Troca da guarda

Troca de ministros derruba anacronismos e muda jurisprudência

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24 de fevereiro de 2006, 12h57

Às vésperas de apadrinhar seu sexto ministro no Supremo Tribunal Federal, o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva passa a fazer parte do grupo dos sete presidentes brasileiros que mais influíram na composição da Corte. É motivo suficiente para explicar o debate em torno da suposição de que as nomeações implicam influência sobre os ministros. Uma desconfiança que, diga-se de passagem, não tem tido respaldo dos fatos.

Mas enquanto a parcela mais crítica da população acompanha, com lupa de aumento, eventual surto governista na Corte, um fenômeno muito maior — e esse é concreto — passa quase despercebido. São fatos esparsos, mas densos e profundos. Decorrem exatamente da renovação do STF.

Trata-se da mudança de direção do Supremo em antigas posições, cristalizadas ao longo do tempo, e que estão sendo revistas. Não porque foi Lula quem indicou os novos ministros, mas simplesmente porque eles são novos ministros.

Num plano geral, o STF ficou mais amigo dos direitos fundamentais. Mais garantista no campo do direito de defesa. Menos passivo. Mais Celso de Mello e menos Moreira Alves. Essa característica ganhou vulto nos embates com o Congresso, que resistia admitir que a Constituição Federal deve também ser obedecida por parlamentares. E as CPIs tiveram que mudar seus procedimentos.

No balanço que fez sobre o que foi o STF em 2005, a repórter Aline Pinheiro descreveu um tribunal que “enfrentou o Executivo, o Legislativo e a imprensa. Mostrou autonomia e independência que chegaram a irritar a opinião pública”. E mais que tudo: enfrentou a sua própria jurisprudência.

O exemplo mais vistoso do novo quadro foi dado esta semana, quando o plenário restaurou a possibilidade de progressividade da pena para os crimes chamados “hediondos”. Foi uma reviravolta. O time anterior, em sucessivas provocações, repeliu com veemência a possibilidade que acabou virando realidade. Do time anterior, apenas Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence consideravam inconstitucional a vedação à progressividade de pena. Gilmar Mendes, posteriormente, agregou-se à dupla. Ellen Gracie, Carlos Velloso, Joaquim Barbosa, Celso de Mello e Nelson Jobim votaram pela constitucionalidade da lei atacada. Hoje, sem Eros Grau, Carlos Ayres Britto e Cezar Peluso a mudança não aconteceria.

Ex-tunc

Esse julgamento, o dos crimes hediondos, apresentou outra inovação — esta no campo dos mecanismos que o Supremo vem adotando para racionalizar seus trabalhos e diversificar os instrumentos e possibilidades existentes na sua aplicação.

Pela segunda vez, a Corte aplicou o controle da constitucionalidade no tempo, fora do padrão convencional. Desde sempre, ao declarar a inconstitucionalidade de uma norma, o STF extinguia seus efeitos desde a criação da norma. No caso da possibilidade de progressividade das penas, o plenário aprovou, por unanimidade, que o benefício alcança as penas ainda em curso, mas não aquelas já cumpridas — o que evitou uma possível avalanche de pedidos de reparação. A solução foi apresentada pelo ministro Gilmar Mendes.

No caso inaugural desse exemplo mais criativo de flexibilidade, quando se decidiu acabar com a farra da multiplicação de vereadores — em municípios que criaram vagas em desproporção com a população. Para não provocar o tumulto que seria “demitir” vereadores já eleitos e empossados, decidiu-se que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade só valerão a partir da próxima legislatura.

Ex-nunc

O ativismo judicial no STF consolidou a flexibilização da Súmula 691, que veda a apreciação de questionamento contra liminar em outros tribunais. Possibilitou a definição dos limites das Argüições de Descumprimento de Preceitos Fundamental e, entre outras ousadias, serviu para reforçar a diretriz de antecipar, no exame de liminares, o mérito de questões que levam anos para ter desfecho.

Os novos ventos são promissores. As mudanças sinalizam claramente no sentido da revisão de antigos entendimentos — o que, para ministros formados sob a convicção da lógica pré-1988, parecia intolerável.

A lista é extensa. Exemplo: a prisão civil por dívida do chamado “depositário infiel”. A aplicação da pena radical hoje beneficia basicamente bancos que financiam a compra de automóveis. Há tempos os ministros Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence insistem para raspar da jurisprudência do STF a regra — agora candidatíssima à extinção.

No campo penal, uma das mudanças esperadas é a revogação do que se prevê no artigo 594 do Código de Processo Penal: “O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto.”

Outro entendimento a caminho do ocaso é o que tornou o Mandado de Injunção uma inutilidade. Envolto nos eflúvios da Carta anterior, o colegiado tornou a previsão constitucional de impelir o Congresso a viabilizar a implementação de direito mero dispositivo declaratório.

A partir do próximo dia 8, a revista eletrônica Consultor Jurídico passa a publicar entrevistas com os ministros do STF que analisarão as mudanças processadas no país a partir da Constituição de 1988 e as tendências verificadas com a nova composição da Corte. O primeiro entrevistado será o decano, José Paulo Sepúlveda Pertence.

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