Política de família

Planejar família é mais eficaz do que legalizar aborto

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4 de janeiro de 2006, 17h22

É constitucional o Estado brasileiro estabelecer contrapartidas de adesão ao planejamento familiar a famílias assistidas por programas do jaez do Bolsa Família? Por oportunidade da celebração do nascimento do mais famoso filho de sem-tetos, o questionamento se nos afigura oportuno e conveniente.

Há algum tempo,quando agentes políticos do governo federal invocaram a necessidade de discutir o planejamento familiar e de incluí-lo dentre as contrapartidas do Programa Fome Zero, uma notável cidadã que se auto-intitulava feminista negra, externou veemente discordância por meio de iracundo artigo no qual defendia a plena liberdade reprodutiva.

Disse a feminista, com parcial razão, que o direito de decidir é de autoria coletiva, e que o Estado brasileiro não é propriedade privada deles, referindo-se aos mandatários do Executivo federal.

Realmente, o Estado não é deles, nem dela, nem de ninguém: o Estado somos nós, o povo, seu componente mais expressivo; daí a importância de se compreender a diferença que permeia povo e população.

Objetivamente, qualquer cidadão brasileiro, independente de cor da epiderme, de vinculação a qualquer movimento feminista, machista, partidário etc., e, principalmente, todo aquele que é sujeito passivo de obrigações tributárias, pode e deve se autoconsignar a titularidade de dono do Estado, máxime quando dele não perceba subsídio, remuneração, provento ou contraprestação significativa: toda pessoa cujo suor custeia o desembolso estatal tem o poder-dever de se pronunciar quanto à destinação dos dinheiros públicos.

A grande maioria do povo brasileiro não é negro, branco, amarelo, índio e sim o produto do caldeamento de múltiplas etnias e culturas: calaria muito mal a qualquer patrício declinar-se, por exemplo, machista-ariano, homófobo-polaco, heterossexual–nipônico ou qualquer outra combinação imaginável — para avocar-se o argumento de autoridade e excluir os pensamentos discrepantes.

É falacioso e preconceituoso dizer que a pobreza tem a face negra. A pobreza não tem absolutamente a face negra, na Amazônia, na maior parte no Nordeste e na região Sul; tampouco tem exclusivamente a face negra no Sudeste, nem na Bahia ou Maranhão; a discussão do planejamento familiar não passa pela questão demográfica do país nem pelo puro e simples controle de natalidade.

Um dos argumentos mais esgrimidos pelos opositores do planejamento familiar é que a pobreza não é culpa dos pobres. Ocorre que em um cenário de recursos parcos e demandas enormes, há que se declinar o ideal com o possível e, de pronto, há que se estabelecer um projeto de cidadania, a partir de um coeficiente razoável que tenha por numerador o quantum de escolas, hospitais, áreas de lazer, infra-estrutura etc. e, por denominador, o contingente de pessoas atendidas que não pode continuar crescendo em progressão geométrica.

O tema, indubitavelmente polêmico, tem, sim, de ser discutido por todo o povo pensante, e não pode ficar restrito a cartórios de representação, seja de mulheres, de religiosos, de cúpulas sindicais, de partidos políticos, por mais qualificados que pretendam ser, sob o risco das decisões restarem em descompasso com o pensamento e as potencialidades de nossa gente, i.e., mulheres e homens de todos os matizes epidérmicos, religiosos, agnósticos ou políticos.

Nem só as mulheres e homens do Governo devem saber o que condiz com o ordenamento jurídico brasileiro; todos devemos ousar discutir até mesmo o que não condiz com o atual ordenamento jurídico para atender aos reclamos da realidade — ex facto jus oritur; para tal, importa não descurar, jamais, a prudência ao decidir e a modéstia de não pretender que a verdade de cada um seja absoluta ou inquestionável.

É preciso coragem para descartar muitas verdades do século XIX na Europa e até mesmo as verdades colhidas em passado recente; enfim, coragem para reconhecer quando as verdades mais estiverem para vera aetatis (realidade atemporal), do que para o que se verifica no cotidiano: a teoria na prática é outra.

Os programas do tipo Bolsa-Família podem sim (e devem) exigir a contrapartida do planejamento familiar; basta integrar, com razoabilidade e adequação, os comandos insertos no parágrafo sétimo do artigo 226, no artigo 227 e outros da Constituição do Brasil.

O conflito de princípios constitucionais não se encerra na solução digital (sim/não), mas na ponderação axiológica e no repúdio ao absurdo: se a finalidade é a preservação da dignidade da pessoa humana e da paternidade/maternidade responsável, o Estado não pode atuar de forma a incrementar o denominador de carentes, inviabilizando a promoção da cidadania.

Pensar o contrário implica prestigiar o crescimento da população carcerária, da população de rua, da população de menores abandonados, enfim a diminuição do povo, da cidadania.

Neste compasso, a sã política de planejamento familiar é mil vezes mais pacífica e razoável do que a violência do livre aborto irrestrito, incondicionado e ilimitado, com frágeis fincas em pretenso direito potestativo da gestante, infenso a qualquer restrição de ordem pública.

Incidiríamos no mesmo erro da auto–intitulada feminista negra se reputássemos absolutas e inquestionáveis nossas posições; daí nossa modesta pretensão de, tão somente, colocar uma pedra de sal para temperar as discussões que o tema deveria suscitar. No mesmo sentido, deixamos de registrar nossa altura, peso, grupo étnico, orientação religiosa, política etc., por absolutamente irrelevante para a reflexão posta.

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