Medidas penais

Pesquisador mapeia a história do sursis no Direito Penal

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27 de janeiro de 2006, 11h53

Rafael Mafei Rabelo Queiroz, pesquisador de História do Direito na Escola de Direito de São Paulo da FGV, defendeu no Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP a dissertação de mestrado intitulada Sursis e Livramento Condicional, 1924-1940: a modernização do Direito Penal Brasileiro.

O trabalho é uma investigação histórica sobre a implementação de dois importantes institutos de sistema de penas do Brasil: o sursis (suspensão condicional da pena) e o livramento condicional. Segundo Rafael Queiroz, “ambos os institutos são comumente associados à diminuição dos rigores do Direito Penal, por serem medidas que eliminam ou encurtam o encarceramento”. Ao contrário disso, sustenta o autor, trata-se de “instrumentos utilizados para a construção de um sistema de controle social mais refinado, seletivo e, principalmente, legitimado pelos padrões de ciência de seu tempo”.

O objetivo da pesquisa, conta Queiroz, foi verificar “se o sentido por trás da implementação de ambos os institutos teria sido, de fato, o de minimização do Direito Penal, algo que eu desconfiava não ser verdade. Minha desconfiança vinha do fato de esse dois institutos fazerem parte de um mesmo ‘pacote de reformas’ do Direito Penal (as reformas positivistas) que continha medidas extremamente severas, como a prisão perpétua e a pena de morte”.

Leia a entrevista

ConJur — Qual a relevância de seu estudo?

Rafael Queiroz — A relevância do trabalho está, a meu ver, na leitura e estudo de penalistas brasileiros das décadas de 1920 e 1930 que, por não terem entrado para o “cânone” dos penalistas clássicos, ficaram esquecidos por nossa historiografia jurídica. É o caso de Astolpho Rezende, Esmeraldino Bandeira e João Luiz Alves. Meu contato com suas obras se deu por terem sido estes alguns dos membros das comissões legislativas responsáveis pela regulamentação do sursis e do livramento condicional no Brasil. Ou seja, foi um trabalho que buscou as fontes, com o fim de descobrir o quê, afinal, se passava pela cabeça dos juristas que lutaram pela consagração desses dois institutos no Brasil.

ConJur — O que você descobriu?

Rafael Queiroz — As descobertas foram surpreendentes. Longe de serem medidas de diminuição da força do Direito Penal, as fontes pesquisadas mostram que sursis e livramento condicional foram, ao contrário, instrumentos utilizados para a construção de um sistema de controle social mais refinado, seletivo e, principalmente, legitimado pelos padrões de ciência de seu tempo — e a legitimação é possivelmente o mais importante requisito para a eficiência de um sistema de controle social. É por isso, aliás, que digo no título do trabalho que se tratou da modernização do Direito Penal brasileiro: as medidas penais positivistas, entre as quais sursis e livramento condicional foram a substituição do velho Direito Penal iluminista (então visto como cientificamente ultrapassado) por uma nova disciplina conforme aos padrões epistemológicos da época.

ConJur — Como era visto o sursis?

Rafael Queiroz — A forma de atuação do sursis e do livramento nessa modernização e fortalecimento do Direito Penal brasileiro, ao menos segundo vislumbrado por seus criadores, era a seguinte: o sursis, por ser um mecanismo de eliminação das penas de curta duração, era utilizado como um “fator de calibração” do Direito Penal, ao garantir que só os homens tidos como “maus” fossem levados à prisão. Nos anais do Senado, encontrei um caloroso debate entre os senadores Benjamin Barroso e Adolpho Gordo (aquele das leis de expulsão de imigrantes) em que ambos concordavam que o sursis jamais poderia ser concedido a “homens maus”, mas apenas a “homens bons” que, por um desvio único no curso de suas vidas, cometessem um crime. Não é preciso dizer que, no ambiente aristocratizante da época, esse juízo de bondade/maldade era inteiramente pautado por critérios políticos ou sócio-econômicos. Esmeraldino Bandeira, o grande defensor do instituto no Brasil (quando fora deputado em 1906, já apresentara projeto para sua adoção, que não vingou), dizia, por exemplo, que os maiores rigores do Direito Penal tinham de ser guardados para os crimes que visassem ao menor benefício material. A citação é um pouco longa, mas é por demais esclarecedora para ser omitida:

“O indivíduo que não trepida em arriscar a sua reputação e sua liberdade na prática de um roubo de pequeno valor, por certo que não vacilará em arriscá-los para a execução de um roubo ou um furto de valor maior. Apropriou-se de pouco porque não se pode apropriar de muito. Mais intrinsecamente criminoso é o homem que delinqüe por um motivo de pequena importância material do que aquele outro que só a perspectiva de uma grande fortuna o fará delinqüir. Em hipóteses semelhantes, a verdadeira proporção a observar entre o crime e a pena é a proporção inversa: quanto menor a gravidade material do delito, tanto maior a gravidade legal da pena”.

Ou seja, à pequena criminalidade de rua, todos os rigores da pena; aos grandes desvios de verba, a complacência do sursis.

ConJur — O que as autoridades achavam disso?

Rafael Queiroz — O ministro do Supremo Tribunal Federal Firmino Whitaker, por exemplo, dizia que o juiz, para a concessão da medida, deveria analisar detidamente as condições de criação do condenado, o ambiente em que viveria após sua eventual libertação, a presença da miséria em seu entorno, sua educação e a de seus genitores, entre outros tantos “indicadores sócio-econômicos” — o que era um tanto mais absurdo se se levar em conta que a Constituição de 1891, a mais liberal que tivemos até hoje, silenciava em absoluto sobre direitos sociais. Assim, o sursis veio como uma forma de corrigir as distorções do sistema penal: quando alguém que não fosse habitué do sistema terminasse capturado pelas instâncias formais de controle (o que já era uma raridade), teria a execução de sua pena suspensa por não ser “mau” como o sujeito que comete um furto de pequeno valor, permitindo assim que o controle penal continuasse a agir com toda a força sobre os pequenos desvios de conduta das camadas mais pobres da população (mais de 80% das ocorrências policias da época eram por contravenções).

ConJur — E o livramento condicional?

Rafael Queiroz — O livramento condicional, por sua vez, servia como prolongamento do vínculo com a Justiça Penal. Para entender como isso se dava, é preciso ter em mente duas características do pensamento penal positivista:

(1) idealmente, a pena não deveria ter duração pré-determinada. Se o criminoso é um anormal, a pena é um tratamento para essa anormalidade, e deve cessar quando ela desaparecer. A escala de penas que atribui a cada crime uma pena maior ou menor a priori é, para um positivista, absurda, pois pode levar um “normal” à prisão, ou — o que é mais grave — permitir a saída prematura de um anormal que ainda não esteja plenamente “curado” para o convívio social; e

(2) os positivistas tinham verdadeiro fetiche pela reincidência, pois essa seria a melhor demonstração de impossibilidade de recuperação social do criminoso.

ConJur — Então como viam a “pena perfeita”?

Rafael Queiroz — Por tudo isso, a pena ideal seria aquela que não tivesse duração determinada (defendeu-se muito à época o instituto das penas indeterminadas), e que permitisse a vigilância do egresso após a sua aparente “cura”, a fim de se certificar de que ele estaria de fato recuperado. Como as penas perpétuas eram constitucionalmente proibidas (pelas constituições de 1934 e 1937), o instituto do livramento veio para flexibilizar o tempo de saída do condenado (que poderia sair antes, desde que aparentasse estar “curado”), mas que seria constantemente vigiado após a sua saída. Ou seja, no sistema anterior, o Direito Penal perdia controle sobre o egresso no instante em que ele cumprisse a pena devida; com o livramento, possibilitou-se que, mesmo tendo cumprido a pena devida (ou seja, o necessário para sua “recuperação”), a vigilância sobre o apenado perdurasse para além de sua estada na prisão. Como se vê, é um trabalho que deu aos dois institutos uma interpretação completamente diferente da atual, e permite uma leitura inclusive para além dos institutos pesquisados. Vistas assim, as medidas de eliminação da prisão tem o benefício de reduzir a incidência do encarceramento (que, todos sabemos, tem efeitos deletérios significativos), mas permite a construção de um mosaico de respostas penais que contem medidas de todos tamanhos e intensidades, capazes de intervir em quase qualquer conflito social — o que é ruim, pois a intervenção penal é uma péssima resposta para conflitos sociais, pois os suprime, mas não os resolve. Ou seja, é uma forma de alargar o cabimento de uma medida de intervenção social (o Direito Penal) que, ano após ano, década após década, tem se mostrado um fracasso retumbante.

ConJur — Não se trata, então, de diminuir a força do Direito Penal.

Rafael Queiroz — Longe de criar um Direito Penal mais comedido, tais institutos (juntamente com penas alternativas, suspensão do processo, transação penal, etc.) aumentam o leque de medidas penais, tornando-o apto para presidir conflitos que deveriam ser dirimidos por outros agentes do estado que não delegados de polícia. E isso muitas vezes implica desproporicionalidade e ineficiência, pois o Direito Penal não é, repito, hábil para resolver de forma satisfatória a maior parte dos problemas para os quais costuma ser convocado. Termino com uma frase do Lima Barreto, registrada nessa mesma época em seu Diário Íntimo, em que essa superlatividade inútil do Direito Penal é denunciada — com o costumeiro sarcasmo que marcou a sua obra: “Há meses inaugurou-se iluminação elétrica em uma tal cidade. Para evitar desastres pessoais dou-vos o seguinte aviso junto aos dínamos de alta voltagem, os transformadores, etc.: ‘Perigo: quem tocar nesses fios será fulminado. Pena de prisão e multa para os contraventores’”.

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