Preço do disparo

Estado deve pagar indenização a jovem ferido por policial

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6 de janeiro de 2006, 18h49

O Poder Público responde pelos atos do policial no exercício de suas funções. O entendimento é da 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que condenou o estado a pagar indenização de R$ 70 mil a um jovem alvejado por tiro disparado por um policial militar.

De acordo com o relator do recurso, desembargador Odoné Sanguiné, “ficou claro que houve abuso no exercício das funções, por parte do policial, que reagiu desproporcionalmente à atitude do autor, de forma a caracterizar a responsabilidade objetiva da Administração”.

Em razão do disparo, o jovem ficou tetraplégico e perdeu parcial da visão, aos 21 anos. De acordo com o processo, ficou comprovado que houve abuso de autoridade durante a abordagem policial do rapaz que trafegava de moto.

Considerando a gravidade da ocorrência, o TJ gaúcho aumentou a indenização por danos morais de R$ 25 mil, fixada em primeira instância, para R$ 70 mil. O valor será corrigido.

A Câmara manteve a antecipação de tutela, concedida em primeira instância, para o pagamento de dois salários mínimos de pensão mensal vitalícia ao autor da ação. Determinou, também, que o estado deve arcar com o acompanhamento médico permanente, não sujeito à cobertura do Sistema Único de Saúde.

O desembargador Sanguiné entendeu ter havido má escolha do agente público para a missão que lhe fora atribuída, cabendo ao estado a recomposição do dano sofrido pelo particular. “O ordenamento jurídico pátrio acolheu a responsabilidade objetiva da administração pública, lastreada na teoria do risco administrativo, como dispõe a Constituição Federal”.

Segundo versão trazida aos autos pelo policial militar e seu colega, a motocicleta se aproximou da viatura em que estavam e o motociclista teria puxado uma faca. Para o desembargador, ainda que o jovem usasse mesmo com a faca, isso não autorizaria o militar a atirar, muito menos em região vital. Votaram no mesmo sentido do relator os desembargadores Luís Augusto Coelho Braga e Marilene Bonzanini Bernardi.

Processo 70.012.124.954

Leia a íntegra da decisão

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. TIRO DESFERIDO POR POLICIAL MILITAR CONTRA CIDADÃO. TETRAPLEGIA E PERDA PARCIAL DA VISÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO CARACTERIZADA.

1- RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. O ordenamento jurídico pátrio acolheu a responsabilidade objetiva da administração pública, lastreada na teoria do risco administrativo, a teor do disposto no artigo 37, § 6°, da constituição federal. Assim, em sede de responsabilidade objetiva, refratária à idéia de culpa, basta que sejam demonstrados o ato omissivo ou comissivo da Administração Pública, o dano e o nexo causal a agrilhoá-los. No caso, não há falar-se em culpa da vítima na produção do resultado. Ao revés, ficou claro que houve abuso no exercício das funções, por parte do servidor, que reagiu desproporcionalmente à atitude do autor, de forma a caracterizar a responsabilidade objetiva da Administração, trazendo ínsita a presunção de má escolha do agente público para a missão que lhe fora atribuída, cabendo ao Estado a recomposição do dano sofrido pelo particular.

2- DANOS PATRIMONIAIS. A despeito de a incapacidade permanente para a atividade laboral restar comprovada nos autos, por meio de laudo pericial, o autor não logrou êxito em demonstrar a quantia exata que percebia mensalmente na atividade de construção civil, antes do incidente, correta a sentença que arbitrou em 02 salários mínimos mensais a pensão vitalícia. Outrossim, os autos denotam que o quadro clínico do autor inclui seqüelas neurológicas e físicas irreversíveis e severas que exigem tratamento médico permanente. Logo, o Estado deve arcar com o acompanhamento médico do autor, não sujeito à cobertura do SUS, cujo quantum deve ser apurado em liquidação de sentença, já que o autor não o especificou na peça portal.

3- DANOS MORAIS. O autor tornou-se tetraplégico e perdeu parcialmente a visão em tenra idade (21 anos), ficando dependente de tratamento médico e fisioterápico e da ajuda de terceiros para as mais comezinhas tarefas diárias para o resto da vida. Assim, além da gravidade das lesões, as condições econômicas das partes, o grau de culpa do agente público, a conduta do autor que ensejou o incidente, entre outros, devem ser sopesados, amoldando-se a condenação de modo que as finalidades de reparar a vítima e punir o infrator sejam atingidas. Nestes lindes, merece, pois, majoração o quantum arbitrado a quo.

4- SUCUMBÊNCIA DA FAZENDA PÚBLICA. Em reexame necessário, impende reduzir pela metade o pagamento das custas processuais pela Fazenda Pública, em face do disposto no art. 11, alínea “a”, do Regimento de Custas (Lei nº 8.121/85).

5- HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS REDIMENSIONADOS.


APELOS PARCIALMENTE PROVIDOS. REFORMA PARCIAL DA SENTENÇA EM REEXAME NECESSÁRIO.

APELAÇÃO CÍVEL: Nº 70012124954

NONA CÂMARA CÍVEL

COMARCA DE PORTO ALEGRE

JOAO BATISTA LIMA DE BITTENCOURT: APELANTE/APELADO

ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL: APELANTE/APELADO

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Nona Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar parcial provimento ao apelo do autor, para elevar o quantum indenizatório, dar parcial provimento ao apelo do Estado e, em reexame necessário, reduzir pela metade a condenação ao pagamento das custas processuais por parte da Fazenda Pública e redimensionar os honorários advocatícios.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores DES. LUÍS AUGUSTO COELHO BRAGA (PRESIDENTE E REVISOR) E DESA. MARILENE BONZANINI BERNARDI.

Porto Alegre, 14 de dezembro de 2005.

DES. ODONE SANGUINÉ,

Relator.

RELATÓRIO

DES. ODONE SANGUINÉ (RELATOR)

Trata-se de duas apelações interpostas, respectivamente, por JOÃO BATISTA LIMA DE BITTENCOURT (1º apelante) e por ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (2º apelante) contra sentença prolatada nos autos da AÇÃO DE INDENIZAÇÃO, ajuizada pelo 1º apelante em face do 2º apelante, perante a 7ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central da Comarca de Porto Alegre, que julgou parcialmente procedentes os pedidos deduzidos na demanda, para: (a) condenar o demandado ao pagamento de pensão vitalícia no valor correspondente a dois salários mínimos mensais, a contar do evento danoso, corrigido monetariamente, a partir do vencimento de cada parcela; (b) condenar o demandado ao pagamento de indenização, a título de danos morais, no valor de R$25.0000,00 (vinte e cinco mil reais), corrigidos a partir da publicação da sentença, acrescidos de juros legais, a contar do evento danoso, que serão de 6% ao ano até 10.01.2003 e, após, de 12% ao ano; (c) antecipar os efeitos da tutela para fins de determinar que o Estado passe a pagar pensão mensal fixada na sentença, independente do trânsito em julgado, oficiando-se para imediato cumprimento da medida; (d) reconhecer a ocorrência de sucumbência parcial, arcando o autor com 30% das custas e honorários advocatícios em favor do patrono do réu, os quais vão fixados em R$500,00 (quinhentos reais), corrigidos até o desembolso, arcando o réu, por sua vez, com o pagamento dos restantes 70% das custas processuais e honorários advocatícios, fixados estes em 15% sobre o valor da condenação, cuja exigibilidade fica suspensa, em razão de o autor litigar sob o pálio da AJG (fls. 365/372).

Em razões do 1º apelo (fls. 376/380), o autor insurge-se contra o valor de 02 salários mínimos fixados no Juízo a quo, a título de pensão vitalícia, tendo em vista que o autor possuía uma renda de R$1.200,00 mensais, possuindo, inclusive, empregados. Sustenta a necessidade de majoração da indenização arbitrada em R$25.000,00 pelos danos morais, em razão da gravidade do quadro clínico de tetraplegia apresentado pelo autor após ser vitimado por tiro disparado pelo policial militar, bem assim em virtude da perda da visão, inutilização dos membros e desfazimento da família. Pugna pela condenação do requerido ao pagamento do tratamento médico e fisioterápico até o fim da convalescença, nos termos da peça inicial. No ponto, aduz que a ausência de comprovação da utilização de serviços médicos que não os oferecidos pelo SUS não tem o condão de afastar o pleito. Por fim, requer o provimento do recurso para julgar procedente o pedido deduzido na petição inicial.

Em razões do 2º apelo (fls. 381/392), o demandado sustenta que a conduta do policial militar deu-se no desenrolar de uma ação policial de campo, sendo que o autor fez expressa menção de uma reação armada, o que ensejou o disparo contra ele por parte do policial militar. Assevera que o autor não colaborou com a ação policial, justificando a reação agressiva do PM. Alega a contribuição da vítima para o evento danoso, o que influi no rateio do dever de indenizar, nos termos do art. 945 do CC. Aduz a não-incidência do art. 37, § 6º, da CF, o qual deve ser interpretado em consonância com o art. 186, art. 188, inciso I, 2ª parte e art. 927, todos do CC/02. No que toca aos danos patrimoniais, sustenta a ausência de provas quanto ao efetivo valor percebido pela atividade laboral que o autor desempenhava. Quanto aos danos morais, requer o seu afastamento ou alternativamente a sua redução, considerando a culpa exclusiva da vítima ou, pelo menos, a sua contribuição para o evento danoso. Afirma que não está presente o requisito da verossimilhança, necessário à concessão da antecipação de tutela. Menciona a enorme discrepância entre os valores de honorários advocatícios atribuídos aos patronos das partes, de forma a evidenciar ofensiva discriminação. Assim, requer o redimensionamento dos ônus sucumbenciais. Por fim, requer o provimento do recurso nos termos delineados.


Em contra-razões ao 2º apelo (fls. 394/395), o demandante requer o improvimento do recurso.

Subiram os autos a esta Corte. Distribuídos, a Dra. Procuradora de Justiça opinou pelo parcial provimento do recurso do autor e pelo improvimento do apelo do demandado (fls. 401/413).

Após, os autos vieram conclusos para julgamento.

É o relatório.

VOTOS

DES. ODONE SANGUINÉ (RELATOR)

Eminentes colegas:

Os fatos narram que o autor, por volta das 22h40min, do dia 11.06.1994, em abordagem policial, na cidade de Capão da Canoa, foi afetado na região facial, por projétil de arma de fogo disparada por policial militar, ao que se sucedeu o estado de invalidez permanente.

Deflui-se incontroverso do conjunto probatório que o autor foi efetivamente lesionado por um tiro disparado pelo policial militar, por ocasião do serviço de ronda, inclusive tendo sido o PM processado criminalmente por incurso nas sanções do art. 3º, alíneas “a” e “i”, da Lei nº 4898/65 (abuso de autoridade), com absolvição em grau recursal, fulcrada no art. 386, inciso VI, do Código de Processo Penal (insuficiência de provas) (fls. 100/103). Assim, incólume a pretensão civil da vítima, no plano eficacial civil da sentença penal.

Nesta seara, consabido que comprovada a lesão por ação do Poder Público, há responsabilidade objetiva de indenizar a vítima. Lembre-se, ainda, que o ordenamento jurídico pátrio acolheu a responsabilidade objetiva da Administração Pública, lastreada na teoria do risco administrativo, a teor do disposto no artigo 37, § 6°, da Constituição Federal.

Abordando o tema, Maria Sylvia Zanella Di Pietro elucida que “essa doutrina baseia-se no princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais: assim como os benefícios decorrentes da atuação estatal repartem-se por todos, também os prejuízos sofridos por alguns membros da sociedade devem ser repartidos. Quando uma pessoa sofre um ônus maior do que o suportado pelas demais, rompe-se o equilíbrio que necessariamente deve haver entre os encargos sociais; para restabelecer esse equilíbrio, o Estado deve indenizar o prejudicado, utilizando recursos do erário público.” (Direito Administrativo. 8. ed. São Paulo : Atlas, 1997. p. 412)

Também enfocando a responsabilidade objetiva, Juan Carlos Cassagne predica que “la misma se relacione con una indemnización de derecho público que prescinde del dato de la culpa y se fundamenta en la igualdad de los administrados ante las cargas públicas, principio este que torna odioso todo sacrifício especial que ellos sufran sin indemnización.” (Derecho administrativo. 2. ed. Buenos Aires : Abeledo-Perrot, 1986. t. I. p. 284)

Assim, em sede de responsabilidade objetiva, refratária à idéia de culpa, basta que sejam demonstrados o ato omissivo ou comissivo da Administração Pública, o dano e o nexo causal a agrilhoá-los.

Pois bem, a primeira controvérsia reside na aferição de eventual culpa exclusiva da vítima, capaz de afastar o nexo causal entre a conduta do policial militar e o evento danoso, ou, pelo menos, na avaliação da alegada contribuição do autor para que o PM disparasse o revólver em sua direção.

Pondere-se, a culpa exclusiva da vítima evidencia-se quando o causador direto do dano é utilizado apenas como um meio, com o evento danoso derivando, única e exclusivamente, do comportamento culposo ou doloso da própria parte lesada, erradicado, em tal hipótese, o liame de causalidade entre o ato do agente e o prejuízo sofrido.

Sobre o assunto ensina o preclaro Silvio Rodrigues:

“Com efeito, no caso de culpa exclusiva da vítima, o agente que causa diretamente o dano é apenas um instrumento do acidente, não se podendo, realmente, falar em liame de causalidade entre seu ato e o prejuízo por aquela experimentado. (…)

Podem ser configurados muitos outros casos em que a mão que fere constitui mero instrumento, pois o evento decorre apenas do comportamento da vítima. Assim, se esta foi atropelada ao atravessar, embriagada, uma estrada de alta velocidade, é inescondível o fato de que o doloroso evento derivou de sua exclusiva culpa, não se podendo atribuir senão a ela a responsabilidade pelo ocorrido. Impossível falar em relação de causa e efeito entre o ato do motorista e o falecimento da vítima. A mesma reflexão se aplica ao caso de comportamento doloso desta. Se a vítima, querendo suicidar-se, lançou-se sob as rodas do veículo, sua é toda a culpa pelos ferimentos que experimentou e decerto será vencida na ação de responsabilidade que eventualmente intentar” (Direito Civil Responsabilidade Civil, 14 a ed. atual., Saraiva, 1995, vol. 4 o , págs. 163 e 164).

In casu, porém, não há como se cogitar de culpa exclusiva da vítima. No ponto, bem apreciou a prova coligida aos autos o Ministério Público na origem, cujo parecer foi reproduzido pelo órgão do Ministério Público nesta Corte, abordando com precisão os contornos fáticos da reação armada do policial militar e concluindo acertadamente pela ausência de qualquer contribuição da vítima a ensejar a reação desproporcional do PM. Assim, para evitar tautologia, rogo vênia para transcrever em parte o parecer ministerial lançado nesta Corte de Justiça, adotando-o como razões de decidir o presente recurso no ponto, in verbis:


“Não há testemunhas presenciais do fato. Tem-se apenas a versão do policial militar Schiavinato, responsável pelo disparo, e de seu colega de farda Claiton Tonial, que o acompanhava na ocasião. Segundo dizem, faziam serviço de ronda em um bairro de Capão da Canoa, à noite, quando uma motocicleta se aproximou da viatura. Mesmo advertido para parar, o condutor da motocicleta se aproximou da viatura. Mesmo advertido para parar, o condutor da motocicleta prosseguiu e, já diante da viatura, teria levado a mão na cintura. Imaginando que o desconhecido empunharia uma arma, o policial militar Adair Schiavinato efetuou um disparo e o atingiu. Posteriormente, verificaram que o desconhecido – João Batista, o autor – tinha consigo uma faca.

Essa versão, embora tenha sido considerada plausível no julgamento definitivo do processo-crime, não se sustenta. É evidentemente inverossímil.

Como o Ministério Público já referiu, por ocasião dos debates orais na ação penal movida contra o policial Schiavinato, ‘seria absurdo imaginar que a vítima teria puxado uma faca ou mesmo iria puxar uma faca com a motocicleta em andamento, em estrada de pedra contra dois policiais militares armados, e com uma viatura militar’ (fl. 84v.)

Teria algum sentido o motociclista fazer menção de puxar uma arma da cintura ao aproximar-se de uma barreira policial? E por quê faria isso? Tratava-se de um trabalhador, sem envolvimento com nada ilícito. A versão dos policiais militares só teria alguma consistência se: a) houvessem apreendido alguma arma de fogo – não uma faca – em poder da vítima; e b) João Batista tivesse algum motivo para não se deixar identificar por policiais militares fardados. Não se verificando nenhuma dessas hipóteses, a narrativa apresentada pelos PMs é inverossímil, a desabafar a lógica do razoável.

(…) É possível, então, que o autor, por alguma razão qualquer, tenha tentado evitar a barreira policial. Mas também é possível que simplesmente não tenha conseguido frear a tempo a motocicleta (Qualquer dessas duas hipóteses é mais crível que a forjada versão da legítima defesa putativa). E o policial militar Schavinato, na ânsia de fazer parar o veículo, tenha se precipitada e cometido o abuso, em evidente desproporcionalidade à suposta ameaça à sua autoridade.

Ainda que o autor estivesse de posse de uma faca, isso não autorizaria o servidor militar a desferir-lhe um tiro, muito menos em região vital. A ação do policial Schiavinato, a revelar despreparo para o enfretamento de situações de tensão, ultrapassou os limites do estrito cumprimento do dever legal”.

Portanto, in specie, a relação de causalidade entre a ação do PM de disparar sua arma de fogo contra o autor e tetraplegia que hoje comete autor, está devidamente evidenciada nos autos.

Assim, não há falar-se em culpa da vítima na produção do resultado, como bem analisou o Ministério Público. Ao revés, ficou claro que houve abuso no exercício das funções, por parte do servidor, que reagiu desproporcionalmente à atitude do autor, de forma a caracterizar a responsabilidade objetiva da Administração, trazendo ínsita a presunção de má escolha do agente público para a missão que lhe fora atribuída, cabendo ao Estado a recomposição do dano sofrido pelo particular.

Yussef Cahali, em sua obra Reponsabilidade Civil do Estado, ed. Malheiros, 2ª ed, p. 520, com sua habitual propriedade, explana que:

“Ainda que investido da função de preservar a segurança e manter a ordem social, o policial, portando arma de fogo, natural instrumento perigoso, seja por entrega ou autorização do Estado, não está autorizado ao manuseio disparatado ou imprudente da mesma; de sua má utilização. Resultando danos para os particulares, resulta para o ente público a obrigação de indenizar.

E, adiante, continua:

“Em realidade, o próprio policiamento preventivo, mesmo sem utilização de arma de fogo, é de ser desempenhado com moderação, escoimado de qualquer violência ou excesso que possa pôr em risco a integridade dos particulares” (p. 523).

Assim, evidenciada a causalidade material entre o eventus damni e o comportamento positivo (ação) do agente público, bem como ausente causa exoneratória de responsabilidade, impõe-se a obrigação de o Poder Público indenizar, com fundamento na teoria do risco administrativo, consagrada no ordenamento jurídico, a partir da Carta de 1946.

E, nesse âmbito, oportuno trazer a lume o seguinte precedente, verbis:

“Responsabilidade civil do Estado. Dano decorrente de assalto por quadrilha de que fazia parte preso foragido varios meses antes. – A responsabilidade do Estado, embora objetiva por força do disposto no artigo 107 da Emenda Constitucional n. 1/69 (e, atualmente, no paragrafo 6. do artigo 37 da Carta Magna), não dispensa, obviamente, o requisito, também objetivo, do nexo de causalidade entre a ação ou a omissão atribuida a seus agentes e o dano causado a terceiros. – Em nosso sistema jurídico, como resulta do disposto no artigo 1.060 do Código Civil, a teoria adotada quanto ao nexo de causalidade e a teoria do dano direto e imediato, também denominada teoria da interrupção do nexo causal. Não obstante aquele dispositivo da codificação civil diga respeito a impropriamente denominada responsabilidade contratual, aplica-se ele também a responsabilidade extracontratual, inclusive a objetiva, até por ser aquela que, sem quaisquer considerações de ordem subjetiva, afasta os inconvenientes das outras duas teorias existentes: a da equivalência das condições e a da causalidade adequada. – No caso, em face dos fatos tidos como certos pelo acórdão recorrido, e com base nos quais reconheceu ele o nexo de causalidade indispensável para o reconhecimento da responsabilidade objetiva constitucional, e inequívoco que o nexo de causalidade inexiste, e, portanto, não pode haver a incidência da responsabilidade prevista no artigo 107 da Emenda Constitucional n. 1/69, a que corresponde o parágrafo 6. do artigo 37 da atual Constituição. Com efeito, o dano decorrente do assalto por uma quadrilha de que participava um dos evadidos da prisão não foi o efeito necessário da omissão da autoridade pública que o acórdão recorrido teve como causa da fuga dele, mas resultou de concausas, como a formação da quadrilha, e o assalto ocorrido cerca de vinte e um meses após a evasão. Recurso extraordinário conhecido e provido. (RE 130764/PR, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Julgamento: 12/05/1992, Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA)”


Cristalino exurge, deste modo, o dever de indenizar estatal. Passo, pois, ao reexame das insurgências recursais quanto aos valores arbitrados a quo, a título de danos materiais e prejuízos extrapatrimoniais.

Quanto aos danos patrimoniais, correta a sentença recorrida no dimensionamento do valor da pensão mensal vitalícia devida pelo Estado ao autor. Ocorre que, a despeito de a incapacidade permanente para a atividade laboral restar comprovada nos autos, por meio de laudo pericial, o autor não logrou êxito em demonstrar a quantia exata que percebia mensalmente na atividade de construção civil, antes do incidente. E não se pode perspectivar o seu futuro profissional, com base no eventual mercado promissor da construção civil no Município de Capão da Canoa, como quer fazer parecer o recurso do demandante. Veja-se que todas as testemunhas que atestaram um ganho mensal maior do que 02 salários mínimos por parte do autor são seus parentes ou amigos muito próximos, os quais não prestaram compromisso por ocasião dos depoimentos judiciais. Como bem notou o Juízo a quo, a única testemunha que prestou compromisso e falou sobre os valores percebidos pelo autor (FERNANDO: fl. 221) não deixou claro se as quantias referidas eram percebidas semanal ou mensalmente. Por isso, considerando que o autor não comprovou convincentemente os valores auferidos nas suas atividades laborais, correta a sentença que arbitrou em 02 salários mínimos mensais a pensão vitalícia.

Ainda sobre os danos patrimoniais, na esteira do opinado pelo Ministério Público nesta Corte, merece guarida o pleito de reforma da sentença no ponto em que afastou o pedido de pagamento, por parte do requerido, do tratamento médico e fisioterápico até o fim da convalescença. Com efeito, os autos denotam que o quadro clínico do autor inclui seqüelas neurológicas e físicas irreversíveis e severas que exigem tratamento médico permanente. Logo, o Estado deve arcar com o acompanhamento médico do autor, não sujeito à cobertura do SUS, cujo quantum deve ser apurado em liquidação de sentença, já que o autor não o especificou na peça portal.

No que toca aos danos morais, merece majoração o valor arbitrado a quo (R$25.000,00), acolhendo-se o pleito recursal do autor no ponto e rechaçando-se o pedido de afastamento ou redução pugnado pelo Estado.

A dor, a angústia e a tristeza do autor e de seus familiares com a lamentável tragédia são, seguramente, enormes e quiçá insuportáveis. O autor tornou-se tetraplégico e perdeu parcialmente a visão em tenra idade (21 anos), ficando dependente de tratamento médico e fisioterápico e da ajuda de terceiros para as mais comezinhas tarefas diárias para o resto da vida. Tais circunstâncias, cujas repercussões são insuscetíveis de dimensionamento, são, sem sombra de dúvidas, impagáveis. No entanto, cabe a esta Corte de Justiça examiná-las e atribuir-lhes uma retribuição pecuniária proporcional ao sofrimento impingido. Para isso, além da gravidade das lesões, as condições econômicas das partes, o grau de culpa do agente público, a conduta do autor que ensejou o incidente, entre outros, devem ser sopesados, amoldando-se a condenação de modo que as finalidades de reparar a vítima e punir o infrator sejam atingidas.

Nestes lindes, conforme já assentado, a conduta do autor não contribui com as graves proporções em que se deu o evento danoso, bem como o demandante não detinha condições econômico-financeiras vantajosas antes do incidente (trabalhava como autônomo no ramo da construção civil). Também se deve ter em conta as já mencionadas graves lesões (tetraplegia e perda quase total da visão) que comprometem o futuro do autor em toda sorte de atividades, de forma a afetar-lhe profissional e, em especial, pessoalmente (há notícias nos autos sobre a perda da esposa e do convívio com o filho, que foi morar com a avó, após o ocorrido com seu pai). Por certo, é vítima de discriminação, à vista de tudo que lhe ocorreu. Outrossim, embora se reconheça as dificuldades e perigos aos quais estão expostos os policiais militares, deve-se considerar que houve, neste caso, uma reação desmesurada, desnecessária e desproporcional a ocasionar o reconhecimento do ilícito civil gerador do dano extrapatrimonial requerido.

Assim, ante tais considerações, parece-me justa a quantia de R$70.000,00, a título e danos morais, atentando de forma correta às circunstâncias do caso. O valor ora fixado deve ser corrigido pelo IGPM-FGV, a partir desta data, e acrescendo-se, desde o evento danoso, juros moratórios de 6% ao ano até o advento do Código Civil (11.01.2003) e, após essa data, 12% ao ano, até a data do efetivo pagamento.

Ademais, mantenho a antecipação de tutela concedida em 1º grau para que o Estado pague a quantia referente à pensão mensal a que faz jus o autor, porquanto assentes os seus requisitos, é dizer, a verossimilhança das alegações do autor e o perigo na demora do processo, ante a absoluta necessidade de tratamento médico do autor.


De outra banda, em atenção ao preconizado pelo Parquet quanto ao pagamento das custas processuais, merece ser modificada a sentença, em reexame necessário, para que a condenação no ponto seja reduzida pela metade, em face do disposto no art. 11, alínea “a”, do Regimento de Custas (Lei nº 8.121/85), que estabelece o seguinte:

“Art. 11 – Os emolumentos serão pagos por metade pela Fazenda Pública:

a) nos feitos cíveis em que essa for vencida;(…)”

Ainda, o Provimento nº 15/04, da Corregedoria-Geral da Justiça:

“Art. 462 – As custas serão pagas por metade pela Fazenda Pública:

a) nos feitos cíveis em que for vencida.”

Neste sentido, precedente desta Corte, in verbis:

ACIDENTE DE TRÂNSITO. AÇÃO INDENIZATÓRIA POR PERDAS E DANOS E DANOS MORAIS. Veículo abalroado por trator do DAER, que saía de uma propriedade particular sem as devidas cautelas. Responsabilidade pelo evento danoso. Culpa subjetiva da ré. Ilegitimidade ativa ad causam suscitada pelo demandado rejeitada, demonstrado que o autor era o proprietário do veículo. Sucumbência da Fazenda Pública. Segundo o artigo 11, `a’, da Lei nº 8.121/85, quando vencida a Fazenda Pública, a condenação ao pagamento das custas será por metade se a parte ex adversa gozar do benefício da AJG. Compensação da verba honorária. Descabida, contando o autor com o benefício da Justiça Gratuita. Juros moratórios e correção monetária na forma das Súmulas 43 e 54 do STJ. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. (Apelação e Reexame Necessário Nº 70010191393, Décima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Bayard Ney de Freitas Barcellos, Julgado em 20/07/2005)

PROCESSUAL CIVIL. SUCUMBÊNCIA DA FAZENDA PÚBLICA. RESPONSABILIDADE POR METADE DAS CUSTAS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. MANUTENÇÃO DO VALOR. 1. As custas de responsabilidade da Fazenda Pública, são devidas por metade (Lei 8.121/85, art. 11, ‘a’). Não há o que modificar no valor atribuído pela sentença aos honorários advocatícios, tendo em vista que está em consonância com os parâmetros do art. 20, § 3º, do Cód. de Proc. Civil, remunerando condignamente o patrono do vencedor, sem onerar demasiadamente a Fazenda Pública vencida. 2. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70011610359, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Araken de Assis, Julgado em 15/06/2005)

Assim, em reexame necessário, merece parcial modificação a sentença no que pertine ao pagamento das custas, que deverão ser arcadas pelo Estado por metade.

Por fim, tendo em vista a majoração do quantum indenizatório de R$ 25.000,00 para R$ 70.000,00, reduzo o percentual da verba honorária fixada à parte autora para 10% sobre o valor da condenação, considerando a necessidade de fixação módica de verba honorária em desfavor da Fazenda Pública.

Por outro lado, majoro a verba do procurador do Estado que havia sido fixada na sentença em R$ 500,00 para o patamar de R$ 1.500,00, quantum mais adequado a retribuir o trabalho por este desenvolvido.

Ante o exposto, voto no sentido de dar parcial provimento ao apelo do autor para elevar o quantum indenizatório, dar parcial provimento ao apelo do Estado e, em reexame necessário, reduzir pela metade a condenação ao pagamento das custas processuais por parte da Fazenda Pública e redimensionar os honorários advocatícios conforme explicitado.

DES. LUÍS AUGUSTO COELHO BRAGA (PRESIDENTE E REVISOR) – De acordo.

DESA. MARILENE BONZANINI BERNARDI – De acordo.

DES. LUÍS AUGUSTO COELHO BRAGA – Presidente

Apelação Cível nº 70012124954, Comarca de Porto Alegre: “APELOS PARCIALMENTE PROVIDOS. REFORMA PARCIAL DA SENTENÇA EM REEXAME NECESSÁRIO.”

Julgador(a) de 1º Grau: ROSANA BROGLIO GARBIN

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