Competência em jogo

Juiz de Araraquara diz que não pode transferir presos

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11 de julho de 2006, 19h28

O juiz corregedor da Vara das Execuções e dos Presídios de Araraquara disse que não tem competência para determinar a transferência dos presos da Penitenciária da cidade. Segundo ele, só a Justiça Federal poderia intervir pois a alegação é de grave violação de direitos humanos. A justificativa foi dada, na segunda-feira (10/7), em resposta à Representação da Defensoria Pública.

O defensor público coordenador da Assistência Judiciária ao Preso, Geraldo Sanches Carvalho, entrou com recurso nesta terça-feira (11/7) no Tribunal de Justiça de São Paulo. Carvalho pede que seja reconhecida a competência do TJ-SP para apreciar o pedido e “determinar que os presos encarcerados no pátio do Centro de Detenção Provisória de Araraquara sejam removidos imediatamente, em 24 horas, sob pena de responsabilidade da autoridade executiva competente.”

Carvalho alega que está ocorrendo “gravíssimo constrangimento ilegal impingido à proteção da vida, dignidade, segurança e integridade física dos detentos da Penitenciária Dr. Sebastião Martins Silveira cuja situação de encarceramento retrata o total descaso público para com os 1.443 homens ali encarcerados”.

Na penitenciária, que está com o portão lacrado, os 1.443 detentos estão confinados em uma área de 600 metros quadrados a céu aberto. A comida é colocada entre 11 horas e 17 horas, por cima do muro, e os presos liberados têm que ser içados do local. Há muitos doentes sem qualquer tratamento médico, segundo a Defensoria.

Leia abaixo a íntegra do recurso:

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

RECURSO INOMINADO, COM PEDIDO DE MEDIDA CAUTELAR

GERALDO SANCHES CARVALHO, Defensor Público, Assessor no Gabinete da Defensora Pública Geral e ANA SOFIA SHMIDT DE OLIVEIRA, Procuradora do Estado, Assessora no Gabinete da SubProcuradora de Assistência judiciária da PGE, ambos Coordenadores da Assistência Judiciária Gratuita ao Preso no Estado de São Paulo, vêm respeitosamente à presença de Vossa Excelência, interpor o presente RECURSO INOMINADO, com pedido de medida liminar, contra a r. decisão do Excelentíssimo Senhor Juiz da Vara das Execuções Criminais e Corregedoria de Presídios da Comarca de Araraquara, Dr. José Roberto Bernardi Liberal, pelos motivos que seguem.

Em 7 de julho a Defensoria Pública do Estado, através de petição dirigida ao Excelentíssimo Senhor Juiz da Vara das Execuções Criminais e Corregedoria dos Presídios da Comarca de Araraquara, requereu a imediata remoção dos presos recolhidos na Penitenciária “Dr. Sebastião Martins Silveira”, solicitando fosse cumprida aordem em 24 horas sob pena de desobediência e imposição de multa diária à Secretaria de Administração Penitenciária.

A petição foi encaminhada via “fax” por volta das 17horas e 30 minutos no mesmo dia, sexta-feira.

Em 10 de julho, o d. Magistrado apreciou o pedido e deixou de conhecê-lo, entendendo que a via eleita não era adequada.

Segundo sentenciou “a determinação solicitada pelo digno Defensor Público somente se revela possível pela via jurisdicional, observando-se o devido processo legal art. 5º, incisos XXXV, LII, LIV e LV, da Constituição da República). Competente para eventual ação, ademais, é a Justiça Federal, em razão da afirmação de grave violação de direitos humanos consagrados em tratados, á luz das disposições contidas no art. 109, III, V-A e § 5º da Constituição da República”.

Em que pese o douto entendimento do Magistrado, o fato é que seu decisório deve ser reformado e, para que não se acarrete prejuízos maiores ainda, requer-se seja a pretendida ordem de remoção imediata dos encarcerados no presídio aludido determinada em sede de medida cautelar neste recurso.

Trata-se de sanar gravíssimo constrangimento ilegal impingido à proteção da vida, dignidade, segurança e integridade física dos detentos da Penitenciária “Dr. Sebastião Martins Silveira” cuja situação de encarceramento retrata o total descaso público para com os 1.443 homens ali encarcerados.

Em decorrência das rebeliões ocorridas em maio e nos dias 16 a 18 de junho, as instalações do complexo penitenciário de Araraquara foram totalmente destruídas. Em razão da falta de segurança os presos foram alojados em um dos pátios do anexo do Centro de Provisória. Um espaço de mais ou menos 600 metros quadrados.

Como as grades das celas estão quebradas, a solução para que os presos fossem mantidos encarcerados foi lacrar, através de solda, o único portão de acesso ao referido pátio, com uma chapa de aço. Lacrado dessa forma, sua abertura tornou-se inviável, sem uma devida estrutura de pessoal para a segurança e apoio material.

Não há como os presos retornarem aos pavilhões da penitenciária. Não há como retirá-los de lá, senão por cima das grades. Um deles, noticiou-se amplamente na Imprensa, foi içado para ser removido.


A vigilância do referido portão é feita por agentes penitenciários e policiais que se postam acima do mesmo, em uma sala superior e quando os presos tentam derrubar o portão, em sinal de evidente desespero com essa situação, são afastados a tiros de borracha.

A alimentação é passada também por cima das grades, içando-se os caldeirões. Como a rede de água e esgoto foi igualmente danificada, as condições de higiene locais são as piores possíveis. Os banheiros, em número muito pequeno para a quantidade de homens ali encarcerados, estão comprometidos, tendo os mesmos que defecarem em sacolas plásticas, as quais vão se amontoando num canto desse espaço.

Não há colchões e os presos estão ao relento, pois o telhado também está destruído.

Há vários feridos e doentes entre os 1443 homens mantidos nesse espaço e, diante da impossibilidade de atendimento médico, apenas um preso, com conhecimento específico, ali incluído, está tratando da saúde dos mais comprometidos.

Com base nessas informações, colhidas junto à Coordenadoria de Assistência Judiciária local, mais as reportagens diárias trazidas nos principais periódicos de São Paulo, em especial Folha de São Paulo e O Estado, formulou-se um pedido ao d. Juiz de Execução Penal e Corregedor da Unidade para que fossem os presos removidos num prazo de 24 horas, sob pena de desobediência, diante da flagrante ilegalidade no aprisionamento e evidentes violações aos mais elementares direitos humanos, assegurados não apenas na Constituição da República, mas também nos diversos tratados internacionais que dispõem sobre o assunto, assinados pelo Brasil.

O d. Magistrado, por sua vez, deu-se por incompetente para apreciar o pedido, reconhecendo que a pretensão somente pode ser atendida pela via jurisdicional, apontando a Justiça Federal e não a Estadual como Órgão competente.

Seu entendimento, s.m.j., é equivocado, afinal, é dele o poder correicional da referida Unidade prisional..

A Penitenciária “Dr. Sebastião Martins Silveira” de Araraquara faz parte do sistema penitenciário paulista e é administrada pela Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo. Os processos de execução penal dos presos ali encarcerados estão na Vara das Execuções Criminais da Comarca de Araraquara, pertencente à 13ª Circunscrição desse E. Tribunal de Justiça.

Portanto, o Juízo Corregedor daquele estabelecimento carcerário é, sem dúvida, o do d. Magistrado responsável pela Vara das Execuções Criminais e Corregedoria de Presídios da Comarca de Araraquara.

Outrossim, o fato de estarem sendo flagrantemente violados direitos humanos básicos dos ali encarcerados não retira do d. Magistrado sua responsabilidade de fazer cessar tais violações. As inexistentes condições de aprisionamento são sim motivos suficientes a autorizar o d. Juiz a apreciar o pedido a si formulado e determinar não apenas a imediata remoção dos presos, fixando-se um prazo para tanto, como também ordenar a interdição do referido estabelecimento.

Dispõe o art. 66 da lei de Execução Penal que “compete ao Juiz da execução: VI – zelar pelo correto cumprimento da pena e da medida de segurança; VII – inspecionar mensalmente, os estabelecimentos penais, tomando providências para o adequado funcionamento e promovendo, quando for o caso, a apuração de responsabilidade; VII – interditar, no todo ou em parte, estabelecimento penal que estiver funcionando em condições inadequadas ou com infringência aos dispositivos desta Lei”.

No seu mister de zelar pelo correto cumprimento da pena não pode o d. Juiz admitir que direitos não atingidos pela sentença condenatória deixem de ser assegurados aos presos condenados (cf.. art. 6º da LEP). É dever do Estado oferecer assistência ao preso (cf. arts. 10 seguintes da LEP) e “impõe-se a todas autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios” – art. 40 da Lei de Execução Penal.

Todas as normas de execução penal dispostas na Lei nº 7.210 de 1984 não foram apenas recepcionadas pela Constituição da República de 1988 como foram elevadas à condição de cláusula pétrea, pois que “ninguém será submetido a tortura e nem a tratamento desumano ou degradante” – art. 5º, III, da Constituição da República.

Também no quinto artigo da Constituição da República protege-se o preso do tratamento desumano assegurando-lhe respeito à integridade física e moral (inciso XLIX) e o afastamento do ordenamento jurídico das penas cruéis (inciso XLVII, letra ‘e’).

E “os direitos e garantias expressos na Constituição da República – afirma ela mesma – não excluem outros decorrentes do regime ou princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (inciso LXXVII, § 2º).


Destarte, como mencionado na petição endereçada ao i. Magistrado cabe a ele zelar pena norma no art. 10º expressa no Pacto dos Direitos civis e Políticos que determina que “todos os indivíduos privados na sua liberdade devem ser tratados com humanidade e com respeito da dignidade inerente à pessoa humana!”.

Também no Pacto de São José da Costa Rica está expresso que “toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com respeito à dignidade inerente ao ser humano”.

O Brasil, ressalta-se ainda, é signatário das Regras Mínimas da ONU para o Tratamento do Preso (Resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas de 30 de agosto de 1955) e todas elas dizem respeito ao oferecimento de condições mínimas que garantam a dignidade e integridade física das pessoas encarceradas: alojamentos condizentes e em boas condições, instalações sanitárias adequadas que possibilitem a higiene pessoal dos presos e do local, alimentação de boa qualidade, exercícios físicos, serviços médicos, contato com o mundo exterior, acesso à leitura, prática religiosa.

Tais Regras visam diminuir as “as diferenças que possam existir entre a vida em prisão e a vida livre desde que tais diferenças contribuam para debilitar o sentido de responsabilidade do recluso ou o respeito à dignidade de sua pessoa” (art. 60.1).

Portanto, o d. Juiz da Vara das Execuções Criminais e Corregedoria da Comarca de Araraquara é sim a autoridade responsável por fazer cessar as graves violações aos direitos humanos dos 1.443 homens encarcerados na Penitenciária “Dr. Sebastião Martins Silveira”, pois em absoluto falece competência à Justiça Estadual Paulista em solucionar constrangimentos ilegais verificados nos cárceres paulistas.

É do Estado de São Paulo a responsabilidade de zelar pelo digno aprisionamento em seus cárceres. Trata-se de violações que ocorrem no sistema penitenciário de São Paulo. Em que pese as graves, evidentes e comprovadas violações à vida, saúde e dignidade dos encarcerados em Araraquara também afetar o ordenamento jurídico nacional e preocupar o País inteiro e atingir sua boa fama na comunidade internacional, o fato é que a solução tem de estar aqui, na Justiça Paulista e não na Justiça Federal.

A barbárie que assistimos na Penitenciária de Araraquara, no interior do Estado de São Paulo, Brasil, atinge a Humanidade. Preocupa a todos, no Mundo, que se interessam na preservação dos direitos do homem. Mas a solução não está, por hora, nos Tribunais Internacionais aos quais o Brasil se subordina. Não está, igualmente, nos Tribunais Federais. Está aqui. No Estado de São Paulo. Na sua Justiça. Na Justiça Paulista.

É por isso que a r. decisão proferida deve ser reformada. Por essa Egrégia Corte, cuja tradição em assegurar o respeito e a dignidade da pessoa humana haverá de nortear a apreciação deste reclamo, reformando-se a sentença que entendeu incompetente a Justiça Paulista para dar uma resposta a esse descalabro do Poder Executivo determinando a imediata remoção dos presos de Araraquara para outras unidades prisionais do sistema penitenciário paulista, até que as instalações do referido complexo prisional sejam reformadas e preparadas para receber, de forma digna, pessoas presas.

A medida urge seja tomada com autoridade e rapidez, pois a situação mostra-se insuportável. Estamos em julho, em pleno inverno. Tem chovido. A temperatura no interior é baixa durante a noite e madrugada. Enquanto isso, 1.443 homens amontoam-se num exíguo espaço de 600 metros quadrados, dividindo, como podem, a própria sobrevivência. Presos doentes. Risco de epidemia, infecções. O caos. A barbárie. A desumanidade tem de cessar. Daí a necessidade premente de que a medida seja concedida cautelarmente fixando-se um prazo para Autoridade Executiva, no caso o Excelentíssimo Senhor Secretário da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, para que efetive a remoção dos encarcerados.

Esse prazo não pode ser outro senão 24 horas, pois vidas podem se perder a qualquer momento, diante do iminente risco de uma outra rebelião, fuga em massa e mortes, tanto de presos como de funcionários, agentes penitenciários e policiais. O Estado de São Paulo não suporta mais tanta tragédia. Não suporta mais tanta intranqüilidade.

Vale anotar que a Secretaria de Administração Penitenciária tem afirmado reiteradamente aos órgãos de Imprensa que o déficit de vagas no Estado é fator que impede a remoção dos sentenciados recolhidos no que sobrou do complexo penitenciário de Araraquara. Tal assertiva, porém, revela uma nova forma da administração reagir à situação, com o evidente propósito de transmitir à população prisional a mensagem de que as conseqüências das rebeliões serão sofridas e assumidas pelos próprios presos, independentemente de sua responsabilidade individual. Afinal de contas, são 144 Unidades Prisionais no Estado e o problema estaria solucionado com 10 presos para cada Unidade.

Como se vê, não há fundamento fático, mas apenas político para a postura adotada pela nova gestão da Secretaria de Administração Penitenciária. Ao Judiciário cabe o inafastável e imprescindível papel de restabelecer a Justiça e o foco correto da questão. Ao Judiciário cabe restabelecer o respeito à legalidade e à dignidade da pessoa humana. Colocar fim à absurda situação aqui narrada não significa ignorar as dificuldades da Administração neste momento, mas relembrá-la que não há valor superior ao pleno respeito da Lei e da Vida Humana.

Destarte, requer-se em sede deste reclamo a reforma da r. decisão proferida aos 10 de julho de 2006 pelo Excelentíssimo Sr. Juiz José Roberto Bernardi Liberal, de Araraquara, reconhecendo-se a competência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para apreciar o pedido a ele dirigido e determinar que os presos encarcerados no pátio do Centro de Detenção Provisória de Araraquara sejam removidos imediatamente, em 24 horas, sob pena de responsabilidade da Autoridade Executiva competente.

São Paulo, 11 de julho de 2006.

GERALDO SANCHES CARVALHO

Defensor Público Estadual

ANA SOFIA SHMIDT DE OLIVEIRA

Procuradora do Estado

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