Informação e privacidade

Informação e privacidade: um direito não pode invadir o outro

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22 de fevereiro de 2006, 7h00

Na atualidade da vida moderna, a liberdade de imprensa é um dos mais enredados temas, especialmente quando confrontada com os direitos individuais. Tanto a liberdade de imprensa/informação jornalística como os direitos à intimidade e à vida privada são direitos e valores que encontram nascedouro e limites na própria Constituição Federal. Daí a necessidade de estudo sobre os limites do direito de informar, principalmente, diante da enorme relevância da questão nos conflitos que esses direitos geram, entre a ânsia informativa/lucrativa e os interesses individuais dos envolvidos.

Gilberto Haddad Jabur (Liberdade de Pensamento e Direito à Vida Privada — Conflitos entre Direitos da Personalidade, Editora Revista dos Tribunais, 2000, p.368) descreve, em poucas palavras, a atuação da imprensa na modernidade:“(…..) a obsessão pelo lucro, irrefreável em regimes capitalistas, compromete o dever da imprensa, influencia a ‘produção’ e insufla o emprego de insumos não muito ortodoxos. Os imperativos de venda ou de audiência impelem a imprensa à busca da superficialidade, da arrogância, de escândalos, de um autêntico sensacionalismo. Prestigia-se o entretenimento, sufoca-se a informação socialmente útil”.

Indiscutível, atualmente, a necessidade de os jornalistas — operadores dos meios de comunicação de forma geral — refletirem até que ponto suas informações e opiniões afetam as pessoas na sua imagem e direitos, sempre pautando-se pelos limites constitucionais e legais do direito-dever de informar. Os operadores de comunicação nem sempre conseguem visualizar a real repercussão que a notícia poderá causar na vida privada e no direito da privacidade das pessoas, e mesmo quando notória a lesão, dispõem-se a correr qualquer risco para autopromoção financeira, até porque eventual condenação a reparação de dano, muitas vezes, representará prejuízo menor do que o lucro advindo da publicação.

A questão que se coloca, porém, é que aqueles que podem fazer uso da informação seguidamente o fazem de modo irregular (irresponsável). Nestes casos, a complexidade do tema e a determinação dos limites dos direitos dos envolvidos vai além do que se costuma imaginar e de fato exige melhor avaliação em busca da solução justa. Presente a dificuldade em perceber o exato ponto que caracterizaria a irregularidade na divulgação da informação, cabe, antes de adentrarmos nas análises referentes a esses direitos, fazer uma breve consideração terminológica sobre esses direitos.

A intimidade e a privacidade são considerados no Direito Civil brasileiro como direitos da personalidade e, segundo a nossa Constituição, como um direito fundamental. Já na concepção universal está inserido no campo dos direitos humanos. Como salienta Victor Drummond (Internet privacidade e dados pessoais, Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. p.11): “O termo privacidade já figura em nosso vocabulário como sinônimo de intimidade e de intimidade da vida privada”. Para o mesmo autor, “o critério de distanciamento necessário para o alcance da privacidade é (e sempre será) plenamente subjetivo”.

A maioria dos autores entende existir distinção entre intimidade e vida privada. Neste sentido, o autor Manoel Gonçalves Ferreira Filho (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, 2. ed. São Paulo, Saraiva, 1997.p.35) ressalta que “os conceitos constitucionais de intimidade e vida privada apresentam grande interligação, podendo porém ser diferenciados por meio da menor amplitude do primeiro que se encontra no âmbito de incidência do segundo. Assim, o conceito de intimidade relaciona-se às relações subjetivas e de trato íntimo da pessoa humana, suas relações familiares e de amizade, enquanto o conceito de vida privada envolve todos os relacionamentos da pessoa, inclusive os objetivos, tais como relações comerciais, de trabalho, de estudo, etc.”.

No referente à liberdade de informação, o doutrinador Alexandre de Moraes (Direitos Humanos Fundamentais, 5º ed. São Paulo, Atlas S.A, 2003 p.162) afirma que “o direito de receber informações verdadeiras é um direito de liberdade e caracteriza-se essencialmente por estar dirigido a todos os cidadãos, independentemente de raça, credo ou convicção político-filosófica, com a finalidade de fornecimento de subsídios para a formação de convicções relativas a assuntos públicos”. A liberdade de informação e de expressão (direito de informar e de receber informação) assegura a qualquer pessoa seu direito de expressar livremente seus pensamentos e idéias e aí — acrescentaríamos — respeitando a inviolabilidade da vida privada e intimidade.

O jurista e professor Antônio Chaves (Direitos da Personalidade e Dano Moral, p. 220) diz que “a legislação, como se vê, protege a liberdade de comunicação — vale dizer “de imprensa” — aliás, assegurada pela Declaração dos Direitos Humanos da ONU, referendada pelo Brasil. Mas assegura também a integridade da imagem física, moral e intelectual (direito da personalidade) do indivíduo, salvaguardando-o de explorações outras, menores, publicitárias, propagandísticas, comerciais e políticas, objetivando lucros diretos ou indiretos, isto é, econômicos e políticos, (…)”.


Assim, a discussão entre a proteção da imagem, da vida, da honra e da privacidade das pessoas e a liberdade plena de manifestação do pensamento e de crítica — o direito-dever de informar —, onde o segundo não pode violar ou anular o primeiro e reciprocamente, demonstra um direito constitucional limitando o outro. O problema central é saber determinar o ponto onde opera essa limitação.

Alguns doutrinadores entendem que os direitos da personalidade ocupam um lugar privilegiado em eventual colisão com demais direitos constitucionais. Segundo o texto de Pedro Pais Vasconcellos (Proteção de dados pessoais e direito à privacidade. Direito da Sociedade da Informação, vol. I. Portugal:Coimbra, 1999 p. 36), “os direitos da personalidade são supralegais e hierarquicamente superiores aos outros direitos, mesmo em relação aos direitos fundamentais que não sejam direitos da personalidade, como, por exemplo, o direito de imprensa, que não se insere entre os direitos da personalidade”.

Já para outros doutrinadores, o exercício regular de um direito alija ilicitudes. Ou seja, apenas tornará abusivo o exercício de um direito quando executado de forma contrária à boa-fé e aos bons costumes, pois a liberdade pública não pode prestar-se a tutelar condutas ilícitas. Contudo, entendemos ser esta explicação incompleta. Primeiro porque nem toda informação sobre a vida privada pode ser considerada ilícita. Segundo, porque existe uma linha tênue entre o que pode ou não ser informado e inexiste legislação específica sobre o tema.

A Emenda Constitucional 45/04, que alterou o inciso IX do artigo 93, também representa uma dicotomia ao limitar, mais diretamente, em determinados casos, o direito à publicidade dos atos judiciais. Vejamos: “IX — todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.

De grande valia a interpretação da primazia do interesse público sobre o segredo privado. O interesse pela notícia é público (coletividade) e os direitos da personalidade interessam ao seu titular, normalmente uma pessoa. O direito-dever da informação pertence à sociedade como um todo. O benefício coletivo tem particular força quando revela atos da ação governamental em geral e principalmente nos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, impondo o cumprimento da transparência.

Por exemplo: uma notícia que invada a privacidade de um homem público desagrada a este, mas interessa ao público, justamente pelo fato de ser administrador público. O limite, nestes casos, estaria estritamente em encontrar o que realmente seria objeto de informação. O restante vai além do interesse público.

Não há dúvida de que toda pessoa tem direito de receber informação transparente sobre o Estado. A administração da Justiça de forma transparente é essencial em um contexto democrático. Portanto, tratando-se do direito de informação nos julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário, encontraremos um ponto comum, de relevo, nas atividades de jornalistas e magistrados, já que ambos exercem funções essenciais à manutenção e ao desenvolvimento do regime democrático.

A imprensa contribui para a consolidação de uma democracia na medida em que atua com responsabilidade, cobrando a observância dos princípios democráticos, divulgando informação correta e imparcial, fiscalizando a atuação dos setores público e privado, denunciando irregularidades e oferecendo oportunidade para defesa. Em uma sociedade democrática, a administração da Justiça não pode crescer na escuridão e as decisões judiciais não podem ser secretas.

A busca de decisões mais justas e o efetivo respeito aos direitos em questão deverá voltar-se não apenas para o plano da análise da colisão dos direitos, da ilicitude e do postulado da proporcionalidade para a solução de casos concretos. O julgador deverá encontrar a limitação, considerando as necessidades sociais e o interesse público, aplicáveis ao caso particular, com base nos princípios constitucionais, decisões jurisprudenciais anteriores e legislação infraconstitucional. A criação de legislação específica, no nível infraconstitucional, regulamentando as normas da Constituição e especializando os limites do entendimento do que se considera informação de interesse público.

A discussão não é apenas brasileira, mas se desenvolve em nível internacional. A propósito, Harwood L. Childs questiona o verdadeiro sentido do interesse público:“Mas o que é o interesse público? — perguntarão nossos espertos amigos. Quem tem competência para indicá-lo? A verdade — prossegue a hábil argumentação — é que ninguém sabe em que consiste o interesse público. Mesmo os acadêmicos, os eruditos, os cientistas, a inteligência não chegam a um acordo”.


Na procura de soluções, podemos citar países como os Estados Unidos, onde há diversas normas aplicáveis a proteção bilateral destes direitos, como: Right of Privacy, Freedom of information, Family Educational Rights and Privacy Act, entre outros.

O autor François Rigaux (A Lei dos Juízes, Martins Fontes, 2000, p.165 e seguintes) comenta outra forma de distinção que vem sendo utilizada neste país para tratar da proteção à intimidade das pessoas públicas e “personalidades” dos demais particulares. Estes últimos passam a ter “apenas o ônus de provar o dano sofrido, quando afetados por notícias falsas que não têm relevância pública ou interesse geral”.O mesmo autor constata que “a jurisprudência americana faz a balança pender para o lado da liberdade de expressão, ao passo que o Tribunal Constitucional Federal alemão parece mais atento ao direito de personalidade da vítima do caricaturista”.

Um exemplo concreto desta complicada missão dos julgadores se reflete diariamente nas decisões judiciais. Uma das edições do jornal Zero Hora de Porto Alegre, o sexto maior em circulação do país, que divulgou a lista dos 200 mais bem pagos funcionários públicos do Rio Grande do Sul, entre eles auditores do Tribunal de Contas do Estado, sofreu censura. Alguns auditores impetraram Mandado de Segurança pedindo que a Justiça proibisse o governo estadual de informar os seus salários e o Zero Hora de publicá-los, alegando que a divulgação causaria constrangimentos, e exposição pública.

Eles obtiveram a concessão de medida liminar de segurança, considerando que o direito à privacidade dos auditores estava ameaçado. Cinco dias depois, o tribunal gaúcho reformou a decisão, revogando a liminar e autorizando a divulgação da matéria. A censura sobre o Zero Hora foi um incidente institucionalmente dramático porque representou um conflito de direitos no campo democrático.

A sentença que concedeu liminar de segurança, impedindo a publicação, expõe a falta de segurança que o ordenamento jurídico impõe aos julgadores e, consequentemente, às vítimas. “Aqui se questiona até onde o Estado pode adentrar na vida das pessoas. Até onde a imprensa pode divulgar, nominalmente, meus ganhos, alcançando-os à comunidade” (disponível em www.igutenberg.org.sentencas, em 14/02/06).

Enquanto não demarcado um caminho visível para a concretização da Justiça, estaremos sujeitos a decisões que demonstram alto grau de subjetividade, exigindo interpretação própria do julgador como conseqüência da falta de parâmetros mínimos determinados pela lei. Por óbvio, não se pretende, com essa afirmação, limitar a liberdade que deve ser atribuída ao magistrado, de aplicação da lei ao caso concreto para evitar injustiças. Ocorre que, impulsionados pela informática e pela globalização, nossos costumes estão em constante mutação. Isso está exigindo dos operadores do Direito uma atualização sem precedentes, que nos levará a uma verdadeira revolução de métodos e conceitos jurídicos.

Resta, enquanto não construído outro caminho, aos aplicadores do Direito, por meio dos remédios processuais, assegurar a aplicação das tutelas judiciais dos direitos de personalidade. De forma preventiva, por exemplo, pode-se citar a tutela inibitória do artigo 461, parágrafos 3º, 4º e 5º, do Código de Processo Civil, que possibilita a apreensão de jornais e revistas, publicação de decisão judicial nos meios de comunicação, a invalidação de atos jurídicos que os ofendam.

Após a divulgação ou publicação, cabe buscar indenização pelos danos causados, esta mais utilizada, tendo em vista a dificuldade de a vítima ter conhecimento prévio de que a informação será divulgada, fato que impossibilita a utilização da tutela preventiva. Além disso, a Lei de Imprensa (Lei 5.250/67) e a Constituição Federal (inciso V do artigo 5º) asseguram o direito de resposta do atingido.

Por Larissa Savadintzky – É advogada e sócia de Blos, Savadintzky Advogados Associados. Novo Hamburgo (RS).

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