Receita de sucesso

Entrevista: desembargador José Eduardo Santos Neves

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26 de fevereiro de 2006, 7h00

Santos Neve - por SpaccaSpacca" data-GUID="santos_neve.png">Se há sinal de que existe um Judiciário que distribui Justiça no Brasil, ela está nos Juizados Especiais Federais de modo geral e nos Juizados Especiais Federais da 3ª Região (São Paulo e Mato Grosso do Sul) em particular. São 38 juízes, que julgaram 339 mil processos em 2005: uma média de 8,9 mil ações julgadas por juiz. Desde que foi criado, em 2002, o Juizado já reconheceu R$ 2,5 bilhões em benefícios que a Previdência devia e não pagava a aposentados e contribuintes do INSS.

Mas qual é a receita da produtividade? Segundo o coordenador dos Juizados da 3ª Região, desembargador José Eduardo Santos Neves, o sucesso se deve à soma de racionalização de procedimentos, bom sistema de informática e à natureza dos próprios Juizados, que decidem questões simples e muitas vezes repetitivas.

As ações, sempre contra o Estado, envolvem em 90% dos casos questões previdenciárias e são resolvidas, em média, em até oito meses. Depois do trânsito em julgado, a parte recebe o que é devido em 25 dias. Santos Neves explica que o Estado não protela o pagamento da dívida porque para recorrer tem de pagar juros de mora e honorários advocatícios, que não são cobrados em primeira instância nos Juizados, em uma questão que a derrota é certa. Seria um péssimo negócio.

“O sistema do Juizado é muito simples, é praticamente uma linha do tempo que vai agregando a citação, contestação, audiência, sentença, recurso, decisão de recurso,” explica Santos Neves. Mas, ao contrário da impressão que se tem, apenas 40% das ações recebidas são julgadas procedentes. O que demonstra, segundo o desembargador, que o Juizado não faz assistencialismo.

Nesta entrevista à revista Consultor Jurídico, concedida na sede dos Juizados Especiais Federais da 3ª Região, em São Paulo, Neves revelou que, mesmo não sendo obrigatória a presença de advogados nas causas, quase 60% das ações já são assistidas por profissionais. “Esses números demonstram que advogado não precisa ser imposto.”

Leia a entrevista

ConJur — Como foi o processo de formação dos Juizados?

Santos Neves — Os Juizados foram criados em 2001, a partir da Lei 10.259, que estabelecia inclusive prazo para instalação. A idéia era que o Juizado pudesse dar conta de processos mais simples e, com isso, obter resultados mais rápidos. Foi feita uma comissão, em agosto de 2001, com prazo para apresentar um projeto de implantação dos Juizados até meados de setembro. A comissão percebeu que havia peculiaridades nas cinco regiões [da Justiça Federal] e que o melhor seria deixar que cada região fizesse o seu modelo. Na 3ª Região [São Paulo e Mato Grosso do Sul], por exemplo, a ênfase é o volume. Há uma grande demanda na capital de São Paulo, o que é diferente do interior, em que há o problema das grandes distâncias para chegar à Justiça Federal. Já na 1ª Região [Distrito Federal, Minas Gerais, parte do Nordeste e do Centro-Oeste, e o Norte], o problema das grandes distâncias teve que ser enfrentado através de uma embarcação que corre os rios da região e tem acesso à população que mora em locais isolados.

ConJur — Como foi o trabalho dessa comissão?

Santos Neves — Focado no problema da demanda e da celeridade. A Justiça Federal estava traumatizada pelo desbloqueio dos cruzados em 1991, quando recebeu 250 mil ações em três meses na 3ª Região. Não existia a informatização de hoje. Então, imagine, cada uma dessas ações teve de ser protocolada, colocar capa, etiqueta, ser numerada com um carimbo por folha e rubrica. Depois disso vai ao juiz, a secretaria analisa, expede mandado de citação, vem a contestação e assim por diante. Então, o Juizado já esperava uma demanda reprimida. Por isso, a 3ª Região teve a idéia de usar radicalmente a informática. Porque a informática poupa o funcionário, o juiz, o tempo e o espaço.

ConJur — E hoje todo o processo é informatizado?

Santos Neves — No dia 14 de janeiro de 2002 já implantamos um Juizado todo informatizado em São Paulo. Tudo é informatizado. O processo ficou mais prático, rápido e também muito mais barato, porque não temos de ocupar um espaço imenso com papel. Na época, o servidor de rede custou algo em torno de R$ 75 mil. Nós propusemos algo totalmente diferente, não conseguíamos nem imaginar o que seria isso. Na ocasião, uma equipe de servidores do próprio Juizado passou a desenvolver o sistema. Em outubro de 2001, todas as regiões se reuniram na comissão para falar o que estavam pensando em fazer e a 3ª Região estava em um caminho completamente diferente. Num primeiro momento, as outras regiões criaram um Juizado dentro da própria vara e prosseguiram com o processo de papel.


ConJur — Como é o processo no Juizado?

Santos Neves — A pessoa passa primeiro por uma triagem, porque muitos chegam com outros problemas que o Juizado não pode resolver. Nesse primeiro atendimento é explicada a função do Juizado e quais documentos a pessoa precisa trazer. Se ela já estiver com todos os requisitos, passa pelo segundo atendimento. Então, um funcionário treinado capta o pedido da pessoa pelo computador através de formulários mais ou menos simplificados e se, houver necessidade, pode modificar ou acrescentar alguma informação. Depois de preenchido o formulário, já é marcada a audiência e as perícias, se forem necessárias. Como a lei obriga que exista pelo menos 40 dias entre a data da audiência e a data da citação, esse prazo é aproveitado para fazer a perícia que muitas vezes é feita no próprio prédio do Juizado. Os peritos entram direto no sistema e juntam o laudo. A parte requerida é citada por e-mail diretamente. E os advogados cadastrados podem ter acesso ao processo em que atuam pela internet. O sistema do Juizado é muito simples, é praticamente uma linha do tempo que vai agregando a citação, contestação, audiência, sentença, recurso… É um processo simplificado baseado na Lei Federal 9.099/95, que regulou os Juizados Estaduais.

ConJur — No início, um processo demorava cerca de três meses para ser julgado. Quanto leva para julgar um processo hoje, levando em consideração a crescente procura?

Santos Neves — Em média, de seis a oito meses.

ConJur — Qual é a estrutura disponibilizada pelo Juizado na 3ª Região?

Santos Neves — O Juizado até pouco tempo tinha 90 servidores, atualmente está com 150. Aqui em São Paulo ele tem 38 juízes, entre juízes substitutos e titulares. São 24 unidades na capital de São Paulo, 19 no interior e uma em Mato Grosso do Sul.

ConJur — A maioria das causas é previdenciária?

Santos Neves — No começo, os Juizados só julgavam causas previdenciárias. Depois de 2004 é que outros tipos de processos passaram a ser analisados. Hoje, cerca de 90% causa é previdenciária. Mas outras estão crescendo. A população que freqüenta os Juizados não acredita muito mais em conversa, nem muito no que ela lê no jornal. Ela acredita no resultado. Então acaba recorrendo ao Juizado porque o vizinho, o parente já resolveu problemas aqui.

ConJur — Quais são as outras causas julgadas nos Juizados Especiais Federais?

Santos Neves — Temos questões sobre o FGTS, Imposto de Renda e Sistema Financeiro de Habitação.

ConJur — Como foi a relação com o INSS quando os Juizados começaram a julgar os processos em muito menos tempo?

Santos Neves — Nós fizemos uma reunião com o INSS em dezembro de 2001, antes mesmo de o Juizado começar a funcionar. O INSS também foi apanhado de surpresa, porque não tinha notícia nenhuma do que ia ocorrer e não estava preparado com a infra-estrutura necessária.

ConJur — Houve confronto?

Santos Neves — No começo tivemos uma série de desentendimentos de percurso. A instituição criou um grupo só para tratar de assuntos do Juizado. Na ocasião da implantação, foi até mesmo decretada a prisão de superintendentes do INSS para forçar o cumprimento das decisões que determinavam a adaptação à nova realidade. Mas são águas passadas, porque hoje o INSS saiu daquela posição de simplesmente não querer desembolsar para não gastar.

ConJur — E qual a atual posição?

Santos Neves — O INSS evoluiu para a posição de instituição pública, cuja finalidade é prover a previdência social. A Procuradoria do INSS, que era obrigada apenas a se defender de qualquer maneira para não pagar, passou a se defender com acesso à base de dados, que eles não tinham até então. Não vale a pena recorrer nos Juizados, porque se há recurso há o pagamento de juros de mora e honorários advocatícios. Isso encarece muito, já que um processo no Juizado dura no máximo oito meses, um ano. Na Justiça comum compensa porque um processo pode durar até doze anos. Isso dilui no tempo, muda a administração e fica tudo bem.

ConJur — Então, a celeridade do Juizado fez com que o INSS pense melhor se vale a pena protelar o pagamento. É isso?

Santos Neves — Isso, porque agora o INSS tem consciência de que o recurso do Juizado encarece a condenação. O INSS tem cumprido rigorosamente todas as decisões do Juizado e quase não tem recorrido. Os Juizados mudaram a maneira de ver até da própria Justiça, porque as áreas que serviam ao Juizado tiveram que reciclar os procedimentos para que eles se tornassem mais rápidos, como no caso da perícia.

ConJur — Nos Juizados, a pessoa não é obrigada a contratar advogado. Qual é a porcentagem de ações em que a parte não é assistida por advogado?


Santos Neves — No começo, 95% das ações eram julgadas sem advogado. Hoje, 50% das ações já contam com o auxílio dos profissionais de Direito. Essa porcentagem já caminha para 60%. Ou seja, sem qualquer reserva de mercado, sem qualquer imposição ao cidadão, ele voluntariamente procura o advogado porque sente-se mais seguro. E até porque o próprio advogado descobriu um nicho para trabalhar. Esses números demonstram que advogado não precisa ser imposto.

ConJur — Se por um lado facilita o acesso não exigir a presença de um advogado, por outro não cria uma relação desigual, já que a parte está litigando na maioria das vezes contra o Estado, que está bem representado?

Santos Neves — Primeiro, o Estado não está tão bem representado assim. Eles têm sofrido com falta de estrutura, não só da Previdência, mas da própria Advocacia da União, da Receita Federal. Eles têm uma falta crônica de procuradores, servidores. Então, não é bem assim.

ConJur — O Juizado vai substituir a Justiça comum?

Santos Neves — Não é essa a proposta. O Juizado foi criado para um determinado tipo de ação estereotipada, sem complexidade, em que a maior parte dos entendimentos já é pacificada nos tribunais superiores, mas que ainda assim a administração pública, por uma questão cultural de alongamento da dívida, não paga. O Juizado trabalha com 60% a 70% de ações repetitivas. As ações variam entre 32 e 40 questões previdenciárias básicas, não fogem muito disso. A questão de Direito é a mesma. Na Justiça comum, os processos são mais complexos, o que favorece a mentalidade do devedor de alongar a dívida por muitos anos. E essa cultura de não pagar é independente da tendência de governo, da ideologia. Todos fazem isso.

ConJur — É o calote institucional.

Santos Neves — O governo, em vez de pagar a dívida, pensa que tem uma política muito interessante de saneamento básico que vai favorecer a todos e prefere aplicar o dinheiro da dívida nesse novo projeto e deixar rolar o processo na Justiça, mesmo sabendo que terá de pagar no final. A razão do volume brutal dos processos na Justiça não é porque o brasileiro é litigioso por natureza, é uma questão meramente econômica.

ConJur — É um bom negócio para quem deve deixar a coisa na Justiça.

Santos Neves — Para os devedores a Justiça, funciona muito bem. Todos se utilizam da limitação material da Justiça. Segundo Miguel Reale, se houver consciência geral de que a lei não deve ser cumprida por essa ou aquela razão, não há Polícia nem Justiça que consiga obrigar a sociedade a cumprir. É um direito fundamental. Se uma lei infringe um princípio, uma garantia constitucional, a sociedade entra na Justiça para derrubar a lei. Foi assim no caso do bloqueio dos cruzados. E aí, diz a lenda, um ex-ministro da Fazenda conhecido aumentou ou criou um tributo e os assessores advertiram que o ato era inconstitucional. Mas ele disse que se 10% entram na Justiça, o Estado arrecada o tributo de 90%. E se mais do que isso recorre ao Judiciário, ele pára.

ConJur — Há risco de os Juizados pararem?

Santos Neves — Não. Essa cultura de alongamento da dívida tende a desaparecer porque não é interessante protelar o pagamento nos Juizados. Depois dessa demanda reprimida, o Juizado também poderá cuidar de outras questões no futuro. Com a mudança dessa cultura, a Justiça começa a funcionar para aquilo que ela foi feita, que é para decidir questões mais complicadas.

ConJur — O senhor considera que o Juizado influi no orçamento da União? Distribui renda?

Santos Neves — O orçamento do governo federal é partilhado pelas forças políticas, econômicas, sociais, entre outras. O Juizado vem para defender as partes mais frágeis da sociedade, que são os aposentados, idosos, deficientes, enfermos, viúvas, que não têm poder político nenhum, mas que também estão dentro do orçamento federal. Nos anos de 2003, 2004 e 2005, só na 3ª Região, foram pagos R$ 2,5 bilhões em benefícios, o que equivale a mais de US$ 1 bilhão. E esse dinheiro não causa qualquer rombo no orçamento. Primeiro porque já está previsto e, depois, esse dinheiro volta para o Estado, já que inserir US$ 1 bilhão na camada mais baixa da sociedade, que não faz poupança, faz crescer o consumo.

ConJur — Esse impacto econômico dos Juizados Federais preocupa o governo?

Santos Neves — Eu recebi a visita de uma alta autoridade, preocupadíssima sobre a questão da pensão por morte. No começo, a pessoa tinha direito de receber 50% do valor dos rendimentos do parceiro como benefício. Hoje ela recebe 100%. Então, a questão que está no Supremo é se a pessoa que obteve anteriormente 50% do benefício deve, por isonomia, ganhar 100% hoje. Essa autoridade estava preocupadíssima porque acha que há a possibilidade de quebrar o sistema. Mas não podemos dizer que a Justiça Federal está causando um rombo no Estado, porque estamos tapando um buraco que estava sendo causado a quem tinha direito a esse dinheiro. É o mesmo raciocínio sobre o reajuste do Imposto de Renda. Dizer que não se pode reajustar porque o Estado vai perder a receita não está certo, porque é o Estado que estava com uma receita que não pertence a ele.


ConJur — Qual a porcentagem das ações em que a União é condenada?

Santos Neves — Das ações julgadas nos Juizados Especiais Federais da 3ª Região, 60% são julgadas improcedentes. Isso comprova que não existe assistencialismo. Deve ser comprovado que a parte tem realmente direito ao benefício. Na Vara Comum, na área tributária, a União é derrotada praticamente em 90% dos casos. Aqui, em 40%. E nos Juizados, depois do trânsito em julgado, em 25 dias o dinheiro está depositado na conta.

ConJur — Mas se 60% dos casos são improcedentes, não é justo dizer que a demanda é causada porque o Estado não paga o que deve.

Santos Neves — O problema é que o INSS negava o benefício a todos, inclusive para os que tinham direito, e por isso era necessário recorrer à Justiça. Mas, além disso, o Juizado tem um aspecto social relevantíssimo de exercício da cidadania. Boa parte do público que o Juizado atende é de idade avançada, carente, que perdeu seus contatos com a família e chega aqui sem saber muito bem o que pode ser resolvido. O Juizado acabou virando um local de entrosamento dessas pessoas, cada um vem, conta seus problemas, faz novas amizades, mas nem todos preenchem os requisitos para que os pedidos sejam julgados procedentes.

ConJur — Que exemplos do Juizado podem ser levados para a Justiça comum?

Santos Neves — A idéia do Juizado não é substituir a Justiça comum. São realidades e assuntos diferentes. Mas existem algumas coisas que podem funcionar bem na Justiça comum. Por exemplo, a Vara Federal também pode trabalhar de forma mais eficiente quando se trata de processos parecidos, fazendo sentença por lotes. Uma constatação padrão para processos exatamente iguais é uma boa sugestão. O órgão estatal poderia encaminhar um expediente solicitando que em determinados casos já seja considerado como citado e utilize uma contestação padrão. O problema é que nas varas o processo é de papel e isso dificulta porque teria de imprimir uma quantidade enorme de papéis para anexar em cada processo.

ConJur — As orientações da Turma Nacional de Unificação de Jurisprudência se equiparam às súmulas vinculantes?

Santos Neves — Sim. Em geral quando há esse recurso de uniformização, há possibilidade de suspender todos os processos iguais àquele. Ou seja, nenhum processo sobre o tema pode ser mais julgado. Pode até ser julgado, mas ele não tem eficácia.

ConJur — O Conselho Nacional de Justiça divulgou recentemente o relatório anual em que os números colhidos são de 2004. O relatório demonstra que o Juizado Especial Federal é o que julga mais processos e tem o menor número de juízes. Além de ter a menor taxa de recorribilidade dentro da Justiça Federal, de 17,54%. A que se deve isso?

Santos Neves — A quantidade grande de julgamentos com menos juízes se dá porque muitas ações são repetitivas e julgadas em lote. Outra condição favorável ao Juizado é que ele tem sentença liquida em seis, oito meses. Não tem fase de execução. A baixa taxa de recorribilidade se dá por causa do custo, já que quem recorrer tem de pagar juros de mora e honorários advocatícios e não vai conseguir protelar o pagamento por muito tempo.

ConJur — Então quer dizer que os Juizados já aplicavam regras que estão sendo discutidas na reforma processual, como pagar o benefício sem a fase de execução e julgar processos repetitivos em lote?

Santos Neves — É. O Juizado tem feito até um pouco mais do que isso. O que acontece com a sentença estereotipada também pode ocorrer nas outras sentenças em que já há entendimento dos tribunais superiores.

ConJur — Tudo é mais rápido. O INSS, por exemplo, tem sala no prédio dos Juizados em São Paulo, não?

Santos Neves — Temos no mesmo prédio dos Juizados a AGU, a Caixa e o INSS. Muitas vezes a parte vai pegar alguns dados no posto do INSS do prédio. São procedimentos e atos simples que economizam muito tempo.

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