Estampidos do sonho

Por que há gente que se vangloria de permitir 111 assassinatos?

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21 de fevereiro de 2006, 12h46

A respeito da absolvição do coronel. Não li os autos. Não sei o que sentir. Vou tentar, ao menos, ser elegante.

Durante muitos anos, a comida que foi posta à minha frente provinha do soldo do meu pai na Polícia (rodoviária, mas Polícia). Não cuido de pôr meu pai ao lado de policiais comuns. Ele nunca foi truculento, nunca deu um tiro, nunca compactuou com qualquer coisa que parecesse com ilegalidade. Ensinou a mim e aos meus irmãos o respeito pelo próximo. Deu-nos valores que nos seguem até hoje. Meu pai está fora de questão.

A Polícia, igualmente, aprendi a respeitar e admirar. Nunca tolerei que dinheiro público financiasse truculências, abusos ou ilegalidades de que eu mesmo fui vítima algumas vezes. Na família, filhos em dificuldades são aqueles que recebem mais atenção dos pais. Oh meu Deus, por que a sociedade não é assim? Por que maltratamos o excluído, como se houvesse escolhido sê-lo? Não falo de tratar alguém como um coitado, que necessite de esmola. Falo de inserir, de dar meios, de tratar como um igual.

Sou cristão reformado. Sei que não há saída para o ser humano sem que ele receba educação. Sei que não há educação se não houver participação popular.

Sou democrata. Acredito num Estado de Direito. Acredito num exercício legítimo da autoridade que nem passe perto da ilegalidade ou do abuso. Acredito que o poder republicano é um monte de deveres, deveres e mais deveres; para amarrá-los, algumas prerrogativas. Prerrogativas que visam ao cumprimento do dever. Dever que significa o poder. Se esse dever for cumprido com abuso, além das prerrogativas, o servidor deve arcar com isso.

Ensino minhas filhas. Se se perder, vá para perto do policial. Diga a ele o número de nosso telefone e peça para esperar um pouco. Em segundos, certamente vou aparecer aos brados. Agradecerei ao policial que cuidou de você. Chamo os policiais (aqueles poucos que passam de quando em vez no meu bairro) para tomar café na minha casa. Conheço aqueles que trabalham no Fórum e nas imediações pelo nome. Trato-os com dignidade e respeito.

Mas fico imaginando: respeita-os o tipo de gente que determina a entrada de uma tropa despreparada num estabelecimento prisional sob motim, determinando que “façam o que deve ser feito”? Que tipo de servidor público não tenta controlar o desespero dos servidores sob seu comando?

Façam o que deve ser feito. Façam o que vocês acharem que deve ser feito. Façam o que vocês foram preparados para fazer. Se não foram preparados, façam qualquer coisa.

O coronel é um sub-produto. Li esses dias que ele entrou na Polícia no dia do golpe de 1964. Nasceu de um caldo. É fruto de um meio.

Nunca ensinaram a ele que todos são iguais em um mínimo. Nunca deram a isso o nome de direitos humanos. Nunca informaram que não se chuta quem está caído. Não disseram a ele quando de sua formação que não há como fazermos uma linha que distinga bons e maus, a não ser que essa linha atenda a critérios pervertidos. Critérios que absolveram-no por haver deixado uma tropa despreparada e desesperada agir de acordo com seus instintos.

Em 1995, recebi um telefonema do governador. Pediu que eu prelecionasse à tropa que entraria em instantes para controlar um motim num estabelecimento prisional. Falei com uma tropa que havia sido treinada. Disse a eles que era filho de policial, que acreditava que eles deveriam controlar e que só deveriam reagir com a força relativa à ação adversa, visando a controlar, e não a aniquilar. Entrei logo atrás deles.

Há vezes em que me deito e ainda ouço os estampidos dos tiros de advertência. Depois de tudo, entrei na cela. Para ver. Para não deixar passar o trem da história por medo ou covardia. Dos 600 amotinados, quatro estavam mortos. Os quatro estavam com armas de fogo. Chequei as marcas na parede posterior a eles. Eles haviam atirado. Não havia tiros nas costas ou na nuca. Não houve execução. Houve confronto. Doeu. Dói até hoje. Mas posso assegurar que houve só o necessário para o desforço.

Oh Deus, eu não durmo à noite por causa daquilo! Foi legal, correto e legítimo e eu não durmo. Por que há gente que ainda se gloria de haver permitido e anuído com o assassinato de 111 sem armas de fogo? Só com paus e facas. Tiros na nuca, nas costas. Gente caída. E se candidata a deputado com o número 111…

Não conheço essa pessoa. Se passasse por ele na rua, acredito que não o reconheceria. Só sei que não é um miserável. Não é um daqueles que, como defensor público, defendi nestes últimos 15 anos. Aqueles por quem esse sistema absurdo não se comove. Não são cidadãos. Não são gente. Não são nada.

São pobres. Aqueles que Jesus disse que sempre teríamos conosco. Porque somos assim: nunca cuidamos deles. Nunca demos ao menino o direito de ser menino. Então prendemos e punimos o homem. Pela nossa omissão.

A decisão não foi técnica. Há possibilidade de o agente ser punido pelo excesso no estrito cumprimento do dever legal. Está lá, escrito na lei. E não há nada na Constituição que proíba isso. Não há nada de ilógico nisso.

Mais uma vez, não soube como me sentir.

Do direito, espero duas coisas: tratamento igual para os pobres e reforma dessa decisão pela corte superior. Não para dar satisfação a grupos ou organizações, mas para que aqueles estampidos não soem nos meus ouvidos em vão. Que eles soem como um hino, uma ode à mudança da ordem de coisas.

Ontem à noite, fiquei sozinho em casa com minhas filhas. Li um livro, levei-as para dormir. Fiquei olhando seu soninho e pensando se valeu a pena. Cheguei à conclusão que valeu. Ao menos lutei. E disse a elas que tivessem uma boa noite.

Uma noite sem estampidos.

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