Crime hediondo

Leia voto de Britto sobre progressão de regime em crime hediondo

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24 de fevereiro de 2006, 20h43

Invocando a garantia da dignidade do ser humano e da necessidade de reabilitação social do encarcerado, Carlos Ayres Britto foi um dos seis ministros do Supremo Tribunal Federal que votaram pela inconstitucionalidade da regra que proíbe a progressão de regime para condenados por crimes hediondos.

Segundo o ministro, a vedação constitucional da pena capital e da prisão perpétua já significa imprimir à efetiva execução das penas privativa ou restritiva da liberdade de locomoção um papel ressocializador do preso. “Se o Magno Texto não partisse desse radical a priori lógico da possibilidade de regeneração da pessoa humana, nada impediria que ele inserisse nos seus mecanismos de inibição criminal o confinamento penitenciário perpétuo e até mesmo a pena capital.”

De acordo com Britto, não há que se confundir jamais “hediondez do crime com hediondez da pena, visto que direitos subjetivos outros não são nulificados pela condenação penal em si, como os direitos à saúde, à integridade física, psicológica e moral, à recreação, à liberdade de expressão, à preferência sexual e de crença religiosa”.

Regra inconstitucional

Nesta quinta-feira (23/2), o Supremo julgou inconstitucional, por seis votos a cinco, a regra que proíbe a progressão de regime para condenado por crimes hediondos. A decisão derruba o parágrafo 1º do artigo 2º da Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) e foi tomada no julgamento do pedido de Habeas Corpus de Oseas de Campos, condenado por atentado violento ao pudor.

Votaram pela inconstitucionalidade da regra os ministros Marco Aurélio, Carlos Ayres Britto, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Eros Grau e Sepúlveda Pertence. Contra a progressão, além de Ellen Gracie, votaram Carlos Velloso, Joaquim Barbosa, Celso de Mello e Nelson Jobim.

O dispositivo derrubado pelos ministros previa regime integralmente fechado de cumprimento da pena para condenados por homicídio, latrocínio, extorsão qualificada pela morte, extorsão mediante seqüestro, estupro, atentado violento ao pudor, epidemia com resultado morte, falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais.

Ou seja, vedava a possibilidade de os juízes analisarem pedidos de progressão nesses casos. A norma, contudo, já vinha sendo mitigada em diversas decisões e dividia até mesmo o Supremo.

Leia o voto de Britto

V O T O

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO

Senhor Presidente, o que se pede no presente habeas corpus é a superação do óbice do § 1º do art. 2º da Lei de Crimes Hediondos.

2. Sobre o tema, inicio este meu voto com o juízo de que a progressão no regime de cumprimento de pena em estabelecimento físico do Estado finca raízes na vontade objetiva da Constituição de 1988. Não que a própria Constituição vocalize o fraseado “regime de progressão em estabelecimento penitenciário ou prisional do Poder Público”. Porém no sentido inicial de que ela, Constituição Federal, ao proibir a pena de morte (“salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX”) e o aprisionamento em caráter perpétuo (alíneas a e b do inciso XLVII do art. 5º), parece que somente o fez no pressuposto da regenerabilidade de toda pessoa que se encontre em regime de cumprimento de condenação penal, seja quando essa condenação diga respeito à privação total da liberdade de locomoção, seja quando referente à privação parcial dessa mesma liberdade. Independentemente, portanto, da natureza e da gravidade do delito afinal reconhecido e já com o trânsito em julgado da respectiva sentença. Pois se o Magno Texto não partisse desse radical a priori lógico da possibilidade de regeneração da pessoa humana, nada impediria que ele inserisse nos seus mecanismos de inibição criminal o confinamento penitenciário perpétuo e até mesmo a pena capital.


3. Externando por outra forma a idéia, penso que foi em direta homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana (inciso III do art. 1º) que a nossa Constituição Federal interditou a pena de morte e a prisão perpétua. Ao assim dispor, teria mesmo que se comprometer com a proclamação da garantia da individualização da pena, como efetivamente ocorreu (inciso XLVI do mesmo art. 5º). E tal proclamação já significa afirmar que o cumprimento da pena privativa de liberdade de locomoção há de ostentar uma dimensão ensejadora da regeneração do encarcerado.

4. Estou a dizer, por conseguinte, que a vedação constitucional da pena capital e da prisão perpétua já significa imprimir à efetiva execução das penas privativa ou restritiva da liberdade de locomoção um papel ressocializador (outros preferem dizer “socializador”); de parelha, naturalmente, com a clássica função de castigo ou sofrimento que é indissociável da idéia mesma de pena. Com o quê o poder estatal de punir passa a ter naquele primeiro mister socialmente profilático do cumprimento das penas em causa um dos seus fundamentos. Uma das suas justificativas lógicas.

5. Se é assim – vale dizer, se a Constituição mesma parece conferir à execução das penalidades em foco uma paralela função de reabilitação individual, na perspectiva de um saneado retorno do apenado à vida societária, esse mister reeducativo é de ser desempenhado pelo esforço conjunto da pessoa encarcerada e do Estado-carcereiro. Esforço conjunto que há de se dar segundo pautas adrede fixadas naquilo que é o próprio cerne do regime que a lei designa como de execuções penais (lei federal nº 8.072/90). Um regime necessariamente concebido para fazer da efetiva constrição da liberdade topográfica de ir e vir um mecanismo tão eficiente no plano do castigo mesmo quanto no aspecto regenerador que a ela é consubstancial.

6. É neste ponto que o regime das execuções penais, para permanecer fiel àquela inspiração constitucional da dignidade da pessoa humana, tem que seqüenciar a conhecida garantia da individualização da pena. E se digo “seqüenciar”, é pelo fato de que tal garantia não se exaure com a sua primeira e necessária aplicação, que é o momento sentencial da dosimetria da reprimenda que venha a ser imposta ao sujeito condenado em ação penal.

7. Com efeito, as coisas sinalizam imbricamento. Encaixe em congruente unidade. É por reconhecer a todo ser humano uma dignidade inata (inciso III do art. 1º) que a Lei Republicana interdita a pena de morte (como regra geral) e a prisão ad aeternum. Imprimindo à execução da pena constritiva de liberdade, por conseqüência, um paralelo mister reeducativo. O que já implica trazer para os domínios de tal execução a garantia igualmente constitucional da individualização da pena. Seja qual for a gravidade do crime afinal reconhecido, pois o fato é que a garantia da individualização da pena vem consagrada em dispositivo constitucional posterior àquele que versa, justamente, sobre os delitos de caráter hediondo (incisos XLVI e XLIII do art. 5º). Restando claro que ela, garantia da individualização da pena, não se esgota com a sentença de condenação de alguém a confinamento carcerário. Quero dizer: a garantia constitucional da individualização da pena, serviente que é do princípio também constitucional da dignidade da pessoa humana, não limita essa dignidade ao momento jurisdicional condenatório que atende pelo nome de cominação. Prossegue vida afora do sentenciado para alcançar a fase que já se define como de matéria penitenciária ou de Direito Penitenciário, propriamente, porquanto ocorrente no interior de um dado estabelecimento prisional do Poder Público.

8. Convém repetir: há de haver um regime jurídico de gradativo abrandamento dos rigores da execução penal em si, como resultante lógica da garantia constitucional de individualização da pena. Regime tão serviente dessa garantia quanto a precedente decisão judicial condenatória. E tudo a decolar originariamente do proto-princípio da dignidade da pessoa humana, que já se põe como um dos explícitos

fundamentos da República Federativa do Brasil (inciso III do art. 1º da Lei Fundamental). Pois é da essência desse fundamental princípio o reconhecimento de que toda pessoa natural é um verdadeiro microcosmo. Um ser absolutamente único, na medida em que, se é parte de um todo, é também um todo à parte. Se é parte de algo (o corpo social), é também um algo à parte. A exibir na lapela da própria alma o bóton da originalidade. Que não cessa pelo fato em si do cometimento de um crime do tipo hediondo, seguido ou não de condenação judicial e posterior cumprimento da pena em estabelecimento prisional do Estado. Afinal, não é de se confundir jamais hediondez do crime com hediondez da pena, visto que direitos subjetivos outros não são nulificados pela condenação penal em si, como os direitos à saúde, à integridade física, psicológica e moral, à recreação, à liberdade de expressão, à preferência sexual e de crença religiosa.


9. Tanto parece razoável assim pensar, tanto o princípio da dignidade da pessoa humana e a garantia da individualização da pena dão mostras de continuar na escolta do encarcerado que a Constituição mesma determina que “a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado” (inciso XLVIII do art. 5º). Sem deixar de imediatamente complementar essa proteção individual com a regra de que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” (inciso XLIX), quando, antes, já havia determinado que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (inciso III).

10. Por este ângulo de visada, então, tudo sugere ter-se por inconstitucional um regime carcerário que não reduza o seu teor de severidade à medida que o prisioneiro vá respondendo às normas de disciplina interna com a melhoria do seu próprio (dele, encarcerado) temperamento e caráter. Com a redução do seu potencial de periculosidade. Visto que todo regime penitenciário de cumprimento da sanção penal deve operar como verdadeiro espelho de cristal, a refletir, sem distorção, o personalizado modo como o prisioneiro passa a responder às normas intra-muros que lhe são impostas. Raciocínio – ainda uma vez enfatize-se – extraído do ineliminável caráter educativo da pena, traduzido no empenho estatal e do próprio condenado para que o regime prisional não deixe de cumprir esta função que é própria de toda penitência: franquear ao penitente a possibilidade de fazer do modus operandi da reprimenda que lhe é infligida uma oportunidade de superação do animus delinquendi a que não resistiu quando do cometimento do crime pelo qual veio a ser definitivamente condenado.

11. É certo que o inciso XLVI do art. 5º da Constituição não regulou, por si mesmo, as condições ou os requisitos da individualização da pena. Convocou o legislador de segundo escalão para fazê-lo (a lei regulará a individualização da pena (…)”. Mas não é menos certo que se cuida de um transpasse de poder normativo que não priva o dispositivo constitucional de toda e qualquer dimensão eficacial imediata. É exprimir: o preceito constitucional em exame não prescinde da intercalação da lei comum, é fato, porém não é de ser nulificado por ela. Se compete à lei indicar os parâmetros de densificação da garantia constitucional da individualização do castigo, a esse diploma legal não é permitido se desgarrar do núcleo significativo ambivalente que exsurge da Constituição mesma: o momento abstrato da cominação da pena privativa de liberdade, seguido do instante concreto do respectivo cumprimento em recinto penitenciário. Ali, busca da “justa medida” entre ação criminosa dos sentenciados e reação coativa do Estado. Aqui, a mesma procura de uma justa medida, só que no transcurso de uma outra relação de causa e efeito: de uma parte, a resposta crescentemente positiva do encarcerado ao esforço estatal de recuperá-lo para a normalidade do convívio social; de outra banda, a passagem de um regime prisional mais severo (porque integralmente fechado) para outro menos rigoroso (porque já incorporante de saídas do presídio e retorno a ele em horas certas).

12. No ponto questionado, portanto, tenho por bem decidir pela superação do óbice instituído pelo § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90, por se tratar de cláusula com forte aparência de inconstitucionalidade. Nem por isso a matéria fica de todo resolvida, devo admitir. É que, suplantado o impedimento legal da progressão, um outro desafio temático passa a tomar corpo. Desafio que bem se expressa na seguinte pergunta: que prazo mínimo de cumprimento de pena é de se observar para o efeito de progressão de regime prisional?

13. A mais instantânea resposta só pode ser esta: o prazo de 1/6 da pena imposta, já fixado pelo art. 112 da LEP para os crimes comuns. Isto devido a que não se pode extrair (quero crer) nem do sistema constitucional nem do sistema legislativo-penal-ordinário uma objetiva grandeza temporal, uma espécie de tempo médio que separe as duas situações: a dos condenados por crime sob “o fartum ou o bafio” da hediondez, de uma parte, e, de outra, a dos apenados por delitos comuns.

14. Acontece que essa utilização do parâmetro uniforme de pelo menos 1/6 da pena judicialmente aplicada redunda em tratamento jurídico igual para situações ontologicamente desiguais. Pois não se pode obscurecer o fato de que, pelo inciso XLIII do art. 5º da Magna Carta Federal, é sonegado às pessoas condenadas por crimes hediondos o acesso a determinados benefícios que ela, Constituição, deixou de interditar aos acusados por delitos comuns. São, especificamente, os benefícios da fiança, da graça e da anistia (inciso XLIII do art. 5º). Mais até, não se pode ignorar que a Magna Lei de 1988 exigiu que se levasse em conta a natureza do crime até mesmo para o efeito de segregação em estabelecimento penitenciário oficial (ainda o art. 5º, inciso XLVIII). A robustecer o juízo de que tanto o momento jurisdicional da cominação quanto o momento administrativo de execução da pena devem refletir aquela fundamental dicotomia entre os delitos timbrados pela hediondez e os crimes que não chegam a esse plus de lesividade social.

15. Daqui resulta que também tenho por inconstitucional a aplicação da regra geral de 1/6 aos condenados pelos delitos hediondos. Invalidade, contudo, que não implica retirar do mundo jurídico o diploma viciado. Explico: o vício da inconstitucionalidade traduz-se, como regra geral, na necessidade de extirpar do Ordenamento Jurídico o ato inválido, de sorte a preservar a coerência de tal Ordenamento e garantir a hierarquia e a rigidez da Constituição Federal. Mas há casos em que tal extirpação normativa ofende por igual a própria Constituição da República. Casos em que a boa-fé, a segurança jurídica ou o interesse social restariam violados pelo abate em si do ato inconstitucional. O que tem levado esta Suprema Corte a “retrabalhar” os efeitos de certas declarações de inconstitucionalidade.

16. É o que se dá com a aplicação da regra geral de 1/6 aos condenados por delitos hediondos, a exigir que se imprima às respectivas decisões uma ponderação ou modulação temporal de efeitos.

17. Em síntese, também voto pela inconstitucionalidade da incidência da regra geral de 1/6 aos condenados por crimes hediondos. Mas tenho por imperioso protrair-se a eficácia e aplicabilidade da LEP (art. 112), no ponto, até que norma legal específica venha a ser editada. Norma que, agora sim, cuide de forma particularizada o tema da progressão no regime de cumprimento de pena pela prática de crime hediondo.

18. Com estes fundamentos, peço vênia aos colegas que entendem em sentido contrário e defiro a ordem de habeas corpus.

É como voto.

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