Justiça em obras

Reforma começa a mudar o Judiciário por dentro

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3 de janeiro de 2006, 13h11

“Pergunte a qualquer juiz que tinha parentes trabalhando no tribunal se a Emenda Constitucional 45 não está funcionando”, desafia o secretário da Reforma do Judiciário, Pierpaolo Cruz Bottini.

Um ano depois de aprovada, a Emenda Constitucional 45 aparentemente não trouxe resultados práticos para o Judiciário no Brasil. Ela continua cara, lenta e burocrática. Em relação à celeridade processual, que é o que interessa ao cidadão, até agora, nada aconteceu. Por outro lado, a reforma começou a acontecer dentro da organização do Poder judiciário, traçar os primeiros esboços de soluções para as inúmeras debilidades da Justiça e combater costumes pouco sadios. Foi por determinação do Conselho Nacional de Justiça, criado pela EC 45, que quase todos os tribunais do país começaram a tomar as providências para exonerar parentes sem concurso dentro da instituição.

Para Bottini, a reforma já está sendo concretizada e, se não fosse por ela, a reforma infraconstitucional — essa, sim, a grande esperança para combater a lentidão da Justiça — também não teria começado a acontecer. “Já tivemos algumas coisas que podemos perceber na prática: o Conselho Nacional de Justiça, que já concluiu uma série de determinações, como a regulamentação do acesso dos juízes aos tribunais, a autonomia das defensorias públicas e o combate ao nepotismo”, afirma.

Segundo o professor de Direito Civil Nehemias Domingos de Melo, em pouco tempo de atuação o CNJ já deu mostras de que seu papel é de importância fundamental para a sociedade principalmente no que diz respeito a traçar metas e diretrizes para o Poder Judiciário Nacional.

O Brasil tem algo em torno de 70 diferentes tribunais — estaduais, federais, eleitorais, trabalhistas, militares e superiores. Cada um deles atua como se fosse uma ilha, sem relação nenhuma com a sociedade, entre si ou com os outros poderes da República. Não costumam trocar experiências ou fixar normas de ação conjunta, e não submetem sua política administrativa e financeira à aprovação de ninguém.

Para Domingos de Melo, o papel do CNJ consiste, justamente, em exigir uniformidade de ação administrativa e financeira dos diversos tribunais, e cumprir uma função até antes inexistente, a de Corregedoria dos Tribunais. “As Corregedorias dos diversos tribunais só serviam para policiar a atuação dos juízes de primeiro grau. Muito raramente se tinha notícia de que algum desembargador pudesse ser alvo de investigação pela corregedoria do órgão do qual fazia parte. Ministro dos Tribunais Superiores então, nem pensar”, explica o professor.

Foi a EC 45 que inaugurou a possibilidade de a sociedade, de maneira justificada, representar contra órgãos ou membros do Poder Judiciário e de o CNJ apurar irregularidades e determinar providências para corrigir eventuais distorções no Judiciário Brasileiro.

Mais a reformar

Na opinião do juiz federal Erik Frederico Gramstrup, presidente da Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul, o CNJ avançou, mas ainda não assumiu seu papel de planejador estratégico. Gramstrup afirma que a EC 45 produziu pequenos impactos pontuais. E, segundo ele, todos sabiam que seria assim: mesmo depois de totalmente cumprida e regulamentada, a reforma não conseguiria resolver sozinha nem metade dos problemas do Judiciário.

Independentemente da reforma do Judiciário, Gramstrup defende dois pontos que considera essenciais a serem desenvolvidos para, principalmente, acelerar o tramite processual. Um deles é a informatização radical do processo. O outro é a redução significativa do número de instâncias. Ele defende também que o orçamento de informática da Justiça não seja mais contingenciado.

Como lembra o secretário da Reforma do Judiciário, Pierpaolo Bottini, além do CNJ outras determinações da Emenda já estão se concretizando, como a comissão mista do Congresso para regulamentação dos dispositivos da própria EC 45.

Outro resultado da reforma é a distribuição imediata de processos, que já vem sendo feita, e a eleição da metade dos integrantes dos órgãos especiais dos tribunais (antes da EC, faziam parte do Órgão Especial os desembargadores mais antigos). Mas o resultado prático destas determinações ainda parece distante.

A distribuição automática dos processos foi prontamente obedecida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Mas, na prática, o que aconteceu foi que antes o tribunal tinha 500 mil processos aguardando distribuição e, agora, tem 550 mil aguardando julgamento. Para o jurisdicionado, quase nada mudou já que ele continua na fila do mesmo jeito.

Também não foram sentidos ainda os efeitos de dois dispositivos da reforma criados com a intenção principal de agilizar o trâmite processual: a Súmula Vinculante e a Repercussão Geral do Recurso Extraordinário. A Súmula, segundo Bottini, “é um instrumento importante e sério, que precisa ser muito bem estudado para não trazer problemas depois”.

As estatísticas sobre o funcionamento da Justiça no país, que o CNJ começa a reunir poderão trazer muitas respostas para os problemas do Judiciário e oferecer sugestões de como começar a driblá-los. “No sentido de estatísticas a desorganização do Judiciário é muito grande, mas algumas coisas estão começando a ser padronizadas”, afirma Bottini. Segundo o secretário, um ano é pouco para que os resultados sejam sentidos.

Justiça do Trabalho

Segundo a juíza Jane Granzoto Torres, do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (São Paulo), as determinações da Emenda Constitucional 45 com relação à Justiça do Trabalho já são concretas.

Para Jane, a principal medida da Emenda na área foi a ampliação da competência da Justiça Trabalhista. “Passado um ano de aprovação da EC 45, temos um panorama concreto de que o aumento da competência da Justiça do Trabalho foi salutar. Muitas ações que estavam na Justiça Federal e Estadual — como as que dizem respeito a multas administrativas — foram para a Justiça do Trabalho e já foram julgadas”.

Jane explica que esse passo é importante, de afirmação da competência da Justiça do Trabalho, e significou celeridade processual. A juíza lembra também da determinação da Emenda de aumentar o número de vagas para ministros no Tribunal Superior do Trabalho, o que também trará mais celeridade nos julgamentos. Antes da EC 45, o TST tinha 17 vagas. Agora tem 27.

O presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva já indicou quatro nomes para integrar novos cargos: Horácio Pires, Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Alberto Bresciani e Rosa Maria Weber. Agora, os nomes serão submetidos à sabatina na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Depois disso, seus nomes serão submetidos à votação do Plenário e, uma vez aprovados, os novos ministros serão nomeados por Lula e empossados.

O advogado trabalhista Luís Carlos Moro afirma que, em princípio, quanto à Justiça do Trabalho, a EC 45 trouxe mais problemas do que soluções, pela incapacidade do Judiciário em estabelecer os limites de competência. “Houve uma grande dança de processos, inúmeros deles acabaram parados, por falta de coesão da magistratura”.

Moro lembrou que a questão da competência da Justiça do Trabalho para julgar dano moral em acidente de trabalho chegou a ser negada em duas decisões do Supremo Tribunal Federal, depois de aprovada a Emenda. Só depois de muita discussão é que foi reconhecida a competência trabalhista para julgar esse tipo de ação.

Para Moro, são grandes as probabilidades de a Justiça trabalhista se sair melhor que a Justiça Estadual e Federal em suas novas competências por uma questão de vocação e de concentração da matéria em uma só jurisdição. “O cumprimento da EC 45, de uma forma geral, ainda está em primeira marcha, mas caminha para o êxito”, acredita Moro.

O advogado destaca alguma evolução devido à perspectiva de uma jurisprudência mais assentada e aponta um benefício indireto: matérias que passaram para a Justiça trabalhista começaram a ser reavaliadas inclusive quanto ao direito material.

Para Moro, de uma forma geral, a Justiça brasileira apenas tateou a Reforma do Judiciário. “A reforma ainda está sendo colocada à prova, como se a Constituição não tivesse de ser cumprida. Aliás, a nossa Constituição é um rosário de promessas adiadas”, afirma.

Mudança real

A Emenda 45 tem boas diretrizes, mas o principal problema para o cidadão, que é atravessar a burocracia judicial, só será amenizado com a reforma infraconstitucional e a gerencial. “Se não fosse aprovada a EC 45, não seriam aprovados vários pontos da reforma infraconstitucional. A reforma é um marco no Judiciário brasileiro”, defende o secretário da Reforma do Judiciário.

Dos 26 projetos que compõem a reforma, dois importantes já foram aprovados. Um deles, sancionado em dezembro pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, transforma as fases de conhecimento e de execução do processo em uma fase só. O projeto é importante porque evita uma repetição inútil de procedimentos que muitas vezes faz com que a fase de execução é mais longa do que a de conhecimento.

Outra proposta que já virou lei é a que restringe o uso do Agravo de Instrumento. A lei estabelece que os Agravos de Instrumento só serão julgados no momento da apelação, salvo em casos de possível lesão irreparável. Até então, o Agravo poderia ser encaminhado aos tribunais após uma decisão do juiz em qualquer estágio da ação, o que implicava em morosidade à tramitação.

Segundo o Diagnóstico do Judiciário, elaborado pelo Ministério da Justiça no ano passado, os Agravos de Instrumento representam uma parte significativa dos recursos interpostos no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça: 56,8% e 36,9%, respectivamente.

Pierpaolo Bottini acredita que com a regulamentação da reforma constitucional e a aprovação dos demais projetos da reforma processual, os efeitos da nova Justiça serão, enfim, sentidos.

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