Derrame de condenados

Progressão de regime trará milhares de presos à sociedade

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24 de fevereiro de 2006, 17h41

O Plenário do Supremo Tribunal Federal, na sessão de 23 fevereiro, decidiu, por maioria de votos, pela inconstitucionadade da proibição da progressão de regime de pena aos condenados pela prática de crimes hediondos e infrações equiparadas.

Com essa decisão, a Suprema Corte entendeu que os condenados por tais crimes têm direito a cumprir suas penas de forma progressiva. Nos termos do Código Penal, descontarão inicialmente um sexto no regime fechado (penitenciária de segurança máxima ou média) e, se demonstrarem bom comportamento carcerário, mediante decisão judicial, progredirão para o regime semi-aberto (colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar) e, após, para o regime aberto (casa do albergado ou estabelecimento adequado).

Sem adentrar no mérito da decisão, que possuiu sólidos argumentos para ambos os lados — e o resultado da votação bem reflete esta realidade —, o que cumpre analisar, agora, são as conseqüências práticas dessa nova orientação.

Antes, porém, é salutar esclarecer que, na prática, o cumprimento da pena não tem seguido o rigor da lei penal. Em razão da ausência de estabelecimentos adequados para o cumprimento da pena no regime semi-aberto, tem-se admitido a possibilidade de o condenado fazer trabalhos externos durante o dia e retornar para o estabelecimento penal apenas para pernoitar. Quanto ao regime aberto, à mingua de casas do albergado, em regra, os condenados descontam suas penas em regime aberto domiciliar (previsto na lei somente para situações excepcionais), ou seja, no próprio domicílio, mediante compromisso de não se ausentar durante o período noturno.

Portanto, na prática, os condenados que cumprem suas penas no regime semi-aberto passam o dia na rua e aqueles em regime aberto, o dia e a noite. Preso mesmo, no sentido estrito do vocábulo, somente permanecem aqueles que cumprem suas penas no regime fechado. É uma faceta do “jeitinho brasileiro” na execução da pena.

Com a decisão do excelso pretório, a tendência natural é que esse quadro caótico venha a se agravar, em razão do aumento da demanda de presos para os regimes semi-aberto e aberto.

Apenas a título ilustrativo, exemplifico: os autores de tráfico ilícito de substância entorpecente, se condenados à pena mínima de três anos, cumprirão seis meses no regime fechado, outros seis no regime intermediário, e o restante da pena em liberdade. Estupradores, se condenados à pena mínima de seis anos, cumprirão um ano no regime fechado, mais um no semi-aberto e o restante em liberdade. Os condenados por homicídios qualificados (cometido mediante emprego de maio cruel, emboscada, dissimulação, etc.) e de seqüestros de longa duração, com pena mínima de 12 anos, cumprirão dois anos em regime fechado, dois em regime semi-aberto e o restante da pena em regime domiciliar, ou seja aberto. Latrocidas (roubo seguido de morte), se condenados à pena mínima de 20 anos, descontarão três anos e quatro meses no regime mais severo, três anos e quatro meses no regime intermediário e o restante em liberdade.

Ante esse quadro perturbador, indaga-se: a resposta penal para os autores desses crimes é suficiente para contribuir para a paz social, finalidade principal da Justiça? A sociedade brasileira estará tranqüilizada com o fato de que traficantes permanecerão encarcerados, de fato, por apenas seis meses, estupradores por um ano, homicidas e seqüestradores por dois anos e latrocidas por três anos e quatro meses?

Antes da decisão do Supremo Tribunal Federal, todos esses condenados cumpriam dois terços de suas penas no regime fechado. Agora, cumprirão apenas um sexto.

Por outro lado, a alteração de orientação sobre o tema deve incidir imediatamente em relação aos presos. Aqueles condenados pela prática de crimes hediondos ou equiparados, que já cumpriram um sexto no regime fechado, terão direito imediato a progredir para o semi-aberto, salvo se não ostentarem bom comportamento carcerário. Aqueles que já descontaram um terço de suas penas no regime mais severo, terão direito ao cumprir o restante de suas penas em regime aberto, ou seja, em liberdade.

Segundo pesquisa do Ministério da Justiça, em dezembro de 2005, o sistema carcerário brasileiro abrigava 342,7 mil presos, dos quais 18 mil condenados por homicídio qualificado, 8,9 mil pela prática de latrocínio, 34,4 mil por tráfico ilícito de substância entorpecente e 1,3 mil por extorsão mediante seqüestro. Considerando que, pelo menos metade desta população já cumpriu aos menos um terço de sua pena, teremos, em curto prazo, um derrame de condenados na sociedade, ou seja, aproximadamente 17,2 mil traficantes; 9,4 mil homicidas; 4,4 mil latrocidas e 651 seqüestradores, sem contar os demais condenados pela prática de outros crimes hediondos ou equiparados.

O quadro é desalentador, mas é possível revertê-lo. Basta vontade política para que nossos legisladores federais alterem o Código Penal no sentido de prever um lapso de tempo maior para a progressão. Ao invés do cumprimento de um sexto, seria salutar, para as finalidades retributivas e preventivas da pena, que o condenado cumprisse os atuais dois terços no regime fechado, como até então previa a Lei dos Crimes Hediondos.

Enquanto isso não acontece, salve-se quem puder.

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