Individual e coletivo

STF conciliou interesse público e individual ao julgar Tablita

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6 de julho de 2006, 12h52

O acórdão do RE 141.190, referente à Tablita de 1987, se reveste da maior importância, tanto no tocante ao direito monetário quanto à definição, pelo Supremo Tribunal Federal, da exata conceituação do direito adquirido. É também uma das primeiras decisões da nossa Suprema Corte, na qual vários dos votos proferidos incluem um estudo econômico-financeiro, que serve de fundamento à orientação adotada pelo Tribunal.

Embora, no passado, se tenha feito referências pontuais ao direito monetário, procurando até fazer a distinção entre cláusulas de reajustamento das prestações e das cláusulas monetárias, é a primeira vez que o STF reconhece os efeitos específicos da política monetária e analisa a moeda como valor de troca, conciliando as suas funções de instrumento de pagamento e de garantia da manutenção de um determinado poder aquisitivo. O Poder Judiciário realiza, assim, a adequada e eqüitativa composição entre o nominalismo e o realismo monetário, conciliando o interesse público e os direitos individuais.

Não obstante tenham sido distintos os fundamentos dos vários votos proferidos, há um consenso entre os Ministros no sentido de reconhecer a peculiaridade do fenômeno monetário, não se podendo equiparar a moeda a uma mercadoria, nem considerar a operação bancária como sendo uma prestação de serviços.

Em relação à conceituação do direito adquirido, também houve uma clarificação importante, fazendo-se a síntese de uma evolução jurisprudencial que ocorreu nos últimos vinte anos, em virtude das importantes modificações sociais, econômicas e tecnológicas que o país sofreu. Sem que se possa admitir a relativização do direito adquirido, não há como manter conceitos com o sentido que tiveram no século XIX, quando a sociedade era muito mais estável, no chamado “mundo da segurança” então existente, e no qual as mudanças não se realizavam com o ritmo que adquiriram nas últimas décadas.

Efetivamente, se no século XXI vivemos na era da velocidade, na qual desapareceram as distâncias, o direito deve adaptar-se a essa evolução, revendo sua dogmática e tentando conciliar a tradição com as novas necessidades.

Já em meados do século passado, San Tiago Dantas reconhecia que existiam em nosso país dois direitos: o dos códigos e dos tratados de direito civil, de um lado e, do outro, o dos tribunais, das chamadas leis extravagantes e da prática. E afirmava que era preciso ultrapassar o hiato existente entre o direito dos livros e o da vida. Essa lição adquiriu ainda maior atualidade no fim do século XX e no início do nosso.

Por outro lado, o direito tem que manter os seus princípios adaptando a aplicação dos mesmos às novas condições de vida. Uma das áreas nas quais se faz mais agudo o conflito entre o direito tradicional e as exigências atuais da evolução econômico-financeira do país é o do direito monetário, abrangendo as várias leis de indexação e de desindexação e os chamados planos econômicos, que ensejaram problemas jurídicos complexos e ações que congestionaram os nossos tribunais, durante mais de dez anos.

Podemos resumir a evolução que ocorreu considerando que, numa primeira fase, as leis monetárias foram consideradas como sendo de ordem pública e como tais, de aplicação imediata (RE nº 107.512, in RTJ 121/705 e outros recursos). Num segundo momento, o Supremo Tribunal Federal fez a distinção entre as normas referentes às instituições e as que tratam da matéria contratual. Rejeitando e superando a distinção entre normas de ordem pública, que seriam de aplicação imediata, e normas supletivas, em relação às quais não se admitia a retroatividade mínima, considerou o STF que, na área institucional, a lei nova deveria ser aplicada de imediato, enquanto o mesmo não tinha que ocorrer em relação aos contratos. Foi a tese sustentada na ADIn nº 493 (RTJ 143/724), na qual o relator, após ter citado a nossa obra a respeito da cláusula de escala móvel, concluiu que a TR não era indexador monetário. Fez-se, outrossim, a distinção entre leis que modificavam a unidade monetária e outras que se limitavam a fixar novas regras para a indexação.

Ficava a dúvida quanto à aplicação aos contratos privados de regras de caráter institucional, discutindo-se a aplicação imediata das normas monetárias no que tange às relações entre particulares. Assim, por exemplo, o Poder Judiciário modificou os índices do Plano Verão, mas considerou constitucional o Plano Collor (Súmula nº 725).

O acórdão da Tablita mantém a distinção entre normas institucionais e contratuais, porém admitindo exceções. Assim, considera que as normas monetárias, abrangendo tanto a moeda como o seu poder aquisitivo, ou seja, os indexadores, devem ser aplicadas imediatamente, desde que obedeçam ao princípio da proporcionalidade.

Ficam, assim, esclarecidas e superadas as dúvidas que tinham surgido na jurisprudência anterior do Supremo Tribunal Federal em relação ao efeito imediato da lei, reconhecendo a Corte Suprema que não há direito adquirido a um regime jurídico determinado, especialmente no campo monetário, quer em relação à moeda, quer em relação ao indexador constantes do contrato.

Por outro lado, afirmou-se que devia ser respeitado o princípio da proporcionalidade, apreciando-se os efeitos práticos da nova legislação. Não se trata mais da razoabilidade encarada abstratamente, numa apreciação lógica do texto legal, mas do exame de suas conseqüências econômicas, que não podem conflitar com os princípios fundamentais da nossa Constituição.

Há quase vinte anos, o Ministro Bilac Pinto, inicialmente em artigo publicado na Revista Forense (RF 82/561) e, em seguida, em voto proferido no Supremo Tribunal Federal, no RE nº 72.071-GB ( RTJ 58/699), examinando a legislação referente a acidentes do trabalho, entendeu que determinadas leis podiam ser formalmente constitucionais, mas materialmente inconstitucionais. A distinção se aplicaria tanto no direito fiscal como no direito processual. Tive o ensejo de defender a ampliação do campo da distinção para também fazê-la incidir no direito monetário, em artigo que então publicamos na Revista de Informação Legislativa (112/299) e que republicamos no presente volume.

Em certo sentido, a síntese feita pelo Ministro Gilmar Mendes, no seu voto, no caso da Tablita, aplicando o princípio da proporcionalidade para legitimar a intervenção do Estado no contrato, mediante medidas monetárias, adota posição análoga, admitindo um poder monetário que não pode ser abusivo nem arbitrário.

Cabe acrescentar que os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, no passado, eram baseados exclusiva ou principalmente em pressupostos jurídicos, invocando-se a lógica e o raciocínio, enquanto, agora, talvez pela primeira vez, a proporcionalidade se fundamenta em estudos econômicos.

Já publicamos no número anterior da nossa revista, tanto o parecer que demos a respeito da Tablita, há cerca de uma década, como o memorial então apresentado pelo Dr. Cláudio Lacombe, que, em certo sentido, endossamos, ao apreciar o acórdão do STF. Efetivamente, a decisão da Suprema Corte no caso da Tablita reconhece o Poder Monetário da União, mas o limita; admite o efeito imediato da lei, mas não permite que tenha efeito confiscatório; não desconhece o fato, que é a situação inflacionária, à qual dá relevância, mas não submete o direito à economia. São, pois qualidades criativas e fecundas da maior importância que indicam uma nova fase da jurisprudência pátria e até, mais do que isso, uma nova visão do direito no século XXI.

Os tribunais que, ainda há meio século, desconheciam o fenômeno inflacionário e acreditavam na estabilidade da moeda, evoluíram e progressivamente, atribuíram efeitos importantes à desvalorização monetária, que tentaram compensar de modo eqüitativo. Posteriormente, ora intervieram na fixação do indexador, ora negaram efeito imediato às leis monetárias, tendo inclusive, em alguns poucos casos, em relação ao Plano Real, admitido um enriquecimento sem causa do investidor em detrimento da sociedade. Com o acórdão referente à Tablita que estamos comentando, chegamos, agora, a uma fase construtiva de equilíbrio na qual, de acordo com as lições de Jean Carbonnier “a soberania monetária deve ser limitada por uma moral, uma ética monetária”.

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