Busca do equilíbrio

Entrevista: Arnoldo Wald

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9 de julho de 2006, 13h48

Arnold Wald - por SpaccaSpacca" data-GUID="arnold_wald.png">Por muito tempo, o Judiciário isolou-se do mundo externo — como se o processo judicial fosse um fim em si mesmo. Esse quadro, na opinião de um dos grandes nomes do Direito brasileiro, o advogado Arnoldo Wald, 74 anos, está mudando. Já há a consciência de que, mesmo a melhor solução, daqui a 10 anos, não vale quase nada. Emerge um senso prático na distribuição da justiça.

Exemplo disso é o diálogo entre Economia e Direito. Antagonistas naturais, foram inimigos ferrenhos no passado. Hoje, dialogam. Há fricções, mas se respeitam.

“Estamos chegando a um diálogo construtivo. Os juristas passaram a entender que têm de levar em conta a realidade e os economistas compreenderam que não podem abandonar o Direito”, diz Wald.

Arnoldo Wald é um dos doutrinadores mais invocados pelos ministros do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. É o maior especialista brasileiro em arbitragem. Entre as suas atividades, está a de professor da Universidade do Rio de Janeiro e doutor honoris causa da Universidade Pantheon Assas, em Paris. Na França, lançou recentemente o livro Le Droit Brésilien — Hier, Aujourd’huid et Demain (O Direito Brasileiro — Ontem, Hoje e Amanhã), junto com a advogada francesa Camille Jauffret Spinosi. O professor também é membro da Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional.

Em entrevista à Consultor Jurídico, o especialista falou da fórmula para se chegar a um Judiciário desejável: o equilíbrio entre eficiência e justiça. Um não pode passar por cima do outro. “Não adianta fazer justiça com o mundo perecendo. A justiça tem de fazer o mundo viver.” O inverso é verdadeiro. Não adianta chegar-se a uma eficiência cometendo injustiças, mesmo que sejam leves.

O professor falou da importância da arbitragem e de leis mais claras para reduzir a enorme quantidade de questões discutidas no Judiciário. Participaram da entrevista também os jornalistas Débora Pinho, Márcio Chaer e Maurício Cardoso.

ConJur — Como o Direito e a Economia se relacionam?

Arnoldo Wald — Durante muito tempo, os economistas desconheciam os juristas e os juristas não queriam conhecer os economistas. Na década de 70, fizemos a primeira tentativa de aproximar o Direito e a Economia em um curso que organizamos na Fundação Getúlio Vargas. Foi uma iniciativa conjunta da FGV e da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O curso foi muito bom, criou uma geração de bons advogados mas, três anos depois, tínhamos de encaminhar o modelo para o sistema de universidades, o que acabou não acontecendo…

Conjur — Quando esse quadro começou a mudar?

Do ponto de vista doutrinário, essa idéia de aproximar Direito e Economia ressurgiu há cerca de quatro anos, com várias obras jurídicas neste sentido. Os economistas começaram a analisar o custo do Direito, ou seja, até que ponto a legislação em vigor é a origem de incerteza em relação ao futuro das empresas. Por outro lado, os juristas estão reconhecendo a importância da economia. Ficou mais claro, com a luta contra a inflação no Brasil, que o Direito influencia a Economia e vice-versa.

ConJur — Quais as conseqüências dessa falta de diálogo entre as duas áreas?

Arnoldo Wald — Um exemplo disso é aTablita [tabela de correção usada para aplicações financeiras], instituída em 1987 e cuja constitucionalidade só foi afirmada pelo Supremo Tribunal Federal no ano passado. Ou seja, demorou 18 anos. Durante as discussões da tabela, alguns juizes diziam que os problemas econômicos eram culpa dos economistas, que não entendiam o Direito. Já o ex-presidente do Banco Central Pérsio Arida escreveu um artigo alegando que os juristas não entendiam de Economia e, por isso, determinadas soluções econômicas não deram certo. Acho que hoje estamos chegando a um diálogo construtivo. Os juristas passaram a entender que têm de levar em conta a realidade e os economistas compreenderam que não podem abandonar o Direito.

ConJur — A que o senhor atribui essa resistência do Direito e da Economia de se aproximarem?

Arnoldo Wald — Os juristas se sentiam mais cômodos — e é compreensível que assim fosse —concentrando-se no Direito sem se preocupar com o que acontecia na vida cotidiana. No passado, alguns juizes decidiam de acordo com a norma sem se preocupar com as conseqüências práticas. Interpretavam o Direito, que era lógico e racional, e o resto era problema dos outros. Durante muito tempo, foi assim. Nos anos 40, os juízes começaram a se perguntar o que acontecia com a decisão que tomavam. A questão era: não basta que a sentença seja correta, ela tem de ser útil e socialmente adequada. Antes, no século XIX, prevalecia a frase: “O mundo pode perecer desde que a justiça seja feita”. Hoje, chegamos à conclusão de que não adianta fazer justiça com o mundo perecendo. A justiça tem de fazer o mundo viver.


ConJur — E a resistência por parte dos economistas?

Arnoldo Wald — Para o economista, era o contrário. Ele queria normas eficientes nem que, para isso, fosse necessária a pena de morte, por exemplo. O pensamento era assim: se, para chegar ao resultado mais eficiente, pequenas injustiças têm de ser feitas, não tem problema. Era um conflito: um querendo fazer justiça e o outro querendo obter eficiência.

Conjur — Qual a solução desse conflito?

Arnoldo Wald — Nenhuma das duas partes pode ter uma posição radical. Não adianta ter uma justiça ideal que não funciona, nem uma eficiência injusta. É necessário encontrar a relação equilibrada em que a economia forneça uma análise econômica dos fatos e, em cima dessa análise, possam ser estabelecidas as regras adequadas. O presidente pode editar um decreto dizendo que o Brasil tem de ser eficiente. Nós somos o único país do mundo que tem na Constituição a determinação de que o Estado seja eficiente. Acho que está começando a nascer a conscientização de que é necessário conciliar eficiência com equidade, ou seja, o conhecimento econômico com a realidade jurídica. O regime militar foi o regime da eficiência dos economistas com as suas conseqüências.. Depois, veio a Constituição de 88, que foi a revanche dos juristas.

ConJur — A globalização influencia nessa conscientização?

Arnoldo Wald — A globalização nos obrigou a ver o que acontece no resto do mundo e a entender que o Brasil não é uma ilha. As normas jurídicas devem ter algo a ver com a realidade brasileira. As leis têm de ser criadas considerando a prática. Nesse aspecto, o empresariado brasileiro teve um papel importante na criação de certas leis, como a da alienação fiduciária. A norma permitiu que uma grande parte de população tivesse acesso a bens que antes não podia comprar. Isso é importante. Não adianta negar os fatos.

ConJur — Como as faculdades de Direito têm se posicionado para quebrar essa barreira entre Direito e Economia?

Arnoldo Wald — A Faculdade Getúlio Vargas criou um curso de Direito e o Ibmec também está criando cursos de especialização. São espaços da Economia que estão chegando ao Direito com a idéia de aproximar os dois. Isso leva a uma mudança na nova geração.

Conjur — Quando os ministros do Supremo Tribunal Federal decidem, eles levam em consideração as conseqüências econômicas das suas decisões?

Arnoldo Wald — Existe essa conscientização no STF. Reconheceu-se que o juiz é um prestador de serviços. Os presidentes do STF e do STJ, disseram: “Nós somos um serviço público, à disposição do público, vivemos para o público”. O prestador de serviços tem de ser eficiente.

ConJur — A opinião pública impulsionou essa mudança?

Arnoldo Wald — Antes, ninguém ouvia falar no STF. Hoje, qualquer jornalista sabe o que é a Corte Suprema. A sociedade brasileira entendeu que o Judiciário está aí e que ele tem importância. É uma revolução cultural.

ConJur — O principal problema ainda é a morosidade?

Arnoldo Wald — O tempo tem sido levado mais em conta pelos juízes e temos que reconhecer o esforço de todos para agilizar o processo de um modo geral. Hoje, está começando a existir a consciência de que a melhor decisão, 10 anos depois, vale pouco.

Conjur — Qual é o tempo razoável para a solução de um conflito judicial?

Arnoldo Wald — Um tempo razoável é um tempo objetivo e subjetivo. É objetivo porque você tem de ter uma base, mas é subjetivo porque depende da ocasião. O ideal seria um ano para que todo litígio fosse julgado. Mas não dá para generalizar. Uma coisa é decidir um despejo. Outra, é julgar uma decisão societária com 50 sócios envolvidos com um estatuto aprovado há 30 anos. O tempo razoável é aquele em que o interessado sobrevive sem a solução e sem prejuízo. Mas, com os dez milhões de processos na Justiça brasileira, isso é difícil.

ConJur — Como é possível chegar a esse tempo razoável para a solução de conflitos?

Arnoldo Wald —Através de algumas reformas do processo civil, que aliás têm sido feitas e da criação de normas claras . Se o cidadão souber que não tem direito a determinada coisa e que, se for à Justiça por isso, será punido por apresentar uma ação sem fundamento, ele não vai brigar. Mas, quando não está claro o que é certo ou errado, não se sabe quem tem razão, está criada a chamada insegurança jurídica. Hoje, vivemos em um mundo de relativa insegurança jurídica.

ConJur — O excesso de leis atrapalha?

Arnoldo Wald — Temos de fazer o que fizemos com a moeda, chegando, bem ou mal, a uma estabilidade monetária. Temos de ter estabilidade jurídica, estabilidade legislativa, estabilidade regulatória. Sem isso, as pessoas vivem em um mundo de incertezas.


Conjur — Como se chega a essa estabilidade?

Arnoldo Wald — As mudanças inseridas na Emenda Constitucional 45 já são um caminho. Muita coisa já melhorou e pode melhorar muito mais. A súmula vinculante, por mais que tire a liberdade do juiz, é importante. Os Juizados Especiais e as conciliações também solucionam. Na minha opinião, tem de ser punido quem vai à Justiça para obter vantagens indevidas. Têm de ser criados incentivos ao cumprimento das obrigações e sanções efetivas pelo descumprimento.

Conjur — A arbitragem substitui o Judiciário com mais eficiência?

Arnoldo Wald — No campo empresarial, se a arbitragem for feita de boa fé, ela pode dirimir o conflito mais rapidamente. As partes escolhem um árbitro que tem tempo e capacidade técnica específica para resolver o conflito. O arbitro escolhido pode decidir a questão rapidamente.

Conjur — Por que empresas recorrem à Justiça contra a solução dada pela arbitragem?

Arnoldo Wald — Há uma frase válida que diz o seguinte: a arbitragem vale o que vale o árbitro. O árbitro tem de ser bom e a decisão deve ser justa e válida. Muitas vezes, o árbitro tem uma tendência a ser eqüitativo. Se for aplicar rigidamente o Direito, poderá decidir que uma parte perde tudo e a outra ganha tudo. Mas, às vezes, em determinado caso específico, essas soluções não são justas. Há uma tendência do árbitro, que algumas vezes o próprio juiz tem, de considerar que cada parte assumiu o risco e, assim sendo, as vantagens ou os resultados têm de ser divididos.

Conjur — O que diz a lei quanto às ações judiciais que questionam decisões arbitrais?

Arnoldo Wald — Só se pode ir à Justiça contra decisão arbitral em casos especiais: quando há corrupção do árbitro, quando não houve convenção de arbitragem, quando o árbitro julgou fora dos poderes que as partes lhe concederam. No Brasil, o número de processos pedindo a anulação de arbitragem é pequeno. A arbitragem pressupõe boa fé. Não adianta querer usar o instituto quando há um adversário de má-fé porque a questão certamente terminará na Justiça.

Conjur — Neste caso, a arbitragem tornar-se-á um problema e não uma solução.

Arnoldo Wald — Se uma das partes estiver de má fé, sim.

Conjur — Quando a arbitragem funciona?

Arnoldo Wald — Hoje, quem toma a decisão nas empresas não são mais os donos, mas os executivos. O acordo pode ser bom para ambas as partes, mas algumas vezes os diretores executivos não querem aceitar o risco de serem acusados de não terem feito um acordo melhor. A arbitragem é um meio de dizer “cheguei a um acordo, mas não fui eu quem decidiu”. Com a globalização, a série de riscos que os executivos têm de assumir se multiplicou. A arbitragem é uma forma de distribuir esses riscos.

ConJur — Muitos juizes são criticados porque não têm conhecimento técnico especializado. Como é que pode ser resolvida essa falta de conhecimento técnico do juiz?

Arnoldo Wald — O juiz pode recorrer a um técnico para resolver esse problema…

ConJur — Então essas críticas não têm fundamento?

Arnoldo Wald — Em questões altamente técnicas, faz mais sentido recorrer à arbitragem.

ConJur — A criação de colegiados especializados não é uma maneira de resolver isso?

Arnoldo Wald — Pode ser, mas a arbitragem tem um papel muito importante nisso. Um conflito do qual eu era advogado foi resolvido em seis meses por arbitragem, com um engenheiro de cada lado e um professor de Direito para redigir a sentença. Todo mundo ficou feliz.

ConJur — Se as causas empresariais fossem decididas só pela arbitragem, reduziria bastante o número de ações no Judiciário?

Arnoldo Wald — Sem dúvida. Os casos empresariais não são numerosos, mas são complexos e exigem bastante tempo do juiz. As ações empresariais são mais qualitativas do que quantitativas, mas têm repercussões quantitativas.

ConJur — O senhor falou da nova geração que chegou ao Supremo. Quais são as vantagens e as desvantagens dessa nova corte que se formou?

Arnoldo Wald — Acho que nós vamos ter uma Justiça mais rápida e eficiente.

ConJur — Mas o que se fala é justamente o contrário, de que o Supremo tem interferido nos outros Poderes, por exemplo no Legislativo, na questão das CPIs.

Arnoldo Wald — O Poder Judiciário tem uma certa influência na vida política, mas é um Poder e, como tal, tem independência e autonomia.

ConJur — No geral, a Justiça no Brasil é pior ou melhor do que a dos outros países?

Arnoldo Wald — Em nenhum lugar a Justiça funciona maravilhosamente bem. Isso porque foi concebida em um mundo com um número muito limitado de litígios, que se multiplicaram com o tempo, em virtude das novas tecnologias, da abertura da economia, da legislação que teve que se adaptar a um mundo diferente. Temos uma economia de primeiro mundo, uma tecnologia de primeiro mundo, e excelentes juízes. Mas precisamos de um processo civil mais rápido e eficiente para lidar com o enorme volume de litígios existentes na sociedade moderna.

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