Triângulo amoroso

Justiça nega união estável mas reconhece direitos de amante

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26 de janeiro de 2006, 6h00

O Judiciário brasileiro não tem reconhecido união estável no caso de mulher que se relacionou por longo período com homem casado, porém reconhece direitos econômicos da concubina, por dever de solidariedade entre parceiros.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul divulgou duas decisões neste sentido, recentemente. No último caso, a 7ª Câmara Cível do TJ gaúcho, em julgamento de recurso de concubina, fixou o pagamento de indenização de R$ 1 mil para cada ano de convívio que um homem casado manteve com ela. Eles se relacionaram durante 18 anos. Ao longo da relação extraconjugal, o parceiro jamais se separou da mulher com quem estava casado.

A amante entrou com ação contra o homem pedindo reconhecimento de união estável, indenização por serviços prestados, pensão alimentícia e a partilha do patrimônio desde o início da relação concubinária até a data do rompimento.

Segundo o relator do processo, desembargador José Carlos Teixeira Giorgis, não se trata de monetarização da relação afetiva, mas cumprir o dever de solidariedade, “evitando o locupletamento indevido de um sobre o outro, à custa da entrega de um dos parceiros”. Acrescentou que a indenização confere eficácia ao princípio da dignidade da pessoa humana.

De acordo com Giorgis, a mulher cometeu confusão ao denominar o vínculo que manteve com o homem, existindo apenas relação de concubinato e não união estável. Registrou que, diante da condição de casado do homem perante a lei, não se configura união estável entre as partes, mas o chamado “concubinato impuro” ou “adulterino”.

O desembargador, no entanto, entendeu incabíveis os pedidos de alimentos e de partilha de bens, por não ter havido comprovação de dependência econômica da autora, nem de que foram adquiridos bens patrimoniais com conjugação de esforços.

A desembargadora Maria Berenice Dias, que teve seu voto vencido, argumentou não haver como deixar de conceder à autora 25% do patrimônio durante o período de convivência. Declarou que, em 35 anos de magistratura, ainda não possui a capacidade de fazer desaparecer união que de fato existiu. “Negar efeitos jurídicos é deixar de fazer justiça”, asseverou.

Outro caso

Em janeiro deste ano o TJ gaúcho divulgou decisão também da 7ª Câmara Cível do tribunal que fixou indenização de R$ 10 mil a uma ex-amante.

O casal viveu junto de 1975 a 1987, enquanto o parceiro foi casado com outra pessoa. Depois, mantiveram união estável de 1987 a 1992. Com o fim da união, ela ajuizou ação pedindo indenização pelo período em que ele manteve outro casamento.

Segundo o desembargador José Carlos Teixeira Giorgis, relator da matéria, “não se trata de monetarizar a relação afetiva, mas cumprir o dever de solidariedade, evitando o enriquecimento indevido de um sobre o outro, à custa da entrega de um dos parceiros”, justificou.

Processo 70.011.093.481

Leia a decisão

DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO. UNIÃO ESTÁVEL. CONFUSÃO CONCEITUAL.

Apesar da confusão conceitual da parte envolvendo os institutos da sociedade de fato e da união estável, não há óbices para que seja examinada a situação fática descrita na inicial com o intuito de enquadrá-la corretamente à lei, desde que não existam dúvidas acerca das pretensões deduzidas pela autora, voltadas para o reconhecimento de um vínculo “afetivo” com o demandado.

ANÁLISE DA PROVA. CARACTERIZAÇÃO DO CONCUBINATO.

A relação extraconjugal, quando o casamento persiste e o homem se mantém com a esposa e filhos, não constrói união estatuída pela Constituição, pois o sistema brasileiro é monogâmico e não admite concurso entre entidades familiares. Caracterização do denominado concubinato “impuro”, ou também chamado de “adulterino”.

CONCUBINATO. PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR SERVIÇOS PRESTADOS, À PARTILHA DE PATRIMÔNIO E A ALIMENTOS.

Não é razoável deixar ao desamparo a companheira de mais de uma dezena de anos, o que representa locupletamento à custa do afeto e dedicação alheia, sendo cabível estimar-se indenização correspondente ao tempo de convivência. Todavia, quanto ao alegado direito à partilha e a alimentos, ausente prova de que, durante a relação, bens patrimoniais foram adquiridos pelos conviventes em comunhão de vontades e conjugação de esforços, bem como em relação à existência de uma dependência econômica da autora da demanda para com o demandado, não há como reconhecê-los.

Apelação parcialmente provida, por maioria.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, em dar provimento, em parte, ao recurso, vencida a Presidente.


Custas na forma da lei.

Participou do julgamento, além dos signatários, o eminente Senhor DESA. MARIA BERENICE DIAS (PRESIDENTE) E DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS.

Porto Alegre, 13 de julho de 2005.

DES. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS,

Relator.

DESA. MARIA BERENICE DIAS,

Presidente – Voto vencido.

RELATÓRIO

DES. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS (RELATOR)

DEMANDA – Cuida-se de apelação interposta por L. Q., inconformada com a sentença prolatada às fls. 210/221, onde foram julgados improcedentes os pedidos formulados na inicial, sendo extinto o feito com fulcro no inciso I do artigo 269 do Código de Processo Civil.

RAZÕES RECURSAIS – Nelas (fls. 224/229), a apelante afirma, num primeiro momento, que viveu maritalmente com o demandado por aproximadamente dezenove (19) anos, convivência, esta, que sempre foi pública, notória e de forma contínua. Assim, entende que restou comprovada a “união estável entre as partes”. Na seqüência, tece considerações acerca da prova produzida no feito, sustentando que a “relação entre a recorrente e o recorrido enquadra-se perfeitamente no concubinato”. Dessa forma, salienta que faz jus a uma indenização e/ou pensão alimentícia “pelos longos anos de trabalho para o recorrido”, a um “partilhamento dos acréscimos patrimoniais decorrentes desde o início da relação concubinária, até a data de seu rompimento”, bem como, pelos mesmos motivos, e em virtude dos “sérios problemas de saúde que apresenta”, os quais impedem de prover o seu sustento, alega que tem direito à pensão alimentícia. Com tais aportes, pede o provimento da apelação.

CONTRA-RAZÕES – O recorrido pugna pelo improvimento (fls. 233/240).

MINISTÉRIO PÚBLICO – Em ambas as instâncias (fls. 242/247, 249/257), manifesta-se pelo conhecimento e desprovimento do recurso.

Foi cumprido o disposto no art. 551, § 2º, do CPC.

É o relatório.

VOTOS

DES. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS (RELATOR)

Com o presente recurso, pretende a demandante o reconhecimento de situação fática e jurídica advinda do período de convivência que manteve com o demandado, a fim de que lhe sejam conferidos direitos à indenização “pelos longos anos de serviços prestados” para o recorrido, à partilha de bens e a alimentos.

Nas razões de apelo, porém, a apelante incorreu em confusão ao denominar o vínculo que manteve com o réu. Enquanto num primeiro momento afirmou que a “união estável” entre as partes havia restado comprovada (fl. 224), a seguir, após uma análise dos elementos de prova, esclareceu que “a relação entre a recorrente e o recorrido enquadra-se perfeitamente no concubinato”.

Apesar da confusão conceitual da parte – aliás, também existente se cotejado o teor da inicial e da réplica com o do arrazoado – saliento que não há óbices para que seja examinada a situação fática descrita na inicial com o intuito de enquadrá-la corretamente à lei. Isso porque, em nenhum momento restaram dúvidas acerca das pretensões deduzidas pela autora, voltadas, abstraindo o mérito dos pedidos que na seqüência serão analisados, para o reconhecimento de um vínculo “afetivo” com o demandado.

A propósito, em situação semelhante, onde o autor da demanda também havia incorrido na confusão conceitual que ora é evidenciada, decidiu o Colendo Quarto Grupo de Câmaras Cíveis desta Egrégia Corte, de relatoria do ilustre Des. Luís Felipe Brasil Santos:

“EMBARGOS INFRINGENTES. SOCIEDADE DE FATO E UNIÃO ESTÁVEL. CONFUSÃO CONCEITUAL NÃO GERADORA DE INÉPCIA DA INICIAL. É CERTO QUE OS CONCEITOS DE SOCIEDADE DE FATO E DE UNIÃO ESTÁVEL SÃO DISTINTOS. O PRIMEIRO É DE DIREITO OBRIGACIONAL, ENCONTRANDO SEU FUNDAMENTO NO ART. 1.363 E SEGUINTES DO CÓDIGO CIVIL, E NO ENUNCIADO 380, DA SÚMULA DO STF. O SEGUNDO, E DE DIREITO DE FAMÍLIA, CRIADO QUE FOI COM A CONSTITUIÇÃO DE 1988, E POSTERIORMENTE REGULAMENTADO PELAS LEIS 8.971/94 E 9.278/96. ENTRETANTO, E INDISPENSÁVEL LEMBRAR QUE ATÉ A EDIÇÃO DA NORMA CONSTITUCIONAL DE REGÊNCIA (ART. 226, P. 3º.), TODA A MATERIA ATINENTE AS RELAÇÕES FÁTICAS ENTRE HOMEM E MULHER ERA VERSADA NA PERSPECTIVA DA SOCIEDADE DE FATO, O QUE ACABOU POR GERAR A EDIÇÃO DO ENUNCIADO SUMULAR N. 380/STF. MESMO APÓS, O REGRAMENTO CONSTITUCIONAL DA UNIÃO ESTÁVEL, QUE TROUXE A MATÉRIA PARA O ÂMBITO DO DIREITO DE FAMILIA (O QUE NESTE TRIBUNAL FOI AFIRMADO A PARTIR DA SUMULA N. 14), SOB A DENOMINACAO DE “UNIAO ESTAVEL”, A ANTIGA PRAXE FORENSE DE DENOMINAR TAIS AÇÕES COMO DE “DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO” PERSISTIU, E AINDA HOJE SE MANTEM, NA IMENSA MAIORIA DAS AÇÕES DESSA ESPÉCIE. O QUE OCORRE E UMA MERA CONFUSÃO CONCEITUAL, QUE NÃO PREJUDICA, DE NENHUM MODO, A CLAREZA DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL RECLAMADA. OS ANTIGOS ROMANOS PROCLAMAVAM: DA MIHI FACTUM, DABO TIBI JUS. ASSIM E, COM EFEITO, AINDA HOJE: A PARTE CUMPRE EXPÔR OS FATOS, AO JUIZ CABE DIZER O DIREITO APLICÁVEL. E, NO CASO, OS FATOS ESTÃO SUFICIENTEMENTE EXPLANADOS, E FORAM OBJETO DE AMPLA DILAÇÃO PROBATÓRIA, ONDE EM NENHUM MOMENTO SE ESTAMPOU PERPLEXIDADE QUANTO A REAL PRETENSÃO EM JOGO. ACOLHERAM EM PARTE OS EMBARGOS.(EMBARGOS INFRINGENTES Nº 70004159406, QUARTO GRUPO DE CÂMARAS CÍVEIS, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS, JULGADO EM 11/10/2002)


Dito isso, quanto ao mérito da pretensão propriamente dito, verifico que em parte assiste razão à apelante.

A solução para a controvérsia, num primeiro instante, reside no exame da caracterização do vínculo entre a apelante e o apelado. E sobre ele, tanto na sentença como no parecer do Ministério Público nesta instância restou bem destacado que, entre as partes que ora litigam, existiu apenas uma relação de concubinato.

Em primeiro lugar, observa-se que a relação posta à analise durou, de fato, longos anos. As fotos juntadas às fls. 10/21 e as missivas acostadas às fls. 22/30, cotejadas com o teor das declarações do próprio réu (fl. 112 e verso) e das testemunhas, Adi (fl. 113 e verso), Vilmar (fl. 114), Almir (fl. 114v), Sandra (fl. 115 e verso), Márcia (fl. 144), Rosmeri (fl. 151 e verso), Gilberto (fl. 152) e Maria (fl. 152v), comprovam que houve um vínculo afetivo entre as partes.

Todavia, apesar de a relação ter adquirido certa notoriedade, já que não foram poucas as testemunhas que afirmaram que A. e L. viviam como se casados fossem, ocorre que o demandado, durante o lapso em que “conviveu” com a autora, possuía outra família, com esposa e filhos.

Dita circunstância encontra-se devidamente atestada nos autos por meio das certidões juntadas às fls. 61/63, além das fotos das fls. 64/67.

Aliás, a apelante sabia que A. tinha outra família. Naquilo que pertine: “A depoente sabia que o requerido possuía outra família. (…) A depoente relata que, no início, tinha conhecimento de que o requerido era casado, e este lhe dizia que iria largar a família para ficar com ela. A autora, porém, dizia que não queria que o requerido fizesse isso” (fl. 111).

E ao longo deste período, convém frisar, não há nada nos autos indicando que o apelado esteve separado de fato de sua esposa legítima.

As testemunhas, Dari (fl. 163), Arcilda (fl. 164v) e Ivanir (fl. 165), relataram que A. sempre morou com a esposa e os filhos.

O próprio réu, a propósito, ao final de suas declarações, consignou que “permitia que a autora tivesse outros amantes, pois não podia ficar com ela, porque era casado” (fl. 112v).

Sobre o tempo de duração do relacionamento que manteve com a autora, A. esclareceu que foi por aproximadamente dezoito (18) anos, circunstância que, de certa forma, restou corroborada por L. ao afirmar que nos últimos dezenove (19) anos foi sustentada pelo apelado.

Logo, diante da condição, perante a lei, de “casado” do apelado, e do fato de, ao longo do período da relação extraconjugal, jamais ter se separado de sua esposa, não há falar na configuração de união estável entre as partes, por força de expressa vedação prevista no artigo 1723, parágrafo 1.º, do Código Civil.

Assim, caracterizado, está, o denominado “concubinato impuro”, ou também chamado, “adulterino”.

Como disse em ocasião anterior: “A relação extraconjugal, quando o casamento persiste e o homem se mantém com a esposa e filhos, não constrói união estatuída pela Constituição, pois o sistema brasileiro é monogâmico e não admite concurso entre entidades familiares. Não se trata de punição à infidelidade, mas no perecimento do objeto de constituir família pelo desvio do preceito legal, apenas acontecendo o implemento da condição com a separação de fato ou outro fator objetivo de ruptura afetiva” (Apelação cível n.º 70004832176 – julgado em 05/11/2002).

Estabelecido, pois, o caráter real do vínculo entre as partes, passo ao exame dos pleitos específicos formulados pela apelante.

No que tange ao pedido de partilha de bens, verifico que a apelante não se desincumbiu do ônus de provar o fato constitutivo do direito que alegou.

Em nenhum momento L. trouxe elementos que pudessem atestar que, durante a relação, bens patrimoniais foram adquiridos pelo casal em comunhão de vontades e conjugação de esforços.

A propósito, circunstância que merece destaque é a ausência de correlação entre o conteúdo de parte da inicial com o teor de trecho das declarações prestadas pela autora da demanda.

Na inicial, foi consignado que, “quando do início da relação concubinária, a demandante trouxe um imóvel, matriculado sob nº 3673, do Registro de Imóveis da Comarca de Horizontina, em anexo, imóvel este que foi vendido para aquisição de um reboque de caminhão” (fl. 05). Note-se: segundo a exordial, foi a ora apelante, exclusivamente, quem trouxe ao patrimônio do casal o imóvel que, posteriormente, teria sido vendido para a aquisição de um reboque de caminhão.

L., entretanto, disse em audiência que “adquiriu, juntamente com o requerido, o imóvel cuja certidão consta das fls. 32/33”; nada referiu sobre a aquisição de um reboque e, ao mesmo tempo, acabou por contrariar, diretamente, dado descrito na inicial, de que o imóvel era seu.


Em suma, não há razão fática e jurídica a embasar o pedido de partilhamento de bens.

No que toca ao pedido de alimentos, também não merece melhor sorte a apelante.

O conjunto probatório não revelou, de modo suficiente, a existência de uma dependência econômica de parte da autora para com o apelado.

Não há dúvidas de que ao longo dos anos de convivência do casal, a apelante acompanhou o réu em diversas viagens de caminhão nas quais sempre foi amparada financeiramente.

No entanto, não há provas no sentido de indicar que, quando não viajava com o demandado, a apelante vivia exclusivamente de quantias recebidas por A., circunstância que não permite descartar a hipótese de que L. tinha pelo menos outra fonte de renda. Afinal, a apelante, como afirmou em audiência, durante o lapso do relacionamento residiu em diversas cidades do País, o que faz crer na existência de uma segura fonte de renda em seu favor, que bem pode advir do ex-marido (fls. 92/93), pai de sua filha mais velha (fl. 90), e de D. L. B., genitor de sua filha mais nova (fl. 89). Todavia, com razão à apelante ao postular pedido de indenização.

É consabido que antes da Constituição vigente, a relação concubinária se resolvia com a partilha de bens ou com a imprópria demanda de indenização por “serviços”, mal definidos e inadequados para uma relação. Com a instituição da união estável, passou-se a desprezar o último tipo de pleito que, todavia, voltou à cena depois que passou a vigorar o novo credo civil, que criou a esdrúxula figura do “Concubinato”, prescrito no artigo 1.729 do Código Civil.

A respeito, peço vênia para transcrever artigo incluso na obra coletiva “Questões Polêmicas em Direito de Família e Direito das Sucessões”, sob o título “A concubina desamparada”, onde adoto a hipótese que agora vou consagrar neste caso concreto:

“A proteção jurídica da união livre teve como obstetras o amadurecimento da sociedade, a elaboração dos pensadores e a arquitetura dos julgados, que de forma gradual e insinuante pulverizaram os contrafortes do preconceito, desobstruindo a abjeção infamante e sepultando a ignomínia.

Então remetida às vastidões do subúrbio ou ao exílio dos cortiços, também às orelhas dos riachos, a mulher avulsa que prestava o preito da servidão na alfândega dos sentimentos veio ganhando dignidade, erguendo-se do anátema, libertando-se do opróbrio, conquistando a consideração da lei.

Antes que os constituintes escrevessem a carta das garantias civis, a concubina que vivesse algum tempo com um homem, e se fala no feminino pelo apreço cultural, caso contribuísse de forma direta na aquisição de algum cabedal, quando separada e reconhecido seu estado, poderia recolher a fração correspondente ao seu esforço, tal como acontecida entre os integrantes de uma sociedade, mas no âmbito do direito das obrigações; noutra linha, e ao desabrigo, demandava pelo pagamento de seus serviços domésticos, aceitando indenização por cama, mesa e banho, quando não era empregada, sequer messalina, ridículo estipêndio que atribuía um salário mínimo por ano de convivência.

Depois de oitenta e oito erigiram-se as novas entidades familiares, e o concubinato subjacente transmudou-se em união estável, agora com as galas de instituto e honras de salvaguarda.

Nasce o direito a alimentos, e a partição dos bens com a bênção alcunhada de “contribuição indireta”, forma de equilibrar a divisão dos acervos, e endereçada à companhia da casa, proteção, paz, cuidados com a prole, fatores que permitiam ao varão, lá fora, aquinhoar-se e entesourar.

Segue regulamento que alarga os benefícios, já não apenas a pensão alimentícia e o direito à meação, mas também acesso à herança com vocação hereditária e plenitude de partilha, além do usufruto da quarta parte dos bens, embora se limitando tais prerrogativas ao cumprimento de um período mínimo cinco anos de coabitação e vida notória.

Após a provisão, ainda sustentada pela constante fotografia jurisprudencial, vem outro edito repetindo no rol de haveres do companheirismo os alimentos, direitos patrimoniais segundo o regime da comunhão parcial caso não houvesse pacto, usufruto dos bens e mais o direito real de habitação para manter a moradia no ninho ferido pelo decesso do parceiro, inexigência de prazo para a declaração do fato, possibilidade de conversão ao casamento e competência das varas de família para deslinde das controvérsias: foi o apogeu, olhado com inveja pelos que optavam pelo matrimônio.

A pletora de direitos, contudo, sofreu cirurgia reparadora no novo catálogo civil, que mouco à fecundação doutrinária e pretoriana, restringiu os direitos patrimoniais e sucessórios apenas patrimônio havido na relação, e em concorrência com descendentes e parentes sucessíveis, introduziu a verificação da culpa para a obrigação alimentar, extinguiu o usufruto vidual, talvez o direito real de habitação, criando a extravagante figura do “concubinato”, consistente em contatos não eventuais entre homem e mulher, impedidos de casar, a que se vedam quaisquer garantias no âmbito da união estável.

Assim como antes ocorria com o concubinato impuro ou adulterino, sem direitos quando um dos membros da parelha ainda se mantinha no lar conjugal, o que afrontava a monogamia, é nebuloso o destino dos concubinos, já que as novas prescrições civis alteraram o conteúdo da sociedade de fato, o que os deixará ao desamparo.

Desta forma, oclusas as portas da união estável e comprometidas as fechaduras da sociedade de fato, é bom lembrar-se que a censurabilidade do adultério não há de conduzir a que se locuplete com o esforço e o afeto alheios exatamente quem deles se beneficia.

A vida moderna e a evolução dos costumes, inclusive no casamento, recomenda o exame dos efeitos da relação clandestina ao matrimônio, principalmente quando se espicha por longos anos e tem publicidade, onde a cicatriz criminal da bigamia deve impor sanção civil a quem o pratica.

Agora sem acesso aos alimentos ou patrimônio, salvante a relação putativa, é justo que os julgadores reexaminem, como no passado, a possibilidade do concubino usufruir indenização pela vida em comum, em patamares razoáveis pelo tempo de duração, em prestígio ao princípio da dignidade da pessoa humana, tal como recomenda o epicentro constitucional”.


Não se trata de monetarizar a relação afetiva, mas cumprir o dever de solidariedade, evitando o locupletamento indevido de um sobre o outro, à custa da entrega de um dos parceiros.

Diante de tais aportes, caracterizada a relação de concubinato, fixo uma indenização no valor de mil reais (R$ 1.000,00) para cada ano de convívio – dezoito (18) anos, período que não foi contestado pelas partes – considerada a situação dos demandantes e a natureza da ação.

Não obstante, a apelante notícia, no arrazoado, que o recorrido, até o momento, não liberou a sua Carteira de Trabalho, assinada por ele (fl. 117 e verso). No entanto, dita circunstância não merece ser debatida nesta esfera de jurisdição por implicar, justamente, em mero desdobramento de uma relação trabalhista.

Nesse mesmo sentido:

“Apelação cível. Indenização. União estável. Reconhecida a existência de união estável entre homen e mulher, não se defere indenização por serviços prestados. Eventual relação de emprego existente entre as partes, há de ser resolvida na Justiça do Trabalho, especialmente considerando que a inicial também refere o interesse de um menor, que por quatorze anos, juntamente com a mãe, teriam prestado serviços ao varão. (…)” (Apelação cível nº 70001957240, Oitava Câmara Cível, Relator: Des. Antônio Carlos Stangler Pereira, julgado em 01/11/2001 – grifei).

Em resumo, os autos revelam a existência de uma relação afetuosa entre as partes, relação que perdurou por longos anos, mas que implicou em publicidade restrita a determinadas pessoas que compartilharam do convívio entre o casal. Conduto, e conforme dito linhas antes, não vejo óbices para que à apelante seja fixada indenização, pois se trata, em última análise, de conferir eficácia ao preceito da dignidade da pessoa humana consubstanciado, nestes autos, no dever de solidariedade humana. Dou provimento em parte, pois, ao apelo.

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS (REVISOR) – De acordo.

DESA. MARIA BERENICE DIAS (PRESIDENTE)

Rogo vênia ao eminente Relator, mas entendo que a relação existiu, não há como deixar de se reconhecer essa realidade.

Confesso que, em 35 anos de Magistratura, não adquiri ainda a capacidade de fazer desaparecer o que existe, e a união de fato existe. Negar efeitos jurídicos é descumprir o Poder Judiciário a sua função e, mais do que isso, é deixar de fazer justiça. Não há punir a recorrente por saber da sua condição de casado, até porque a esposa sabia que ele tinha um relacionamento com a autora.

Assim, não há como deixar de conceder à autora 25% do patrimônio amealhado durante o período em que durou a convivência.

DESA. MARIA BERENICE DIAS – Presidente

Apelação Cível nº 70011093481, Comarca de Três de Maio:

“POR MAIORIA, DERAM PROVIMENTO, EM PARTE, AO RECURSO, VENCIDA A PRESIDENTE”

Julgador(a) de 1º Grau: DANIELA FERRARI SIGNOR

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