Defesa do Estado

Entrevista: Marcos Nusdeo

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2 de julho de 2006, 7h00

Marcos Nusdeo - por SpaccaSpacca" data-GUID="marcos_nusdeo.png">O que pode ocorrer quando o cliente não conhece seu advogado, não sabe como nem por que está sendo defendido? Essa é uma das facetas descabeladas da situação do procurador do Estado. Confundido quase sempre com o procurador de Justiça, o advogado do governo estadual tem nas suas mãos altas responsabilidades mas, para a população é quase um anônimo. Sua aparição mais frequente na mídia tem sido por suas lutas remuneratórias com o governo. Em São Paulo, desde a primeira gestão do governo Covas, a relação do Estado com seus procuradores só se deteriorou. O Estado se diz mal defendido e o procurador se diz mal pago. Com a população, a relação continua igual. Ou seja: nenhuma.

Uma das atribuições do procurador do Estado é cobrar créditos do Estado e impedir, ou ao menos reduzir, aquelas indenizações bilionárias — que se acumulam ora com truques, ora porque os governos (caloteiros por definição), vão empurrando seus débitos de uma administração para outra por décadas. Dentro daquela noção equivocada, há quem pense que a Procuradoria defende o interesse do governante. Não se associa a noção de que o que está em jogo é o interesse de todos. Isso se vê quando se festeja “derrotas do governo” em juízo, ou anistias que raramente são questionadas.

Conceder anistia fiscal pode até aumentar a arrecadação em curto prazo, mas deseduca o cidadão. “Ele pergunta: ‘Por que é que eu vou pagar? É só esperar que daqui a um ano vem outra anistia’.” A opinião é do presidente da Apesp — Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo, Marcos Nusdeo.

Para o dirigente classista, o governo, ao menos o paulista, não precisa mais recorrer à anistia para aumentar a arrecadação ou recuperar parte dos créditos do Estado. Seu maior argumento são os números: nos últimos quatro anos a Procuradoria-Geral do Estado transportou R$ 2 bilhões da dívida ativa paulista para os cofres públicos. “Nós tínhamos uma arrecadação em 1995 — já com economia estabilizada — de R$ 222 milhões. Em 2005, nós passamos um pouco dos R$ 600 milhões”, afirma.

Exceto a área fiscal, que têm naturalmente o maior número de ações, o estado paulista é mais acionado por questões imobiliárias, ambientais e do funcionalismo, conta o procurador. Em entrevista à Consultor Jurídico, Nusdeo fala que o trabalho contencioso da Procuradoria fez o estado de São Paulo economizar R$ 1 bilhão em um único precatório. “Era o melhor negócio da China. Já imaginou? O fato de ter um terreno desapropriado equivale a ganhar a mega-sena várias e várias vezes.”

Marcos Nusdeo falou também sobre a transição da Procuradoria de Assistência Judiciária para a Defensoria Pública e defendeu a paridade salarial dos procuradores do Estado com outros membros de carreiras jurídicas, como juízes e membros do Ministério Público.

O presidente da Apesp — associação que congrega 1.400 procuradores ativos e aposentados do estado de São Paulo — é professor de Direito Constitucional da Faap, procurador do Estado desde 1989 e antes trabalhou por seis anos no Machado, Meyer, Sendacz e Opice. “O escritório cresceu depois que eu saí”, brinca.

Leia a entrevista

ConJur — Qual o papel da Procuradoria-Geral do Estado?

Marcos Nusdeo — A Procuradoria é o órgão jurídico do Estado, uma carreira com assento constitucional. De acordo com o artigo 132 da Constituição Federal, os procuradores do Estado e do Distrito Federal “exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas”. Ou seja, os procuradores respondem a todas as questões jurídicas do Estado. Em São Paulo, hoje, a Procuradoria se divide em três áreas: a de consultoria jurídica, do contencioso geral e a da assistência judiciária, que agora passará as tarefas para a Defensoria Pública.

ConJur — Qual a atribuição de cada área?

Marcos Nusdeo — A consultoria jurídica é a área que resolve as questões consultivas do governo, de todas as secretarias de estado, de órgãos das secretarias. Por exemplo, trata das regras e dá pareceres sobre o andamento de licitações. Nas privatizações participa de todas as etapas do processo. E isso significa levantar todas as questões jurídicas, elaborar os editais e, importante, fazer frente às contestações judiciais que surgem. Aí entra o contencioso, que cuida das ações propostas contra o Estado e pelo Estado. E a terceira área, muito importante, é a assistência judiciária. O estado de São Paulo há 50 anos dá assistência judiciária. Quer dizer, muito antes da Constituição de 1988 São Paulo já tinha essa preocupação de prestar assistência gratuita ao cidadão hipossuficiente.

ConJur — A assistência judiciária é uma atribuição específica da Procuradoria de São Paulo?


Marcos Nusdeo — A assistência judiciária agora está mudando de mãos. A Defensoria Pública paulista está em período de implantação. Quando a Constituição de 88 previu a criação da Defensoria Pública o estado de São Paulo entendeu que não precisava implantar imediatamente porque já havia a assistência judiciária. O artigo 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de São Paulo determinou que “enquanto não entrar em funcionamento a Defensoria Pública, as suas atribuições poderão ser exercidas pela Procuradoria de Assistência Judiciária da Procuradoria-Geral do Estado ou por advogados contratados ou conveniados com o Poder Público”. Então, enquanto não teve a decisão política de se encaminhar um projeto de lei criando a Defensoria Pública, esse serviço continuou na Procuradoria.

ConJur — A Procuradoria deixará de prestar a assistência?

Marcos Nusdeo — Sim. Virá uma Defensoria que esperamos que seja forte, atuante, até porque ela vai nascer seguindo as tradições de uma assistência judiciária com mais de 50 anos. Ela não vai nascer do zero aqui em São Paulo. Ela vai nascer com uma cultura já implantada.

ConJur — Os procuradores que trabalhavam na assistência judiciária vão ser todos absorvidos pela Procuradoria-Geral do Estado ou parte deles vai para a Defensoria?

Marcos Nusdeo — A Constituição paulista permitiu aos procuradores optar pela permanência no cargo da PGE ou passar para o quadro de carreira de defensor público, garantidas as vantagens, níveis e proibições. E 87 procuradores do Estado fizeram a opção pela Defensoria. São Paulo já tem 87 defensores.

ConJur — Quantos procuradores trabalhavam na assistência judiciária?

Marcos Nusdeo — Pouco mais de 350. A defensora pública geral, Cristina Guelfi Gonçalves, era procuradora. Além dos 87 que optaram pela Defensoria, os outros são procuradores que estão transitoriamente fazendo assistência judiciária e que em breve serão absorvidos pelas outras áreas da Procuradoria.

ConJur — E eles terão o que fazer na Procuradoria?

Marcos Nusdeo — Vão ter muito trabalho. A Emenda Constitucional 19/04, da Constituição paulista, aumenta as atribuições da PGE. A norma dispõe que a Procuradoria fica responsável por representar judicial e extrajudicialmente, e assessorar, as autarquias estaduais, inclusive as de regime especial, exceto as universidades públicas. Isso é um aumento muito grande das nossas funções. Então, se por um lado nós perdemos a assistência judiciária, vamos ter uma função muito mais ampla no âmbito da administração.

ConJur — Em volume, o que significa isso?

Marcos Nusdeo — É uma grande pergunta, para a qual ainda não temos resposta. O que sabemos é que não é pouca coisa o que tem em todas as autarquias do estado de São Paulo. Está começando a vir. Ainda não veio. Tem uma resolução recente do procurador-geral (Elival da Silva Ramos) que regulamenta exatamente esse momento de passagem.

ConJur — E o que acontecerá com o procurador autárquico?

Marcos Nusdeo — Os procuradores autárquicos vão ficar em um quadro em extinção. Isso significa que quando um deles se aposentar, falecer ou se exonerar, o cargo não será mais preenchido por um procurador autárquico. A Procuradoria é que vai assimilar essa função.

ConJur — Eles não são incorporados?

Marcos Nusdeo — Não, eles não se transformam em procuradores do Estado. Então, a atribuição que nos é passada é apenas a de serviços, não de pessoas.

ConJur — A partir daí, como fica a estrutura da PGE?

Marcos Nusdeo — Na área contenciosa nós temos 646 cargos previstos e 499 preenchidos. Os números são de abril, então pode haver pequena variação. No setor consultivo são 172 cargos previstos e 143 preenchidos. E, na assistência judiciária, hoje são 285 procuradores. Então, temos 147 cargos vagos no contencioso, 29 na consultoria. E temos 285 colegas na assistência judiciária, que em alguns meses passarão para essas outras duas áreas. Assim, além de preencher os cargos vagos, terão de ser criados mais 109. A PGE fica completa para poder bem atuar na área do contencioso e na área da consultoria com um número correto de procuradores. E nós vamos ter mais esses 109 cargos, que serão designados para fazer especificamente o trabalho das autarquias. Depois de muito tempo, eu considero que agora nós teremos um número bom de procuradores para fazer nosso trabalho.

ConJur — A maior parte do trabalho dos procuradores na área contenciosa é na parte fiscal? Qual a porcentagem de ações tributárias em relação às outras?

Marcos Nusdeo — Eu acho que mais de 70% das ações está na área fiscal. Mas isso é uma estimativa.


ConJur — Como está a organização para a cobrança da dívida ativa?

Marcos Nusdeo — A cobrança da dívida ativa é um trabalho complicado, mas temos conseguido bons resultados. Complicado porque há devedores com patrimônio e sem patrimônio; devedores com grandes créditos e devedores com pequenos créditos; devedores com bens para garantir a execução e devedores que têm patrimônio, mas os bens estão fora de mercado. Apesar disso, os resultados melhoram a cada dia. Nós tínhamos uma arrecadação em 1995 — já com economia estabilizada — de R$ 222 milhões. Em 2005, nós passamos um pouco dos R$ 600 milhões. Isso é recuperação de crédito.

ConJur — Qual é o tamanho da dívida?

Marcos Nusdeo — Não há resposta exata. A estimativa é a de que a dívida cobrável esteja entre R$ 5 bilhões e 10 bilhões.

ConJur — O valor que o senhor conta como recuperado é o que já entrou nos cofres públicos?

Marcos Nusdeo — Exatamente. Nos últimos dois anos (2004 e 2005), arrecadamos R$ 1 bilhão. Isso é dinheiro que voltou para o governo. Nos dois anos anteriores, 2002 e 2003, também foi arrecadado R$ 1 bilhão. E estamos melhorando esses valores. Em 2006, em cinco meses, já arrecadamos cerca de R$ 300 milhões.

ConJur — A que se deve essa melhora na cobrança da dívida ativa?

Marcos Nusdeo — O estado de São Paulo tem uma receita tributária grande, mas instável. Esses números mostram que uma atuação eficiente nesta área inibe o não pagamento. Não dá para quantificar, mas que gera um efeito psicológico. A partir do momento que se sabe que você tem um órgão jurídico eficiente para fazer a cobrança, as pessoas pensarão duas vezes antes de não pagar os seus tributos em dia. Isso porque, além dos acréscimos como juros e multa, vai gerar uma cobrança com chances de êxito. O mais importante desses números é o efeito que eles geram para os contribuintes. Ele pensa: “Se eu devo, eu vou pagar. Só vou deixar para brigar aquilo que eu tenho certeza que estão me cobrando indevidamente”.

ConJur — Diante desse quadro, qualquer procurador deve sentir urticária quando fala em anistia fiscal.

Marcos Nusdeo — Ah, sim! A anistia pode até aumentar a arrecadação em curto prazo, mas deseduca. O grande problema é que ela cria a expectativa de que sempre haverá perdão. Então, o cidadão pergunta: “Por que é que eu vou pagar? Eu espero e daqui a um ano vem outra anistia”. Já tem gente pedindo anistia este ano. E você pune o bom pagador de impostos.

ConJur — Além da cobrança, há o papel de defender o Estado e tentar reduzir o número de demandas indevidas…

Marcos Nusdeo — Tão importante quanto a cobrança da dívida ativa é a economia que uma bem sucedida ação dos procuradores do Estado traz ao governo. Entre 1997 e 2001, a Procuradoria conseguiu suspender R$ 3,5 bilhões em precatórios ambientais. Um deles, um único precatório, era de mais de R$ 1 bilhão. Era o melhor negócio da China. Já imaginou? O fato de ter um terreno desapropriado equivale a ganhar a mega-sena várias e várias vezes. Existem também muitas ações temerárias.

ConJur — Do volume de ações, há uma estimativa de quantas são lides temerárias?

Marcos Nusdeo — Muitas ações são propostas contra o Estado sem que o autor tenha qualquer razão, mas não são necessariamente temerárias. E aí há um trabalho eficiente da PGE para que a ação seja julgada improcedente. E nós temos um grande volume de ações julgadas improcedentes. Então, é uma segunda economia. Uma economia é você questionar os valores. Quer dizer, o Estado não deve R$ 15 milhões, ele deve R$ 12 milhões. Outra frente é a mostrar que o Estado não deve nada.

ConJur — Quais são os grandes grupos de ações? São as ambientais, do funcionalismo público?

Marcos Nusdeo — Há um grupo importante que são as ações ordinárias e pedidos de Mandado de Segurança em matéria fiscal. É um grupo importante. Temos também um grande número de ações imobiliárias e ambientais, e um terceiro grupo que são ações de servidores contra o Estado. Esse é um grupo grande de ações porque o Estado muda as regras dos servidores com freqüência e nem sempre verifica todas as situações jurídicas envolvidas. Hoje em dia isso acontece menos porque os governos estão seguindo mais as orientações da Procuradoria, que se consolidou nessa parte consultiva, na elaboração de leis.

ConJur — Há algum tipo de ação do momento contra o Estado?

Marcos Nusdeo — Um grande problema atual são as ações de pedidos de medicamentos. Gente que não tem recursos para custear determinado medicamento ou tratamento, entende que é dever do Estado custear e entra na Justiça. Em muitos casos há razão. Mas em muitos também não há. Existem muitas demandas nas quais se colocam valores que o Estado entende que não são os valores adequados. Não tenho números exatos, mas esse tipo de ação aumentou muito nos últimos tempos.


ConJur — Existem casos que a Procuradoria não contesta? Há uma orientação para que em certos casos a PGE não recorra ou conteste porque sai mais barato não litigar do que gastar papel?

Marcos Nusdeo — Sim. Recentemente a Procuradoria tomou a decisão de priorizar a cobrança de devedores com potencial de pagamento. Separamos ações de empresas falidas, que não se encontra mais patrimônio, porque não há o menor sentido entulhar o Poder Judiciário com esse tipo de demanda. Também existem os casos em que a orientação da Procuradoria Administrativa ou Consultiva é a de que o Estado reconheça determinado direito. A PGE passa a orientação para o Poder Executivo e isso depende de uma decisão política do governador, de reconhecer ou não reconhecer o direito nos casos em que se pacificou a jurisprudência em sentido contrário à tese do Estado.

ConJur — Mas a obrigação da Procuradoria é recorrer sempre.

Marcos Nusdeo — A Procuradoria tem essa obrigação porque cuida da indisponibilidade do interesse público. O interesse público é indisponível. Ele não é meu, nem seu, é do Estado. Por isso, a regra da advocacia pública é recorrer sempre. Mas estamos reconhecendo que se deve recorrer apenas naqueles casos em que temos chances de ganhar e que não devemos recorrer em matérias já pacificadas em sentido contrário. É isso que a Advocacia-Geral da União está fazendo com a edição de súmulas administrativas para que não se recorra em matérias já pacificadas.

ConJur — A Súmula Vinculante pode ser de grande utilidade para a advocacia do Estado, não?

Marcos Nusdeo — Sim, porque a Súmula Vinculante basicamente veio para firmar isso: em ações que já há jurisprudência pacificada, não tem o menor sentido entulhar o Judiciário de demandas. A Súmula Vinculante facilitaria o trabalho, sem dúvidas.

ConJur — Voltando um pouco para a questão da assistência judiciária, como o senhor avalia o convênio com a OAB?

Marcos Nusdeo — A OAB faz um trabalho complementar importante ao serviço da assistência judiciária. Agora, essa é uma questão que é de Defensoria Pública, que agora tem direção própria.

ConJur — Há uma reação contra esse tipo de convênio. Há quem diga que isso perpetua o descumprimento da Constituição Federal no que diz respeito à implantação da Defensoria Pública.

Marcos Nusdeo — O convênio veio para suprir uma necessidade. No momento em que a Defensoria Pública estiver totalmente estruturada, vai caber a ela saber até quando ela precisa do convênio. Mas ele foi necessário até agora. Não era possível para a Procuradoria de Assistência Judiciária sozinha ter suprido essa necessidade. Foi uma opção.

ConJur — Qual é o salário inicial do procurador do Estado?

Marcos Nusdeo — É de R$ 5.691,00. Uma de nossas maiores bandeiras é a da paridade salarial com as outras carreiras jurídicas. O salário inicial da magistratura estadual é de cerca de R$ 11 mil. Quando eu entrei na carreira em 1989, muitos colegas mais antigos disseram para eu continuar estudando, tratando a PGE como um trabalho de passagem, sem futuro. Quantas ótimas cabeças nós perdemos para o Judiciário e para o Ministério Público? E para a iniciativa privada? Mas, em 2001, a administração entendeu a necessidade de tratar os procuradores do Estado como se trata as outras carreiras jurídicas. Hoje, nós não temos essa paridade remuneratória, mas confiamos que o governador vai observar isso.

ConJur — Mas o procurador do Estado pode advogar num certo numero limitado de ações e as outras carreiras não…

Marcos Nusdeo — Não pode. A nossa lei orgânica de 1986 proíbe a advocacia fora do âmbito da Procuradoria. Temos dedicação exclusiva ao Estado. O que acontece é que a Constituição ressalvou o direito de advogar daqueles que tinham entrado na carreira pelo regime jurídico anterior. Então, quem entrou antes de 86 pode advogar, mas quem entrou depois tem dedicação exclusiva ao Estado. Hoje, há cerca de 20 procuradores que ainda podem exercer advocacia privada.

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