Desordem na lei

Ameaça à ordem pública não pode justificar prisão preventiva

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1 de julho de 2006, 7h00

O risco à ordem pública é a exceção e não a regra para o pedido de prisão preventiva. A opinião é de três advogados criminalistas consultados pela Consultor Jurídico a respeito de voto do ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, sobre a matéria, que pode abrir um enorme precedente.

Recentemente, Marco Aurélio firmou entendimento de que o fato de haver risco à ordem pública não justifica pedido de prisão preventiva, sob o risco de “a prisão ganhar contornos de verdadeiro cumprimento da pena ainda não imposta”. A decisão garantiu a liberdade de um médico acusado de homicídio doloso por ter prescrito medicamento que causou a morte de uma paciente.

De fato, não há na doutrina ou na jurisprudência a definição exata do que significa o risco à ordem pública. Por conta disso, há centenas de pedidos de prisão que repetem o texto da lei, mas não justificam o argumento. Diz o artigo 312 do Código de Processo Penal: “a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”.

Há ainda quem defenda que, como não há um padrão fixo para o verbete, a regra é inconstitucional. Por isso, “o risco e a necessidade da custódia cautelar devem ser rigorosamente demonstrados e justificados, por meio de elementos probatórios e nunca de acordo com a sua convicção pessoal”, explica o advogado penalista Jair Jaloreto Junior,.

“Deve-se levar em consideração que restringir a liberdade de um acusado somente por haver indícios de ter cometido um crime se trata de verdadeiro constrangimento ilegal, posto que reina no ordenamento jurídico pátrio o princípio constitucional da presunção de inocência, mediante a qual presume-se inocente o agente não considerado culpado através de julgamento definitivo”, diz Jaloreto.

O advogado criminalista Luis Guilherme Vieira vai ainda mais longe. “Esse verbete tem sido usado de forma abusada, tanto nos requerimentos de prisão, quanto no deferimento ou não do pedido. Rigorosamente, tudo cabe dentro deste conceito, porque não está delineado”, observa.

“Essa expressão não tem identidade, nem padrão fixo. É inconstitucional. É um termo aberto, rigorosamente aberto. Tudo cabe aí dentro. É uma desgraça. Uma grande irresponsabilidade”, afirma Luis Guilherme Vieira.

Ricardo Sayeg, acompanha o colega. “A gravidade dos delitos não elide a presunção constitucional de inocência e a pretexto da garantia da ordem pública, as pessoas estão sendo presas sem julgamento. A prisão preventiva sob o fundamento da garantia da ordem pública é, sem dúvida, excepcionalíssima”.

Ponto a ponto

Fauzi Hassan Choukr, promotor de Justiça e doutor em Direito Penal, é um dos autores do verbete. Ele explica que a regra nasceu em 1972, mas só foi acrescentada à lei em 1994. Desde aí, reclama-se a ausência do conceito de ordem pública. “Na jurisprudência do Supremo, encontramos conceitos extremamente frágeis e gelatinosos que fazem com que esse fundamento se adeqüe à necessidade do momento da prisão. A composição atual do STF vem efetivamente colocando freios no emprego do conceito, usado com abuso pelos operadores do Direito”.

Segundo o promotor, o Supremo Tribunal Federal já descartou o conceito de ordem pública como idéia do clamor público. O entendimento se firmou no julgamento do pedido de Habeas Corpus do ex-jogador de futebol Edson Cholbi do Nascimento, o Edinho, filho de Pelé, preso sob acusação de associação para o tráfico de drogas (HC 87.343).

No Direito Comparado, apenas dois países (Espanha e Bélgica) empregam o fundamento nos pedidos de prisão cautelar, mas nunca como um argumento isolado. Diferente do que acontece no Brasil, porque o Código de Processo Penal permite apenas a citação da íntegra do artigo 312, sem qualquer fundamento.

“Quando não há no processo fundamentos que justifiquem a prisão cautelar, existe um largo espírito inquisitivo, das instâncias inferiores inclusive, ou dos operadores do Direito, de transformar a prisão em antecipação da pena. Tudo isso porque não existe demonstração do que é ordem pública. Temos um campo muito amplo”, afirma.

Outro exemplo citado por Choukr é o voto do então ministro Francisco Rezek, em que a ordem pública foi colocada para manter a segurança pessoal de um acusado, que corria o risco de ser linchado. “Os operadores de Direito não se limitam a literariedade do CPP. O Código permite que não se fundamente coisa alguma em termos cautelares. É aí que nasce o perigo”, alerta.

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