Soneca no ônibus

Mostrar imagem de cochilo em ônibus não gera danos morais

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8 de julho de 2006, 7h00

Não há nada de excepcional ou vergonhoso para uma pessoa aparecer em programa de TV dormindo ou cochilando no transporte público. Trata-se de uma cena comum, portanto não indenizável. Isso porque, a liberdade de imprensa, dentro do limite do razoável, se sobrepõe ao interesse individual do direito à honra e à imagem.

Com esse entendimento, a 25ª Vara Cível de São Paulo livrou a TV Globo de indenizar por danos morais Aristides Peliçon Filho. Ele reclamava ter participado de uma reportagem ofensiva do Fantátisco, sem qualquer autorização. “Imagine-se cada exibição de imagem de pessoas em reportagens jornalísticas gerando ações individuais das pessoas mostradas. Certamente, isto iria cercear em muito a liberdade de imprensa, o que não se mostra minimamente razoável e justo”, considerou a primeira instância.

De acordo com os autos, Aristides Peliçon Filho foi um dos 20 personagens de uma reportagem sobre o problema do ronco e apnéia. Ele apareceu durante alguns segundos dormindo dentro de um ônibus, “quase caindo”. Alegou que ter aparecido deste jeito no programa, o fez alvo de zombaria pelos colegas do trabalho. Por isso merecia a indenização.

Já a empresa, representada pelo advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, sustentou que agiu dentro dos limites da liberdade de imprensa, por se tratar de uma reportagem “eminentemente jornalística, com anódinas cenas reais de diversas pessoas ‘roncando’ em locais públicos”.

A 25ª Vara Cível acolheu o argumento. “A imprensa presta relevantes serviços à sociedade, e a matéria jornalística tratada nos autos se refere ao problema do ronco, questão de saúde pública”, entendeu. “Note-se que os fatos trazidos no programa, pelo seu interesse público, interessam a toda a sociedade. Assim, dentro do contexto, pautado pelo interesse público, nada há de abusivo ou ofensivo na exibição casual da imagem do autor”, completou.

“A análise dos fatos demonstra que a matéria televisiva foi pautada pelo interesse público, ao abrigo, portanto, da isenção prevista no artigo 27, VIII, da Lei de Imprensa”, concluiu. Aristides Peliçon Filho ainda pode recorrer.

Processo 583.00.2005.093128-0

Leia a íntegra da decisão

Vistos. ARISTIDES PELIÇON FILHO move AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS contra TV GLOBO DE SÃO PAULO LTDA., dizendo que a ré levou ao ar, em 8 de maio de 2005, no programa televisivo “Fantástico”, cenas onde o autor aparece dormindo no interior de um ônibus, quase caindo, o que o fez alvos de zombaria por parte de colegas de trabalho, que o ridicularizaram, pelo que pretende se ver reparado.

Em contestação (fls. 39/50), a ré sustenta, em preliminar, inépcia da inicial, eis que não apontada em que cena aparece o autor, que não tem como ser identificado na reportagem; falha, assim, a causa de pedir; no mérito, diz que agiu nos limites da liberdade de imprensa, pois se trata de matéria eminentemente jornalística, com anódinas cenas reais de diversas pessoas “roncando” em locais públicos, destinado à informação do público.

É o relatório.

D E C I D O.

Afasto a preliminar de inépcia, eis que a petição inicial e a fita de videocassete permitem identificar a imagem do autor dormindo dentro de um ônibus, melhor convindo às partes e à Justiça, de qualquer sorte, o julgamento pelo mérito. Comprovado o ato inquinado de ilícito, o feito comporta julgamento antecipado, nos termos do art. 330, I, do CPC, pois a questão controvertida nos autos é meramente de direito.

Nos termos do art. 49, I, da Lei 5.250/67, aquele que, no exercício da liberdade de manifestação de pensamento e de informação, com dolo ou culpa, viola direito, ou causa prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano moral. Com efeito, no programa jornalístico da ré, em matéria sobre o ronco, aparece o autor, de forma breve, dormindo, dentre mais de vinte pessoas retratadas na mesma situação.

Portanto, a solução da controvérsia repousa na análise do fato em si – a exibição da imagem do autor em suposta situação constrangedora – em cotejo com duas situações abstratas positivadas, inclusive na Carta Magna. De um lado, tem-se o direito à inviolabilidade da honra e da imagem das pessoas, de cuja violação decorre o direito à indenização pelo dano material ou moral experimentado (art. 5º, X, CF). Por outro lado, temos o direito da liberdade de manifestação e de imprensa (arts. 5º, IX, e 220, CF).

Da contraposição dos direitos positivos em aparente conflito, decorre que a apuração da efetiva existência de responsabilidade civil da ré há que se fundar na teoria do abuso do direito, e pressupõe sempre a existência de culpa ou dolo. Com efeito, o exercício regular de direito constitui, não raro, escusativa da responsabilidade civil (art. 160, I, do Código Civil), calcado na parêmia “quem usa de um direito seu não causa dano a ninguém”.

Neste ponto, vale transcrever lição de Caio Mário da Silva Pereira: “o indivíduo, no exercício de seu direito, deve conter-se no âmbito da razoabilidade. Se o excede e, embora o exercendo, causa um mal desnecessário ou injusto, equipara seu comportamento ao ilícito e, ao invés de excludente de responsabilidade, incide no dever ressarcitório” (Responsabilidade Civil, 6ª ed., p. 296).

Na mesma obra, o renomado mestre adverte que a regularidade do exercício do direito deve ser apreciada pelo juiz com seu arbitrium boni viri – o arbítrio do homem leal e honesto. Só assim equilibra-se o subjetivismo contido na escusativa do agente que, não obstante causar um dano, exime-se de repará-lo.

E para se atingir o equilíbrio entre os direitos fundamentais contrapostos, deve o julgador se valer da lógica do razoável, preconizada pelo mestre espanhol Recasens Siches, invocado por Alípio Silveira: “A técnica hermenêutica do razoável, ou do logos do humano, é a que realmente se ajusta à natureza da interpretação e da adaptação da norma ao caso. A dimensão da vida humana, dentro da qual se contém o Direito, assim o reclama. O fetichismo da norma abstrata aniquila a realidade da vida. A lógica tradicional de tipo matemático ou silogístico não serve ao jurista, nem para compreender e interpretar de modo justo os dispositivos legais, nem para adaptá-los às circunstâncias dos casos concretos. O juiz realiza, na grande maioria dos casos, um trabalho de adaptação da lei ao caso concreto, segundo critérios valorativos alheios aos moldes silogísticos. E mais: ora, ao se orientar por juízos de valor em que se inspira a ordem jurídica em vigor, deverá o intérprete atender às exigências do bem comum, já que a lei é ordenação da razão, editada pela autoridade competente, em vista do bem comum. E como o bem comum se compõe de dois elementos primaciais – a idéia de justiça e a utilidade comum – são esses os elementos, de caráter essencialmente valorativo, os princípios orientadores” (Hermenêutica no Direito Brasileiro, RT, 1968, vol. I/86).

É preciso ressaltar, neste ponto, que a liberdade de imprensa e informação é garantia constitucional do estado democrático de direito, e como tal garantia da sociedade livre, e assim, dentro do limite do razoável, se sobrepõe ao interesse individual do direito à honra e à imagem. “A liberdade de informação jornalística, tratada no art. 220 e parágrafo 1º da Lex Fundamentalis, que envolve um direito de informar (até de forma crítica), no regime democrático, caracteriza, também, um dever de informar. A informação é indispensável no Estado Democrático de Direito! A omissão e a ocultação, como os excessos ou desvios, é que são socialmente danosos. E, ressalvadas as inequívocas ofensas, bem delineadas (aquelas, porventura indiretas ou ambíguas, devem ser, previamente esclarecidas e não, simplesmente, presumidas), ninguém está isento ou imune a qualquer narrativa crítica. Nem mesmo os denominados agentes políticos (Chefes de Executivo, membros do Poder Legislativo, do Poder Judiciário ou do Ministério Público, dentre outros) podem pretender uma posição, frente aos meios de comunicação, privilegiada, própria dos regimes de opressão”.

“Aliás, preleciona Dennis Lloyd, mestre da Universidade de Londres, que: ‘A relação entre lei e liberdade é, obviamente, muito estreita, uma vez que a lei pode ser usada como instrumento de tirania, como ocorreu com freqüência em muitas épocas e sociedades, ou ser empregada como meio de pôr em vigor aquelas liberdades básicas que, numa sociedade democrática, são consideradas parte essencial de uma vida adequada ´ (A idéia da lei – Martins Fontes). E, mais adiante: ‘Em qualquer comunidade onde predominam os valores democráticos e igualitários, é óbvio que o direito à liberdade de expressão e o direito à liberdade de imprensa devem ser qualificados como valores fundamentais, pois sem eles a possibilidade de desenvolvimento de cristalização de opinião pública, permitindo que ela exerça influência sobre os órgãos governamentais do Estado, estaria condenada a ser virtualmente ineficaz” (op. cit., p. 127 – 128; apud, de forma resumida, RT 757/502 – Superior Tribunal de Justiça – Ministro Félix Fischer).

A imprensa presta relevantes serviços à sociedade, e a matéria jornalística tratada nos autos se refere ao problema do ronco, questão de saúde pública, ressabido o grande número de pessoas que passam por isso, algumas até acometidas pela apnéia, interrupção de respiração que pode levar a graves conseqüências. Note-se que os fatos trazidos no programa, pelo seu interesse público, interessam a toda a sociedade. Assim, dentro do contexto, pautado pelo interesse público, nada há de abusivo ou ofensivo na exibição casual da imagem do autor, junto com dezenas de outras pessoas, sem qualquer intenção específica de ofender, mas sim no mero intuito de ilustrar o problema.

Não bastasse, nada há de excepcional ou vergonhoso numa pessoa dormindo ou cochilando no transporte público, cena algo comum. Nem se vê por onde tal exibição possa acarretar tão séria repercussão no ânimo do autor que mereça qualquer reparação, não se podendo premiar o melindre por acontecimento sem qualquer importância para o “homem médio”. Imagine-se cada exibição de imagem de pessoas em reportagens jornalísticas gerando ações individuais das pessoas mostradas.

Certamente, isto iria cercear em muito a liberdade de imprensa, o que não se mostra minimamente razoável e justo. Assim, diante das peculiaridades do caso, o direito à imagem do autor não se mostra de caráter absoluto, cedendo espaço ao interesse público maior do programa jornalístico informativo levado a efeito. A análise dos fatos demonstra que a matéria televisiva foi pautada pelo interesse público, ao abrigo, portanto, da isenção prevista no art. 27, VIII, da Lei de Imprensa.

Pelo exposto, JULGO IMPROCEDENTE o pedido, arcando o autor com despesas processuais, sendo os honorários advocatícios ora arbitrados em 10% do valor da causa, verbas de que por ora se desonera, face à justiça gratuita. P.R.I.C. Valor de Preparo R$ 1.028,34 – Porte de Remessa R$ 20,96.

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