Legislação supletiva

Sócios de sociedade limitada podem optar por Lei das S.A.

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27 de fevereiro de 2006, 14h57

In claris cessat interpretatio recomenda o antigo ditado jurídico que contém uma receita de interpretação dirigida ao operador do Direito, segunda a qual se a regra é clara não há necessidade de se empreender um trabalho interpretativo para compreendê-la.

Chega a ser curiosa a análise deste conselho de interpretação, com o qual discordamos frontalmente, em face do disposto no artigo 1.053 do Código Civil, que, apesar de sua transparência, tem gerado enorme polêmica no meio jurídico, conforme segue:

“Artigo 1053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples.

Parágrafo único. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima.”

A discussão, gerada sobre um artigo aparentemente despretensioso, demonstra que, na realidade, toda norma jurídica, por mais simples que seja, pressupõe interpretação de seu conteúdo, que deve ser precedida do correto entendimento dos signos lingüísticos, da reunião de significado das palavras e da relação desses significados com o próprio ordenamento jurídico.

E por mais fácil que seja o exercício interpretativo, não se pode olvidar que o seu resultado decorre de uma decisão, um ato político do intérprete, e que por essa razão pode tomar rumos completamente diversos.

Pois bem. Na hipótese ora colocada, a discussão acerca do artigo 1.053 do Código Civil assumiu maior relevância e ganhou assento nos bancos das Faculdades, em razão da novidade do Diploma Civil e também porque o revogado artigo 18 do Decreto 3.708/1919, que tratava da saudosa Sociedade Por Quotas de Responsabilidade Limitada, estabelecia que seriam observadas, no que não fosse regulado pelo Contrato Social, e na parte aplicável, as disposições da Lei das Sociedades Anônimas.

Nessa linha de raciocínio, a interpretação mais próxima do sentido literal do artigo 1.053 do Código Civil poderia resultar em um aparente retrocesso, uma vez que a natureza híbrida da Sociedade Empresária Limitada no Código Civil — sociedade de pessoas e de capital — poderia, com fundamento no aludido dispositivo, vir a pesar muito mais para o elemento pessoal — marca da Sociedade Simples — do que para o elemento “capital”, preponderante na Sociedade por Ações, independentemente da vontade dos sócios.

Assim, diante do artigo 1.053 do Código Civil, alguns estudiosos[1][2][3][4] vêm entendendo que na hipótese de omissão dos dispositivos que tratam da Sociedade Empresária Limitada (artigos. 1.052/1.087) deve ser aplicada as normas da Sociedade Simples, que fariam o papel de uma verdadeira parte geral do direito societário e, num segundo momento, “supletivamente”, e caso previsto no Contrato Social[5], as regras da Lei das Sociedades por Ações (Lei 6.404/1976), conforme aparentemente dispõe o artigo 1.053 do Código Civil.

Outros estudiosos[6], por outro lado, defendem que tanto o caput quanto o parágrafo único do artigo 1.053 tratariam sobre a mesma matéria e que as duas regras — Sociedade Simples e Sociedade por Ações — não poderiam conviver na mesma Sociedade Empresária Limitada. Sustentam ainda que, muito embora o caput utilize o termo “omissão” e o parágrafo único, “regência supletiva”, nos dois casos a questão se resumiria acerca da escolha das normas supletivas aplicáveis nas hipóteses de omissão das normas principais (Sociedade Empresária Limitada).


Argumentam, adicionalmente, afirmando que a atual forma de organização do artigo 1.053 do Código Civil possui uma explicação histórica, vez que o parágrafo único não constava originalmente no texto do projeto de referido Código, tendo sido incluído posteriormente como uma clara referência da intenção do legislador de oferecer a opção de escolha pelas normas que regem a sociedade anônima.

Por meio da consulta às obras de renomados estudiosos[7][8], pode-se verificar que uma parcela considerável dos comercialistas entende, embora não ingressando na discussão acerca do artigo 1.053 do Código Civil, que a aplicação das regras das Sociedades Simples ou da Lei das Sociedades Anônimas nas omissões do contrato social dependeria exclusivamente da vontade dos sócios mediante a inclusão expressa das normas que regem as Sociedades Anônimas ou, pelo contrário, daquelas que tratam das Sociedades Simples, cujo efeito também poderia ser alcançado mediante o simples silêncio contratual.

Quer nos parecer — e os artigos 997 e 1.054 do Código Civil confirmam o nosso pensar — que determinadas regras das Sociedades Simples, como por exemplo, a que determina a inscrição no registro competente, relacionadas à formalização da Sociedade (constituição/dissolução), aplicam-se a todos os tipos de Sociedade, tanto às não empresárias como às empresárias, incluindo-se as Sociedades Anônimas.

Contudo, se na forma de constituição e registro são muito semelhantes, quanto ao conteúdo, a Sociedade Simples, a Sociedade Empresária Limitada e a Sociedade Anônima são até hoje completamente distintas.

Por exemplo, na hipótese de cessão de quotas, sendo silente o contrato social, na Sociedade Empresária Limitada, o sócio (artigo 1.057 CC) pode cedê-las, total ou parcialmente, ainda que para um terceiro distinto dos atuais sócios, caso não haja oposição dos outros sócios que representem mais de 25% do capital social, enquanto que na Sociedade Simples, a cessão somente poderá se efetuar mediante consentimento de todos os sócios (artigo 1.003 CC).

Relativamente à diferença entre Sociedade Empresária Limitada e a Sociedade Anônima, temos como exemplo que na primeira há possibilidade de exclusão judicial de sócio (artigo 1.030 CC) por falta grave ou incapacidade superveniente, inclusive a de exclusão administrativa do minoritário por justa causa (artigo 1.085 CC), circunstâncias que não se verificam na Lei das Sociedades por Ações em que o elemento capital, preponderante, não oferece esse espaço para tal situação jurídica.

Por essa razão que Fábio Ulhôa Coelho[9] defende, com muita propriedade, que a aplicação das regras que regem as Sociedades Anônimas às Empresárias Limitadas está condicionada à contratualidade da matéria, pois apenas nas matérias sujeitas à contratação dos sócios é que seria permitida a adoção pela Sociedade Empresária Limitada das regras que regem as Sociedades Anônimas, por exemplo, a matéria concernente aos valores mobiliários.

Toda essa digressão foi realizada com o intuito de demonstrar que materialmente, embora possamos encontrar semelhanças aqui e acolá, há efetivamente grandes distinções entre esses três tipos societários, que, na realidade, não se restringem na discussão da legislação aplicável, mas que passariam pela análise da possibilidade de aplicação das regras da Sociedade Simples e também das normas que regem as Sociedades Anônimas no caso concreto e também do perfil de cada tipo societário.


De um modo geral, valendo-se da famosa classificação doutrinária entre Sociedades de Pessoas, Sociedades de Pessoas e de Capital (Híbrida) e Sociedades de Capital, que, indubitavelmente, influenciou o legislador[10] na elaboração desses tipos societários e deve ser um elemento a ser considerado pelo intérprete, pode-se afirmar que seria plenamente possível uma Sociedade Híbrida como a Sociedade Empresária Limitada adotar, concomitantemente, determinados elementos das Sociedades Simples e também das Sociedades Anônimas.

Por quê não? Uma grande empresa familiar, por exemplo, pode ter o desejo de restringir a cessão de quotas e, ao mesmo tempo, ter mecanismos de funcionamento dos Conselhos Fiscal e de Administração muito próximos da Sociedade Anônima, assim como prever a obrigatoriedade de distribuição do dividendo mínimo aos sócios, como uma forma de evitar conflitos familiares.

De igual modo, continuando na análise dos principais argumentos daqueles que defendem a possibilidade de escolha pelos sócios entre uma ou outra legislação em caso de omissão, acreditamos que a circunstância histórica por si só, que, aliás, é natural do processo legislativo, sempre sujeito a inúmeras mudanças, não seria bastante para sustentar a conclusão de que a escolha da Lei das Sociedades Anônimas em caso de omissão do contrato social poderia se dar exclusivamente, afastando a aplicação das normas que regem as sociedades simples.

Até porque, como dito anteriormente, não havendo proibição expressa — e não há — é possível que a Sociedade Empresária Limitada, sociedade híbrida, possua tanto elementos de uma Sociedade de Pessoas como de uma Sociedade em que o capital ocupa posição determinante.

Por outro lado, não se pode ignorar que uma Sociedade não empresária, como a Sociedade Simples, possui, materialmente, enormes diferenças para uma Sociedade Empresária, organizada economicamente para a produção ou circulação de bens ou de serviços (artigo 982 do Código Civil). A diferença entre elas é abissal!

Nesse aspecto, faz-se importante observar que a distinção entre Sociedade Empresária e não Empresária (artigo 982 do Código Civil) é o grande divisor de águas do Direito de Empresa no Código Civil, de modo que a aplicação automática de regras matérias da Sociedade Simples à Sociedade Empresária Limitada, além de contrariar o esperado desenvolvimento que se espera da legislação empresária[11], constitui praticamente uma afronta ao perfil de uma Sociedade que, pela sua relevância, adquiriu características híbridas, estando completamente voltada para o exercício de uma atividade econômica organizada.

A interpretação apegada ao sentido literal do artigo 1.053 do Código Civil, segundo a qual, em caso de omissão, independentemente da vontade dos sócios, inicialmente devem ser observadas as regras das Sociedades Simples, implica, em última análise, aplicação autômata das normas legais de um não empresário a um empresário, sem qualquer motivação jurídica relevante, o que pode levar inclusive à ofensa ao Princípio da Isonomia, como também o próprio Direito que hoje, didaticamente, chamamos de Empresarial, surgido como uma necessidade dos então comerciantes da antiguidade[12] para facilitar o fluxo de bens/serviços, sendo tais regras a eles especialmente aplicáveis.

De acordo com a nossa opinião, sendo a Sociedade Empresária Limitada uma Sociedade Híbrida, além da aplicação de regras formais da Sociedade Simples e daquelas que o Código Civil estabelece como obrigatórias, materialmente, na hipótese de omissão do contrato social, a legislação que rege as Sociedades Simples apenas e tão-somente poderia ser aplicada em caso de omissão do próprio contrato social ou por meio de disposição expressa contendo a sua aplicação exclusiva ou sobre determinadas matérias ou, ainda, em conjunto com a Lei das Sociedades Anônimas.


De igual modo, pensamos que as normas legais que tratam da Sociedade Empresária Limitada, inclusive o próprio artigo 1.053 do Código Civil, permitem aos sócios de uma Sociedade Empresária Limitada a escolha pela aplicação exclusiva ou não das regras que regem a Lei das Sociedades Anônimas no contrato social.

Contudo, talvez o mais incrível seja que a conclusão não decorra de um raciocínio profundo sobre as Sociedades Simples, Empresária Limitada e por Ações, e sequer sobre a incompatibilidade entre Sociedades Empresárias e não Empresárias, mas tão-somente da análise do significado da palavra “regência supletiva”, o que nos traz de volta para a inadequação do brocardo in claris cessat interpretatio e da tão malhada interpretação literal, pois sem o entendimento do signo lingüístico é impossível fazer qualquer tipo de interpretação.

Conforme o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa[13], a palavra “supletivo”, em sua acepção de adjetivo do substantivo “regência”, tem o sentido daquilo “que supre ou se destina a suprir; supletório.”

E o substantivo masculino “suplemento”, no mesmo Dicionário[14], dentre as suas acepções, pode ser entendido como: “3. Parte que se adiciona a um todo para ampliá-lo, esclarecê-lo e aperfeiçoá-lo.”

A palavra “suplemento”, conforme o Dicionário Jurídico da Professora Maria Helena Diniz[15], possui o seguinte significado no jargão do Direito: “aquilo que reforça ou completa algo anterior. Aquilo com que se supre uma falta, se sana irregularidade”.

Dessa maneira, juridicamente, a expressão regência supletiva, contida no parágrafo único do artigo 1.053 do Código Civil, pode ser entendida como sendo as normais legais aplicáveis na hipótese de falta, ausência ou omissão do Contrato Social, de forma muito semelhante à prevista no caput do referido dispositivo.

Corroborando nossa conclusão, precisas são as palavras de José Edwaldo Tavares Borba[16], para quem “Aplicação Supletiva não se confunde com aplicação subsidiária[17]. Sendo supletiva, destina-se a suprir as omissões do contrato, incidindo naquelas hipóteses a respeito das quais poderia dispor o contrato.”

Dessa maneira, pelas razões acima expostas, embora a regra não seja clara, ao contrário do que reverbera o famoso comentarista, acreditamos que materialmente os sócios de uma Sociedade Empresária Limitada podem sim optar, no contrato social da sociedade, pela regência supletiva da Lei das Sociedades Anônimas, que pode ser aplicada exclusivamente ou, conforme a vontade dos sócios, em conjunto com determinadas regras que regem as Sociedades Simples.


[1] Palhares Júnior, Cacildo Baptista. “Regência supletiva da Sociedade Limitada.” Sítio www.boletimjuridico.com.br, em 14/02/2005 às 15:20 horas.


[2] Clápis, Alexandre Lazio. “Sociedades Limitadas, o Registro Imobiliário e o novo Código Civil.” Sítio www.notariado.org.br, em 14/02/2005 às 16:05 horas.

[3] Ao que parece é esse também o entendimento de José Edwaldo Tavares Borba, em sua obra “Direito Societário”. Editora Renovar: 9ª edição, p. 105, conforme assevera Carlos Augusto da Silveira Lobo, em artigo “As Sociedades Limitadas no Novo Código Civil (Algumas Questões Relevantes)”. Revista de Direito Renovar: Editora Renovar, Volume 26, p. 62.

[4] Requião, Rubens. “Curso de Direito Comercial 1º Volume”: Editora Saraiva, 2003, pp. 463/464.

[5] Lobo, Jorge.“Sociedades Limitadas”. São Paulo: Editora Forense, 2004, Vol. I, p. 59.

[6] Tozzini, Syllas; Berger, Renato. “Sociedades limitadas no novo Código Civil. Alguns pontos insustentáveis ou no mínimo polêmicos”. Sítio www.jusnavigandi.com.br, em 12/02/2005 às 20:00 horas

[7] Carvalhosa, Modesto. “Comentários ao Código Civil Parte Especial do Direito de Empresa”. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 46.

[8] Negrão, Ricardo. “Manual de Direito Comercial e de Empresa”. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 358.

[9] in “Curso de Direito Comercial.”Editora Saraiva, 2005, Vol. 02, pp. 365/366

[10] Almeida, Amador Paes de. “Manual das Sociedades Comerciais”. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 129/130

[11] O artigo 18 do Decreto nº 3.708/1919 permitia a aplicação, no que for aplicável, da Lei das S/A’s.

[12] Requião, Rubens. “Curso de Direito Comercial 1º Volume.” São Paulo: Saraiva: 2003, pp. 08/09.

[13] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2º ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 1631.

[14] in “Op. Cit.”, p.1631

[15] São Paulo: Saraiva, 1998. v.1., p. 1631.

[16] in “Direito Societário.” São Paulo: Renovar, 2004, p. 106.

[17] Conforme o Dicionário Jurídico de Maria Helena Diniz, a palavra “subsidiário” tem como acepção “secundário, que vem em segundo plano”.

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