Ruído de comunicação

Cade ainda tem de se fazer entender pelo Judiciário

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31 de janeiro de 2006, 0h17

Depois de passar ao menos três anos desfalcado, o Cade – Conselho Administrativo de Defesa Econômica fez sua primeira sessão de 2006 com as sete cadeiras de conselheiros ocupadas. A presidente do órgão, Elizabeth Farina, comemora o fato com a esperança de que, completo, o órgão aperfeiçoará os planos de celeridade e a racionalização dos procedimentos.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, a presidente da mais importante instância administrativa ligada à defesa da concorrência no país fala da necessidade de se aproximar do Judiciário. “Há um desconhecimento. Apesar da grande repercussão dos casos que o Cade julga, no universo de processos que o juiz enfrenta, o número de casos de Direito Econômico é muito pequeno”, diz.

A presidente do Cade fala também das atuais políticas desenvolvidas para dar maior transparência aos julgamentos: as sessões do órgão passaram a ser transmitidas pela internet e o advogado pode fazer o download da sessão em seu computador.

Elizabeth discorre, ainda, sobre o respeito que o Cad tem obtido no plano interno e no internacional. “Um reconhecimento da comunidade internacional ao nosso trabalho foi a renovação do status de observador concedido ao Brasil no comitê de concorrência da OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.”

Leia a entrevista

ConJur — Como foi para o Cade o ano de 2005?

Elizabeth Farina — Ótimo, porque conseguimos cumprir um conjunto de propostas que nós nos fizemos – eu como presidente, mas também os conselheiros.

ConJur — Que propostas?

Elizabeth Farina — Uma delas é dar celeridade aos processos, resolver pendências que estavam aqui no Cade há muito tempo.

ConJur — Qual o caso mais significativo?

Elizabeth Farina — Do ano passado, o mais importante foi o da Vale do Rio Doce. O processo da Vale veio para o Cade para análise em 2004. Chegou no fim de 2004 e foi julgado em 2005. Na verdade, acho que esse processo foi o mais importante da história do Conselho. De volta às propostas, dentro dos nossos planos, o objetivo era dar celeridade aos processos e resolver pendências. Desejávamos continuar a implantação de uma série de trâmites internos e mexer no andamento dos processos também para o público externo. Queríamos, ainda, dar maior transparência às nossas atividades.

ConJur — Houve alguma medida nesse sentido?

Elizabeth Farina — Várias medidas. A sessões foram transmitidas pela internet, o que tem um impacto visível na transparência. Mas também tivemos a preocupação de melhorar a condição de consulta aos processos. Há a secretária processual, onde se tem uma sala na qual é possível solicitar o processo para revista, pesquisar. Mas o fato de as sessões serem transmitidas por internet dá uma transparência enorme, qualquer pessoa pode acompanhar o julgamento de um caso.

ConJur — Quem não acompanhou ainda tem a chance de baixar arquivos da sessão.

Elizabeth Farina — Isso é um outro lado. Essas questões estão ali para fazer um download. Isso economizou muito tempo e recursos, porque as degravações eram pedidas com uma freqüência muito grande e precisávamos deslocar uma pessoa para isso. Hoje, o advogado que precisa pode perfeitamente baixar no seu escritório e obter o trecho que lhe interessa. Em geral, você não precisa da sessão inteira. Então, deu-se celeridade e transparência às sessões.

ConJur – A participação do Cade em outros eventos faz parte da política de transparência?

Elizabeth Farina — Sem dúvida. Temos nos preocupado em atuar tanto nos fóruns nacionais quanto nos internacionais. Mas, se o objetivo é transparência de um lado, por outro lado, é nos envolvermos nas discussões sobre a defesa da concorrência em situações diferenciadas no mundo, absorvendo a visão de vários grupos diferentes. Então, vamos discutir concorrência dentro de universidade, dentro de associações, com advogados, em várias das suas organizações. E tivemos uma atuação bem importante na área internacional, que fazia parte da nossa programação. Dentre outras coisas, toda a assessoria internacional do Cade tinha o objetivo não só de aprendizado, de troca de experiências, mas de participar desse debate no mundo, apresentar o Brasil, mostrar a participação aos outros países. Um reconhecimento da comunidade internacional ao nosso trabalho foi a renovação do status de observador concedido ao Brasil no comitê de concorrência da OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

ConJur — Como é que os países estrangeiros vêem o Brasil em relação à política de concorrência?

Elizabeth Farina — Temos uma avaliação muito positiva lá fora. Nós fomos o objeto de uma avaliação concreta. Mandaram um consultor para o Brasil para fazer levantamento de dados. Nesse momento, um papel importantíssimo foi desempenhado pela assessoria internacional do Cade: responder a milhares de perguntas do consultor. Você não pode calcular o número de e-mails. Pararam de contar quando chegou em 500. O número de informações que nós tivemos que prestar em uma situação bastante precária de história, quer dizer, de registro, de banco de dados. Não temos um banco de dados. Estamos começando a formá-lo agora.


ConJur — Está nos planos do Cade, então, sistematizar essas informações?

Elizabeth Farina — É. Na verdade, precisamos digitalizar os processos do Cade para que qualquer pessoa possa fazer uma busca, saber que tipo de processo, como é que foi resolvido.

ConJur — Como a senhora avalia hoje a situação da concorrência no Brasil?

Elizabeth Farina — O ano de 2005 foi bom foi porque a gente conseguiu finalmente preencher os cargos de conselheiros, que, há alguns anos, não estavam completos. A primeira sessão de 2006 iniciou-se com os sete conselheiros. Outra coisa importante foi que nós obtivemos, a partir de várias negociações com o Executivo, o acordo de ter 30 gestores para o Cade. É um corpo permanente do órgão, e não temporário como o que temos ainda hoje. Esse concurso foi feito, os gestores estão sendo chamados para um período de treinamento e tomam posse provavelmente no começo de junho.

ConJur — Existe uma pauta de julgamentos pré-elaborada para 2006 que já começou a ser executada?

Elizabeth Farina — Não. Em razão do esforço no final do ano passado, para acelerar os julgamentos, o estoque de processos do início do ano é muito baixo. Hoje, não tem mais do que 50 processos no gabinete de cada conselheiro, sendo que a maior parte desses processos ainda estão sendo instruídos. Não estão em condição de julgamento. A pauta não se faz para o ano, e sim para cada sessão. Julgamos mais ou menos uns 30, 40 processos a cada sessão. Mas não há uma pauta para o ano, porque também você não sabe os processos que vão chegar.

ConJur — O processo da Vale do Rio Doce deve ter sido preparado com uma certa antecedência.

Elizabeth Farina — Ele ficou muito tempo na Secretaria de Acompanhamento Econômico e na Secretaria de Direito Econômico, porque era um processo que envolvia sete atos de concentração. Na verdade, você tinha sete atos de concentração difíceis de instruir e complexos. Isso veio para o Cade e foi julgado em pouco tempo. Acho que em seis ou sete meses.

ConJur — Qual é o maior processo que está nas mãos do Cade hoje?

Elizabeth Farina — Nesse momento, caso Sky Direct TV, que chegou da Anatel agora [processo 53500.029160/2004, relator Luiz Carlos Thadeu Delorme Prado].

ConJur — Está na fase de instrução.

Elizabeth Farina — Está, na verdade, na fase de conhecer a instrução que a Anatel fez e fazer a instrução complementar. Sempre há alguma coisa tem de ser complementada, porque o conselheiro tem de estar convencido. Ele precisa construir o seu convencimento para tomar uma decisão.

ConJur — Há uma preocupação do Cade neste momento de aproximar-se da comunidade jurídica? Existe um certo desconhecimento do Judiciário em relação ao trabalho do Cade ou algum problema de comunicação?

Elizabeth Farina — Sim, existe um desconhecimento. Até porque Direito Econômico não é uma matéria difundida nas faculdades. Alem disso, se você pegar no universo que o juiz enfrenta, o número de casos de Direito Econômico é muito pequeno. Quantos casos a gente julga por ano?

ConJur — Apesar da repercussão…

Elizabeth Farina — São casos de grande repercussão, mas se você pensar quantos processos tem o gabinete de um juiz. Nós estamos falando de algumas dezenas de milhares. E, aqui, falamos de 700 casos por ano. Casos complexos, de repercussão, que atraem o interesse da imprensa, da comunidade econômica. Porém, no universo do juiz, é um número pequeno. Então, além de não ter a tradição, o Direito Econômico da defesa da concorrência é recente. Mas há um esforço para aproximar o Cade do Judiciário e acho que estamos sendo bem sucedidos. Eu tenho sido reiteradamente convidada para eventos de juízes.

ConJur — Essa distância entre Judiciário e a área administrativa que regula a concorrência é privilégio brasileiro?

Elizabeth Farina — Não. O mesmo tema tem sido discutido em fóruns internacionais. Eu ouvi juízes fazerem apresentações sobre a dificuldade de decidirem questões que vêm da área administrativa na Europa. Nós que estamos liderando um estudo internacional na ICN, Internacional Competition Network, que é uma organização internacional entre os países de legislação jovem de defesa da concorrência, fazendo um levantamento de como é a relação com o Judiciário, quais são os problemas enfrentados, quais são as soluções que se tem pensado. Nós estamos nesse momento desenvolvendo esse trabalho para ser apresentado na África do Sul em maio.

ConJur — Já tem alguma constatação?

Elizabeth Farina — Não, porque nós estamos passando os questionários agora. Nós tivemos que convencer a comunidade da ICN de que esse era um tema importante. Os Estados Unidos, por exemplo, não acham um tema importante. Por quê? Primeiro, o sistema deles é muito diferente. Mas, além disso, eles têm 100 anos de tradição. A União Européia fez uma reforma muito recentemente, há menos de um ano, e ainda está em processo de reforma, porque todos os processos, ou a grande maioria dos processos decididos na área de concorrência, eram revistos no Judiciário. Portanto, um aprendizado muito grande, mas que eles já estão superando. Mesmo assim, a gente teve o apoio, nós conseguimos convencer essa comunidade, esse diagnóstico está feito entre as jurisdições mais jovens, mas vai ter a participação das jurisdições mais experientes na discussão das soluções.


ConJur — A formação do juiz nos Estados Unidos é diferente da formação no Brasil.

Elizabeth Farina — Os juízes, desde a sua formação, já tem contato com essa questão da defesa da concorrência. Então, de fato existe uma literatura, uma tradição. É um ambiente totalmente diferente do que nós temos, do que tem a Argentina, do que tem Chile, do que tem México, do que tem Portugal. É diferente. Então, essa aproximação com o Judiciário de lá é da extrema importância. Eu tenho tido contato com a Ajufe [Associação dos Juízes Federais]. Eles vão organizar eventos sobre o tema, nós vamos participar com eles. Além disso, nós adotamos algumas iniciativas junto com a Procuradoria do Cade de ter uma ação pró-ativa junto aos juízes nos casos concretos que estão sendo discutidos, quer dizer, fazendo a mesma coisa que os advogados das empresas fazem. Dialogar com os magistrados.

ConJur — Até porque desafoga bastante o trabalho do Judiciário se houver uma compreensão maior.

Elizabeth Farina — Com certeza. Agora, o ponto é que a gente quer sempre conversar com o juiz antes que ele dê uma liminar e suspenda uma decisão do Cade.

ConJur — O Brasil fez uma opção muito clara para que a decisão da instância administrativa pudesse ser revista no Judiciário. A senhora acha satisfatório esse modelo ou ele tem alguns pontos que podem ser revistos para melhorar a situação atual? Até porque existe em andamento um projeto de lei que trata da questão da concorrência.

Elizabeth Farina — Mas não vamos discutir isso. O direito de recorrer ao Judiciário é uma garantia constitucional. Na Europa, também existe também essa revisão judicial, tanto é que eles perderam tudo no Judiciário. Mesmo na França, atos administrativos são revistos.

ConJur — Existe algum modelo que impeça que se leve à Justiça as questões decididas no âmbito administrativo?

Elizabeth Farina — Eu acho que não. Até porque isso é uma questão de aprendizado institucional, de desenvolvimento mesmo das instituições. Eu acho que os juízes vão ficar cada vez mais sensíveis a esse tema, porque eles vão ter que decidir, porque a sociedade vai cobrar deles isso. Eu acho que tem que dar tempo ao tempo. A reputação de eficácia das decisões do Cade, por exemplo, vai passar por esse aprendizado e por essa relação com o Judiciário. Porque, se o Judiciário anular ou rever todas as decisões administrativas contra a defesa da concorrência, quem pratica a deslealdade não verá um risco de ser punido. Certo? Porque ele sempre poderá ficar discutindo no Judiciário. Veja as questões tributárias.

ConJur — Existe o mito de que a área administrativa é extremamente atraente para o advogado, mas ainda muito fechada. A senhora teria alguma orientação para dar aos novos advogados que querem ingressar na área? Como eles podem buscar informação, conhecimento?

Elizabeth Farina — O conhecimento começa na faculdade com a disciplina de Direito Econômico. Não sei se é uma área tão fechada. Eu sou economista, então eu não sei exatamente qual é a barreira para os advogados. Mas o que eu posso dizer é o seguinte: tem crescido muito o número de advogados que atuam na área administrativa nos últimos tempos. O primeiro trabalho que eu fiz sobre concorrência no Brasil foi escrito em 1989. Ninguém falava desse assunto aqui. Eu fiz uma pesquisa, por dois anos, patrocinada por um instituto que era financiado por empresas privadas. Quando vim para o Cade, ele era um corredor do Ministério da Justiça e havia dois ou três nomes que militavam na área. Já, hoje, há muita gente.

ConJur — Então, existe um campo enorme para ser explorado ainda?

Elizabeth Farina — Ah, isso vai crescer muito. Tanto para o advogado quanto para economista. Acho que ainda está em consolidação. E eu acho que uma sinalização é o número de interessados no nosso programa de intercambio. O Cade todo ano recebe um número grande de interessados, que a gente consegue colocar a disposição de conselheiros. Esse programa reflete esse interesse da juventude, dos jovens estudantes de aprender mais sobre esse tema.

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