Justiça Sem Papel

Justiça Federal veta parceria do Judiciário com Souza Cruz

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29 de janeiro de 2006, 6h01

O Projeto Justiça Sem Papel está suspenso até decisão definitiva em Ação Civil Pública do Ministério Público Federal. Fruto de parceria entre o Ministério da Justiça, a Fundação Getúlio Vargas e a fabricante de cigarros Souza Cruz, o projeto tem como objetivo custear e auxiliar no desenvolvimento de propostas para a modernização do Judiciário brasileiro.

O projeto havia sido suspenso em maio de 2005 por liminar do desembargador federal Antônio Souza Prudente, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. O desembargador acatou Agravo de Instrumento do Ministério Público da União contra decisão da 22ª Vara Federal do Distrito Federal. A primeira instância tinha rejeitado o pedido do MP para suspender o projeto.

Agora, a 6ª Turma do TRF da 1ª Região julgou o mérito do Agravo de Instrumento, confirmando a liminar que suspendeu o projeto. O relator no julgamento, desembargador Antônio Souza Prudente, afirmou que não há como se admitir “sem amparo constitucional e legal, a formalização de parcerias institucionais com a empresa Souza Cruz S.A., sob a gerência técnica da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas e a supervisão da juridicamente inválida Secretaria de Reforma do Judiciário” para operar o Projeto.

Souza Prudente afirmou, ainda, que o Projeto Justiça Sem Papel compromete negativamente o papel da Justiça ligando, diretamente, o nome da Souza Cruz ao programa de modernização da Justiça.

“Não tem como afastar as conseqüências letais de sua indústria de substâncias tóxicas, causadora de dependência física e psíquica, expondo milhões de pessoas, no Brasil e no mundo, a desenvolverem graves doenças incapacitantes e fatais, como o câncer, as doenças cardiovasculares e as pulmonares obstrutivas e crônicas, no que resulta a figuração da empresa Souza Cruz S.A, no polo passivo de inúmeros feitos judiciais”, diz o desembargador.

O relator concluiu seu voto defendendo que o Projeto Justiça Sem Papel não deve “envolver-se em parcerias espúrias, moralmente reprováveis e constitucionalmente repudiadas, a ponto de comprometer o bom nome, a moralidade e o magnânimo Papel da Justiça, garantido e consagrado pelos comandos da Constituição da República Federativa do Brasil, para a segurança jurídica de todos”.

O Fundo Justiça Sem Papel, lançado em novembro de 2004 com o objetivo de apoiar projetos de informatização e modernização do Judiciário, recebeu um total de 92 propostas de 20 Estados brasileiros.

AG 2005.01.00.022119-3/DF

Leia a decisão

Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDENTE

Órgão Julgador: SEXTA TURMA

Publicação: 24/01/2006 DJ p.33

Data da Decisão: 19/09/2005

Decisão

A Turma, por unanimidade, preliminarmente, indeferiu o pedido de adiamento do julgamento e afastou a possível nulidade pela falta de publicação do nome do advogado na pauta de julgamento, e, no mérito, por maioria, deu provimento ao agravo de instrumento.

CONSTITUCIONAL, PROCESSUAL CIVIL, ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. QUESTÃO DE ORDEM PRELIMINAR. REJEIÇÃO DO PEDIDO DE ADIAMENTO DA SESSÃO DE JULGAMENTO. TERMO DE COOPERAÇÃO TÉCNICA E FINANCEIRA, FIRMADO PELA “SECRETARIA DE REFORMA DO JUDICIÁRIO”, A FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS E A EMPRESA SOUZA CRUZ S/A, PARA IMPLEMENTAÇÃO DO PROJETO “JUSTIÇA SEM PAPEL”. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE, MORALIDADE, INDEPENDÊNCIA E AUTOGOVERNO DO PODER JUDICIÁRIO. POSTURA AGRESSORA DO MEIO AMBIENTE NATURAL E ÉTICO-CULTURAL.

I – Afigura-se desinfluente a ausência do nome do advogado da parte na publicação da pauta de julgamento, se o mesmo teve ciência antecedente e inequívoca da data da sessão de julgamento, através de petição apresentada, anteriormente, nos autos. Não se justifica, também o pedido de vistas e de adiamento da aludida sessão, para obtenção de cópias de peças do conhecimento das partes e sem qualquer elemento novo para a produção de sua ampla defesa, já processualmente garantida.

II – Se a Constituição da República Federativa do Brasil outorga competência expressa ao Sr. Presidente da República para expedir decretos e regulamentos somente para a fiel execução das leis (CF, art. 84, IV) e a dispor, mediante decreto, sobre a organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos (CF, art. 84, VI, a), afigura-se constitucionalmente inválida a criação de uma “Secretaria de Reforma do Judiciário”, na estrutura funcional do Ministério da Justiça, com funções gratificadas e ampla competência sobre matéria privativa do autogoverno do Poder Judiciário, mediante simples decreto presidencial (Decretos nºs 4.720/2003, 4.991/2004 e 5.535, de 13/09/2005, art. 22, incisos I a V). Somente a lei, em sentido estrito, pode inovar na ordem jurídica, criar órgãos públicos, autorizar aumento de despesa e estabelecer competências para seus agentes, com direitos e obrigações, no amparo constitucional, sendo vedada a figura do Decreto autônomo no ordenamento jurídico brasileiro, para essa finalidade.


III – Desenganadamente, o louvável “Pacto de Estado em favor de um Judiciário mais Rápido e Republicano”, com as assinaturas autorizadas dos Presidentes da República Federativa do Brasil, do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, estabelecendo metas de suma importância para a justiça brasileira, caracteriza-se como uma importante “Carta de Intenções” do Estado Brasileiro, sem força e eficácia de lei formal e material, a ponto de legitimar o inusitado “Termo de Cooperação Técnica e Financeira”, firmado pela inválida Secretaria de Reforma do Judiciário, a Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas e a empresa Souza Cruz S.A., para implementação do Projeto “Justiça Sem Papel”. Ademais, o referido “Pacto de Estado” desautoriza, expressamente, os caminhos do financiamento privado, para a modernização da justiça brasileira, quando estabelece que “sendo apresentadas, pelo Judiciário, metas de expansão de tais iniciativas, para que as fontes de financiamento sejam viabilizadas pelos Três Poderes”, evidentemente, nos lindes de suas comportas orçamentárias, harmoniza-se com as disposições dos artigos 39, §§ 2º e 7º, 95, parágrafo único, IV e 99, § 5º, da Carta Magna e os comandos do art. 5º, I, a, II e V, da Lei nº 8.472/92, no âmbito da Justiça Federal.

IV – Se a Constituição da República diz que é “vedado aos juízes receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei” (CF, art. 95, parágrafo único, IV, com a redação da EC nº 45/2004), não há como admitir-se, sem amparo constitucional e legal, a formalização de parcerias institucionais com a empresa Souza Cruz S.A., sob a gerência técnica da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas e a supervisão da juridicamente inválida “Secretaria de Reforma do Judiciário”, em que a empresa Souza Cruz pretende contribuir para o processo de modernização e reforma do Poder Judiciário, no Brasil, operacionalizando, no caso concreto, o Programa “Justiça Sem Papel”, doando recursos no valor inicial de R$ 2.450.000,00 (dois milhões, quatrocentos e cinqüenta mil reais) a comprometer, moralmente, o real “Papel da Justiça”, com o convite público para magistrados, grupos de magistrados, Tribunais e seus serventuários candidatarem-se a seus financiamentos privados, com valores individuais de até R$ 300.000,00 (trezentos mil reais), cuja receita resulta, inegavelmente, da poluidora indústria do tabaco, contrariando, frontalmente, o princípio da moralidade pública e outras vedações constitucionais expressas, sem qualquer controle ou fiscalização congressual, através do Tribunal de Contas da União (CF, art. 70, parágrafo único).

V – Há de ver-se, ainda, que o “Projeto Justiça Sem Papel” compromete, negativamente, o grandioso “Papel da Justiça”, em sua operacionalização pública, ligando, diretamente, o nome da empresa Souza Cruz S.A., como indústria do tabaco, no Brasil, ao programa de modernização da Justiça, a viabilizar, na instrumentalidade da própria atuação judicial perante a sociedade brasileira, técnicas sutis de propaganda e mensagens subliminares do tabagismo, alimentador de suas receitas, que, mesmo submetidas ao pagamento dos tributos devidos (posto que o fenômeno tributário se abstrai da capacidade das pessoas, da irregularidade e restrições legais das suas atividades civis e comerciais ou da ilicitude de seus bens e negócios – CTN, art. 126, incisos II a III – em face de sua natureza objetiva), não tem como afastar as conseqüências letais de sua indústria de substâncias tóxicas, causadora de dependência física e psíquica, expondo milhões de pessoas, no Brasil e no mundo, a desenvolverem graves doenças incapacitantes e fatais, como o câncer, as doenças cardiovasculares e as pulmonares obstrutivas e crônicas, no que resulta a figuração da empresa Souza Cruz S.A, no polo passivo de inúmeros feitos judiciais.

VI – Se a Constituição Federal garante os meios legais à pessoa e à família para se defenderem da propaganda de produtos, práticas e serviços, que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente e diz que a propaganda comercial do tabaco estará sujeita a restrições legais e conterá, sempre que necessário, a advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso (CF, art. 220, II, § 4º) e se essa medida de precaução se harmoniza com os objetivos da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, de que é signatário o Brasil, com mais diversos países, no cenário mundial, visando deter a expansão global do consumo do tabaco e de suas conseqüências destrutivas para a vida humana, estabelecendo, como uma das obrigações dos países signatários, a proteção das políticas nacionais contra os interesses da indústria do tabaco, não será possível, sob o ponto de vista ético, legal, constitucional e das relações decorrentes do direito internacional público, a justiça brasileira adotar um “Projeto de Modernização” totalmente financiado pela indústria tabagista, contribuindo, assim, em seus eventos, workshops e seminários promocionais, com o “patrocínio do tabaco”, promovendo, de forma direta e indireta, sua produção e consumo, inteiramente nocivo à saúde dos seres vivos.


VII – Se a Constituição da República, no âmbito normativo da tutela cautelar do Meio Ambiente, ecologicamente equilibrado, impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente” (CF, art. 225, § 1º, V), enquanto a Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, ao dispor sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, tem, como objetivo principal, a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida (art. 2º, caput), considerando, como degradação da qualidade ambiental, a alteração adversa das características do meio ambiente e, como poluição, a degradação da qualidade ambiental, resultante de atividades que direta ou indiretamente, prejudiquem a saúde e o bem-estar da população, definindo como poluidor, a pessoa física ou jurídica de direito publico ou privado responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental (art. 3º, incisos II, III, a e IV), visando, assim, “a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico” (art. 4º, I), há de se entender porque as atividades relativas à indústria do fumo ou de fabricação de cigarros/charutos/cigarrilhas e quaisquer outras de beneficiamento do fumo hão de submeter-se a rigorosas restrições legais, não sendo admissível à indústria do tabaco, aqui, representada pela empresa Souza Cruz S.A., pretender financiar o processo de modernização do Poder Judiciário, no Brasil, como forma indireta de blindagem promocional dessa indústria tabagista, legalmente reprovável, quando o rigoroso papel da Justiça é proteger a vida.

VIII – Nesse contexto, a Fundação Getúlio Vargas, como uma instituição respeitável, no campo da pesquisa e do ensino científico e, tendo como uma de suas finalidades estatutárias, “contribuir para a formulação da política nacional de proteção ao meio ambiente, compatibilização com o desenvolvimento global sustentável”, apresenta-nos um flagrante paradoxo finalístico-institucional, nessa malsinada parceria com a indústria do tabaco, sem nenhuma justificativa legal ou moral na escolha da empresa Souza Cruz S.A. para os objetivos aparentemente visados.

IX – O Poder Judiciário, no cumprimento de sua grandiosa missão constitucional de tutelar direitos (CF, art. 5º, caput e XXXV), a serviço da vida (CF, art. 5º, caput, e 225, caput) há de portar-se, no meio social, com eficiência e moralidade, independência e honradez, na oportuna e eficaz distribuição da Justiça (CF, art. 37, caput), evitando, sempre, a receptação de “oferendas” financeiras do setor privado, ainda que se lhe apresentem com a máscara dos propósitos mais nobres e socialmente justificáveis, a não revelar a real intenção de “caridosos doadores”, no arranjado convívio com os operadores da Justiça.

X – A postura ético-cultural do Poder Judiciário (CF, art. 216, incisos I e II) encontra amparo na garantia constitucional da independência e harmonia entre os Poderes (CF, art. 2º) na força normativa dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (CF, art. 37, caput) e nos limites legais de seu autogoverno na gestão administrativa e financeira (CF, art. 99, §§ 1º a 5º), que lhe outorgam as comportas orçamentárias do erário público.

XI – Resolve-se, finalmente, na simples conclusão de que o almejado “Projeto Justiça Sem Papel” não deve envolver-se em parcerias espúrias, moralmente reprováveis e constitucionalmente repudiadas, a ponto de comprometer o bom nome, a moralidade e o magnânimo “Papel da Justiça”, garantido e consagrado pelos comandos da Constituição da República Federativa do Brasil, para a segurança jurídica de todos.

XII – Deu-se provimento ao agravo de instrumento, para sobrestar a execução do projeto intitulado “Justiça Sem Papel”, a que alude o “Termo de Cooperação Técnica e Financeira”, firmado pela “Secretaria de Reforma do Judiciário”, a Fundação Getúlio Vargas e a empresa Souza Cruz S.A., até o julgamento definitivo do pleito, no processo principal, declarando-se, em conseqüência, prejudicados os agravos regimentais, constantes dos autos.

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