimidade dos tribunais cobrarem pela reprografia de decisões jurisprudenciais, nem tampouco pela ABNT cobrar pela reprografia das NBRs.

O aspecto a ser observado é a restrição ao conteúdo, a dificuldade ao acesso de normas (cogentes e voluntárias) na forma de procedimentos normativos por alegação de direitos exclusivos.

Mesmo que se pagando originalmente por um exemplar material do respectivo conteúdo, o consumidor é coibido a não reproduzi-lo em qualquer forma sob pena de infringir “direitos autorais”.

Estamos falando de bens imateriais de interesse público — indisponíveis por seu administrador: normas de padronização.

E os administradores da entidade de normalização ainda alegam que nem todas são cogentes, que há normas voluntárias, como se esse detalhe os concedesse a relevância necessária para tornar indisponíveis bens de interesse público.

A determinação jurídica da indisponibilidade de bens de interesse público significa reconhecê-los como próprios da coletividade. O próprio órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles.

No sentido de que lhe incumbe apenas curá-los — o que é também um dever — na estrita conformidade do que predispuser a intentio legis.

O organismo de normalização está na contramão da política brasileira de desenvolvimento tecnológico.

O Brasil é um país que tanto tem a alcançar e a galgar em inovação tecnológica.

A atitude de monopolização de normas de padronização além de ilegal, ilegítima e abusiva é altamente prejudicial à toda coletividade — ao homem, quer seja no exercício da função de consumidor de serviços e/ou produtos, quer seja no exercício da livre iniciativa ao sofrer a castração do uso de norma de domínio público, bem como a imposição de ter de por ela pagar somas vultosas que não representam tão somente a retribuição pela reprodução de um exemplar, mas sim o pagamento de direitos autorais ilegítimos.

A alegação ilegítima e abusiva de titularidade de direitos autorais impõe à sociedade uma conduta contrária aos ditames de ordem pública — a Lei 9.610 de 1998 (Direito Autoral).

Importa asseverar que jamais poderá ser considerado original um texto de NBR, uma vez que toda e qualquer NBR somente é elaborada após seu conteúdo ter sido exaustivamente conhecido, testado, experimentado por muitos do seguimento requerente, para assim, posteriormente ser declinada pela Comissão de Estudos um procedimento a ser publicado.

Desta forma, demonstra-se que os textos de NBRs, em nenhuma hipótese, nascem de inspiração pessoal do ser humano, e sim da necessidade prática da sociedade, sendo as normas apenas a tradução de experiências para a padronização de classificação, especificação, método de ensaio, procedimentos, padronização, simbologia, terminologia e não criação estética de um autor ou artista.

De um lado, destaca-se o interesse público — necessidade da sociedade utilizar livremente o conteúdo de normas brasileiras — NBR e, do outro lado, o interesse privado — administração da Associação Brasileira de Normas Técnicas que se desvia de seus objetivos estatutários para se concentrar na busca de benefício econômico à sua gestão por meio de atividade pública delegada — normalização.

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