Proibição absurda

Progressão é necessária para reintegração de condenado

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24 de fevereiro de 2006, 18h54

A expressão absurdo foi cunhada por Albert Camus (1913-1960) para designar a incapacidade do homo sapiens em compreender sua condição. O existencialista francês descreve um mundo trágico-irracional no qual os personagens lutam em vão para encontrar o sentido da vida. Em O Estrangeiro, o protagonista mata um homem sem nenhuma razão aparente e acaba resignando-se à condenação. Por outro lado, os personagens de A Peste lutam corajosamente contra o absurdo.

Na nossa língua portuguesa, absurdo é um adjetivo que designa algo contrário à razão e ao bom-senso, desprovido de qualquer sentido. É o caso da previsão de regime integralmente fechado na Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90, artigo 2º, § 1º1). Trata-se, na verdade, de um regime integralmente absurdo.

O regime integralmente fechado é fruto da racionalização, mecanismo pelo qual se constrói uma argumentação persuasiva e aceitável para justificar algo irracional como a guerra, o racismo, a islamofobia, o apartheid social brasileiro, ou a defesa da pena de morte e da prisão perpétua. Racionalizar é uma maneira de ver a realidade como ela não é, dissimulando a percepção do perigo interno (subjetivo, psíquico) em função de perigos reais ou imaginários localizados no mundo exterior, com o fito de obter alguma vantagem.

E isso fica ainda mais claro quando se constata que o ato de castigar ativa o estriato, região cerebral ligada ao prazer (Science Magazine, 27/8/04). Portanto, punir alguém em regime integralmente fechado gera uma forma de satisfação ligada à pulsão de morte, ao Tánatos descrito por Sigmund Freud (1856-1939), apesar de afrontar os Tratados de Direitos Humanos e a Constituição.

Os adeptos da ideologia Law and Order gozam desse prazer, o qual aplaca a opinião pública, sem resolver o problema da criminalidade. Embriagados, não vêem que a melhor política criminal é uma política social bem formulada e aplicada. Não vêem na certeza da punição o meio mais eficaz para diminuir os índices de criminalidade, em vez de penas mais longas e duras, conforme a sábia lição de Cesare Beccaria (1738-1794).

Tal regime humilhante e injusto fere o respeito devido ao que John Locke (1632-1704) e Immanuel Kant (1724-1804) chamaram de dignidade imanente do homem enquanto homem. Fere também a principal finalidade da pena, qual seja, a reintegração social do indivíduo. Só este fim justifica os milhões de reais gastos na construção e manutenção de estabelecimentos penais. É preciso preparar o reeducando para o retorno à convivência pacífica em sociedade.

Por este motivo, nossa legislação prevê a progressão de regime: para o indivíduo experimentar, aos poucos, o gosto da liberdade caso mantenha bom comportamento, trabalhe e estude para obter dias remidos2, não cometa falta grave (ex. tentativas de fuga, rebeliões), e tenha cumprido determinado tempo de prisão. Além disso, é necessário tratá-lo bem, respeitá-lo, valorizá-lo como pessoa, resgatar sua auto-estima para que ele trate bem os outros, respeitando-os e valorizando-os. Devemos acreditar no ser humano. O Direito deve ser antropocêntrico. É indispensável acreditar nos direitos humanos e lutar pela sua efetivação.

Entre os reeducandos, não há nada mais injusto e humilhante do que cumprir a pena em regime integralmente fechado. Na capital de São Paulo, tal injustiça é agravada pela lentidão no julgamento dos benefícios de execução penal, levando à infeliz concretização da literalidade da lei não só para quem cometeu delito hediondo3 ou equiparado4 (e poderia fruir do livramento condicional5), mas também para os demais.

“Doutor, será que terei de cumprir minha cadeia toda no fechado, de ponta, sem saidinha, mesmo o meu delito não sendo hediondo?”, reclamam os reeducandos indignados, os quais já preencheram os requisitos objetivo (tempo) e subjetivo (bom comportamento) para gozar do benefício da progressão do fechado para o semi-aberto.

Inconstitucionalidade gritante

É gritante a inconstitucionalidade da Lei 8.072/90, artigo 2º, parágrafo 1º, ao vedar a progressão de regime. Parece a pintura O Grito de Edvard Munch (1863-1944). Em tons marrons, verdes, azuis e alaranjados fortes e berrantes, expressam-se a profunda angústia, o desespero e o tormento emocional do homem tortuoso, parado em cima da ponte no fim da tarde, com as mãos na face, olhos arregalados e a boca escancarada. Temos uma lei expressionista.

Com efeito, a progressividade de regime prevista na Lei de Execução Penal, artigos 110 6 e 1127, e no Código Penal, artigo 338, parágrafo 2º, integra o princípio fundamental da individualização da pena esculpido na Constituição cidadã de 1988, artigo 5º, inciso 469. A individualização está irradiada em diversas disposições da Lei de Execução Penal e de maneira explícita em seu artigo 5º10.


A progressividade decorrente da individualização da pena na fase de execução é a mola mestra para realizar a harmônica integração social do reeducando preconizado pela Lei de Execução Penal, artigo 1º11. Em outras palavras, a individualização da pena na fase de execução significa direito à progressão de regime desde que observados os requisitos objetivo (tempo) e subjetivo (bom comportamento).

Valendo-nos da interpretação lógico-sistemática, qualquer norma contrária deve ser afastada. Logo, é ilícito, inconstitucional, cruel e desumano impedir a reintegração social do reeducando merecedor da progressão, independentemente do crime praticado. Impedir a progressão fere a dignidade humana (Constituição, artigo 1º, inciso 312) e a vedação de penas cruéis (Constituição, artigo 5º, inciso 47, alínea “e”13).

Nesse sentido, “constitui tratamento cruel a um condenado submetê-lo, integralmente, durante o cumprimento da sanção, a regime mais gravoso, excluindo a possibilidade de, pelo mérito, demonstrar que faz jus à progressão prisional” (Tribunal Regional Federal, 3ª Região, Ap. Crim. 98.03.012408-0).

Excluir o direito à progressão significa excluir a prevenção especial como fim da pena, restando apenas o caráter de intimidação legislativa (prevenção geral) e de retribuição na fixação da sentença condenatória pelo juiz. A pena de morte e a prisão perpétua só possuem estas duas finalidades: intimidação e retribuição. Nada de reintegração social.

Portanto, a Lei 8.072/90, artigo 2º, parágrafo 1º, ao dispor que a pena para os crimes hediondos e equiparados será cumprida integralmente em regime fechado, é inconstitucional.

Outrossim, nessa esteira, convém fazer duas observações complementares. Em primeiro lugar, é inconstitucional o recente acréscimo da expressão “respeitadas as normas que vedam a progressão” na modificação da Lei de Execução Penal, artigo 112, operada pela Lei 10.792/03 (a mesma do odioso Regime Disciplinar Diferenciado), cuja finalidade é corroborar a vedação de progressividade prevista na Lei de Crimes Hediondos.

Ademais, a disposição é desnecessária pois, como já foi dito, a progressão só é obtida por quem tenha cumprido os requisitos objetivo e subjetivo. Em segundo lugar, data máxima vênia, é inconstitucional a Súmula 698 do Supremo Tribunal Federal ao não estender aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão de regime aplicada ao crime de tortura (delito equiparado a hediondo), cuja lei admite explicitamente o regime inicialmente fechado (Lei 9.455/97, artigo 1º, § 7º14), revogando a Lei 8.072/90, artigo 2º, parágrafo 1º.

A revisão suprema

Felizmente, o mundo gira em torno do Sol a cada ano e em torno do seu próprio eixo a cada dia, como teorizou Nicolau Copérnico (1473-1543), fato contestado pela Igreja da época. Em 1633, Galileu Galilei (1564-1642), por defender tal teoria, muito embora tenha se retratado, chegou a ser condenado à prisão perpétua, pena diminuída para prisão domiciliar. O Vaticano só reconheceu o erro em 1992. De fato, acreditar em regime integralmente fechado assemelha-se a afirmar, com Cláudio Ptolomeu: o Sol gira em torno da Terra.

Passaram-se 15 anos desde a edição da Lei de Crimes Hediondos, artigo 2º, parágrafo 1º. O Plenário do Supremo Tribunal Federal já foi instado a declarar a inconstitucionalidade deste dispositivo em 1992. Todavia, decidiu pela constitucionalidade do regime fechado integral. Para o STF de então, o poder constituinte originário teria concedido ao poder legislativo ordinário o direito de regulamentar como quisesse a individualização da pena prevista na Constituição, artigo 5º, inciso 46 (Habeas Corpus 69.603). Foram votos vencidos os ministros Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence.

Treze voltas em torno do Sol depois, a matéria voltou ao Plenário, por meio do Habeas Corpus 82.959. O paciente, preso em São Paulo, condenado por crime hediondo, pediu a progressão de regime em face da inconstitucionalidade da lei.

E, de fato, aconteceu a revisão suprema. Por seis votos contra cinco, o Plenário do pretório excelso concedeu a ordem de Habeas Corpus ao paciente, julgando inconstitucional o regime integralmente fechado. Os ministros que votaram pela tese progressista foram Marco Aurélio, Carlos Brito, Cezar Peluso, Gilmar Mendes, Eros Grau e Sepúlveda Pertence. Ellen Gracie, Joaquim Barbosa, Carlos Velloso, Celso de Mello e Nelson Jobim votaram contra.

Considerações de Lege Ferenda

Após a edição da Lei 8.072/90, a criminalidade só aumentou. Atualmente, o Brasil está no limite da repressão. Todo mês faltam aproximadamente 3.500 vagas no sistema penitenciário. Seria necessária a construção de sete penitenciárias por mês para dar conta da enorme demanda. Nesse contexto, o regime fechado integral, ao manter no cárcere quem tem mérito para progredir, agrava o problema.


Em linhas gerais, a legislação atual, no tocante ao requisito objetivo, determina que o condenado por crime comum cumpra um sexto da pena para obter a progressão e um terço para conquistar o livramento condicional. Em caso de crime hediondo, não há possibilidade de progressão e o livramento condicional só é possível após dois terços da pena.

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil sugere, como solução intermediária, a correção da Lei 8.072/90, abrandando-a em consonância com o regime progressivo: se o delito não envolver violência ou grave ameaça à pessoa e não houver morte, o reeducando deverá cumprir um terço da pena em regime inicialmente fechado. Quando houver morte ou violência, deverá cumprir um meio.

O quê significa isso na prática? Segundo dados da Agência Penitenciária do Mato Grosso do Sul de 2004, no Estabelecimento Penal Masculino de Corumbá, com capacidade para 130 internos, há 374. Desse total, 258 estão condenados por crime hediondo ou equiparado. Caso haja o abrandamento da lei, desse total de 258 internos, aproximadamente 180 poderão ser beneficiados com a progressão de regime. Tal resultado alivia e humaniza o sistema.

Em suma, o regime integralmente fechado é, de fato, um regime integralmente absurdo de inconstitucionalidade gritante. O Supremo, sensível ao grito de socorro da dignidade humana e em prol da reintegração social do reeducando, declarou inconstitucional o combatido artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei 8.072/90. Entretanto, o Congresso Nacional, seguindo a sugestão da OAB, pode elaborar uma nova lei prevendo lapsos maiores para a progressão quando se tratar de reeducandos de delito hediondo. O que não se pode é simplesmente proibir a progressividade.

Notas de rodapé

1 – Lei de Crimes Hediondos, artigo 2º, parágrafo 1º. A pena para crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado.

2 – O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semi-aberto poderá remir, pelo trabalho, parte do tempo de execução de pena, à razão de um dia de pena por três de trabalho (LEP, art. 126, § 1º).

3 – Foram rotulados como hediondos o crime de homicídio simples quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, o homicídio qualificado, o latrocínio, a extorsão qualificada pela morte da vítima, a extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada, o estupro, o atentado violento ao pudor, a epidemia com resultado morte e a falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (Lei 8.072/90, art. 1º, I a VII-B).

4 – O terrorismo, o tráfico de entorpecentes e a tortura foram equiparados aos crimes hediondos (Lei 8.072/90, art. 2º).

5 – O juiz poderá conceder o livramento condicional (liberdade vigiada) ao condenado por crime hediondo, desde que cumpridos dois terços da pena (vide abaixo o CP, art. 83, V).

Código Penal, artigo 83: O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenado a pena privativa de liberdade igual ou superior a dois anos, desde que:

I – cumprida mais de um terço da pena se o condenado não for reincidente em crime doloso e tiver bons antecedentes;

II – cumprida mais da metade se o condenado for reincidente em crime doloso;

III – comprovado comportamento satisfatório durante a execução da pena, bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído e aptidão para prover à própria subsistência mediante trabalho honesto;

IV – tenha reparado, salvo efetiva impossibilidade de fazê-lo, o dano causado pela infração;

V – cumprido mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza.

Parágrafo único: Para o condenado por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, a concessão do livramento ficará também subordinada à constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinqüir.

6 – LEP, artigo 110: O juiz, na sentença, estabelecerá o regime no qual o condenado iniciará o cumprimento da pena privativa de liberdade, observado o disposto no artigo 33 e seus parágrafos do Código Penal.

7 – LEP, artigo 112: A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão.

Parágrafo 1º: A decisão será sempre motivada e precedida de manifestação do Ministério Público e do defensor.

Parágrafo 2º: Idêntico procedimento será adotado na concessão de livramento condicional, indulto e comutação de penas, respeitados os prazos previstos nas normas vigentes.


8 – CP, artigo 33: A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi-aberto ou aberto. A de detenção, em regime semi-aberto, ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado.

Parágrafo 1º: Considera-se:

a) regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média;

b) regime semi-aberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar;

c) regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou estabelecimento adequado.

Parágrafo 2º: As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso:

a) o condenado a pena superior a oito anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado;

b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a quatro anos e não exceda a oito, poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi-aberto;

c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a quatro anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto.

Parágrafo 3: A determinação do regime inicial de cumprimento da pena far-se-á com observância dos critérios previstos no artigo 59 deste Código.

Parágrafo 4º: O condenado por crime contra a administração pública terá a progressão de regime do cumprimento da pena condicionada à reparação do dano que causou, ou à devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais.

9 – Constituição Federal, artigo 5º, XLVI: a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a. privação ou restrição da liberdade;

b. perda de bens;

c. multa;

d. prestação social alternativa;

e. suspensão ou interdição de direitos.

10 – LEP, artigo 5º: Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal.

11 – LEP, artigo 1º: A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.

12 – CF, artigo1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(…)

III – a dignidade da pessoa humana.

13 – CF, art. 5º, XLVII, não haverá penas:

a. de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

b. de caráter perpétuo;

c de trabalhos forçados;

d. de banimento;

e. cruéis.

14 – Lei de Tortura, artigo 1º, parágrafo 7º: O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do parágrafo 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.

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