Uma vergonha

Aspectos técnicos sobre o julgamento que absolveu Ubiratan

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20 de fevereiro de 2006, 7h00

Há muitos anos que a sociedade civil acompanha, com apreensão, a lenta caminhada do Judiciário para definir se houve crime no episódio da invasão do Carandiru, que resultou na morte de 111 presidiários. Alguns julgados proferidos nas ações civis movidas pelas famílias dos trucidados já davam indicações de que o desfecho final poderia ser melancólico:

“Morte de detentos em rebelião, que eles iniciaram. Invasão da Penitenciária para impedir sua completa destruição, para garantir a segurança dos demais detentos não amotinados e para apagar o incêndio que se apontava como devastador. Atuação legítima da Polícia Militar. Invasão plenamente justificável e reação à atitude agressiva dos presos. Responsabilidade civil do Estado inexistente. Ação improcedente e recursos providos” ((TJSP – 8ª Câm. de Direito Público; Ap. Cível nº 240.511-1/7-São Paulo; Rel. Des. Raphael Salvador; j. 03.04.1996; maioria de votos.) BAASP, 1951/153-j, de 15.05.1996).

Algumas considerações constantes do corpo do acórdão são indicativas da vertente política que o inspirou: “Enquanto na China são mortos 30 mil condenados de maior periculosidade por ano, enquanto em alguns países da América são mortos ou lançados na selva um grande número de presos irrecuperáveis, não se pode reclamar do Brasil, onde eles vivem protegidos da chuva e das necessidades alimentares, mantidos pelo Estado com dificuldades orçamentárias, que lhes dão privilégio em relação aos pobres pais de família de salário-mínimo”.

Tais considerações demonstram que vicejava naquele tribunal uma vertente inclinada ao entendimento de que, no caso, a culpa teria sido das vítimas.

Estas nuvens negras já perambulavam ameaçadoras quando o recurso do comandante da operação aterrissou no mesmo tribunal, obtendo resultado que mereceu a seguinte manchete do jornal paulista mais conservador: “Nem Ubiratan esperava tanto. Defesa queria anular sentença, mas não cogitava absolvição”.

Com efeito, foi uma surpresa geral. Proferidos os votos de relator e revisor, rejeitando todas as preliminares argüidas, a palavra foi tomada por um desembargador que enveredou pelo exame da argüição de que teria havido equívoco na elaboração dos quesitos.

Os votos já proferidos não haviam acolhido a tese porque, como tem sido decidido repetidamente no Superior Tribunal de Justiça1, “a ausência de protesto no momento oportuno, quanto aos quesitos formulados, como regra, acarreta preclusão”.

Para o entendimento predominante em doutrina e jurisprudência, ao demais, caso houvesse falha na quesitação, o caso seria de anulação do júri e não de pura e simples absolvição do acusado.

É claro que, como o desembargador declarou à imprensa, tudo é uma questão de opinião: “não podemos ter nossa convicção?”. Afinal de contas, existe, também, jurisprudência no sentido de que o princípio da ampla defesa serve de respaldo para que se considere suprida a nulidade.

A opinião pública, contudo, chocada diante do resultado do julgamento, sente violentada a sua convicção de que a atuação no cumprimento do dever legal, em tese, não exclui que o agente venha a cometer excesso doloso.

Vale lembrar que o próprio TJ-SP já acolheu esta tese ao julgar outro caso relativo ao massacre do Carandiru2: “Abuso do direito-dever de repressão caracterizado, em face do excesso cometido pelos agentes do Estado”. A convicção contrária à dos julgadores é alicerçada na previsão do excesso doloso que, em tal caso, está na letra expressa do parágrafo único do artigo 23 do Código Penal.

Para o leitor que não tem acesso aos autos do processo, ficam outras dúvidas ainda mais complexas. A absolvição proferida baseou-se na premissa de que os jurados haviam reconhecido que o réu teria agido no estrito cumprimento do dever legal.

O que consta publicamente, contudo, é que o réu foi responsabilizado por 102 homicídios e cinco tentativas sendo que o texto da sentença publicado pela imprensa3 registra que o estrito cumprimento do dever legal foi reconhecido pelos jurados somente com relação às acusações de tentativa de homicídio, não sendo acolhido pelos jurados no que concerne aos homicídios praticados com arma de fogo.

No texto publicado, consta que os jurados “negaram ter o réu agido no estrito cumprimento do dever legal” com relação aos homicídios consumados praticados com arma de fogo. Contrariamente a esta ata, o autor do voto vencedor declarou à imprensa4 que os jurados “entenderam que ele agiu no estrito cumprimento do dever”. Pela sentença publicada, este reconhecimento, contudo, teria ficado restrito às acusações referentes às tentativas de homicídio.

Por detrás de alíneas e parágrafos, textos e subtextos, subsiste a convicção de que, lastimavelmente, prevaleceu a aprovação submersa ao massacre, oriunda de uma grande parte da sociedade, a pairar como nuvem sombria sobre todo um cenário de fundamentos técnicos fora do alcance do entendimento do cidadão comum.

No entanto, como a sentença publicada pela imprensa diz que os jurados não adotaram o entendimento que lhes foi imputado pelo voto vencedor, as dúvidas dos cidadãos vão remanescer incandescentes até que se esclareça esta aparente contradição.

O que fica para a opinião pública é um julgamento em que se forma, inesperadamente, uma maioria esmagadora em torno de uma tese polêmica, já rejeitada pelos votos do relator e do revisor e nem sequer argüida pela defesa. A juíza que presidiu o tribunal do júri resumiu tudo ao declarar à imprensa5 que o julgamento “foi uma vergonha”. O sentimento geral é neste sentido.

Notas de rodapé

1 – HC 24498 / SP Relator Ministro FELIX FISCHER STJ 5a T. Publicado in DJU 19.04.2004 p. 216

2 – TJSP – 8ª Câm. de Direito Público; Emb. Infr. nº 240.511-1/9-01-São Paulo; Rel. Des. José Santana; j. 16.10.1996; maioria de votos.) BAASP, 1984/1-j, de 01.01.1997.

3 – http://www.conjur.com.br/static/text/16988,1

4 – O Estado de S. Paulo, 16/02/2006

5 – Folha de S. Paulo, 17/02/2006

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