Parentes no Judiciário

Grita contra o nepotismo não passa de conspiração do cinismo

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17 de fevereiro de 2006, 6h00

A panfletária insistência em dar combate sectário ao cenário do nepotismo no Brasil pode estar refletindo uma conspiração do cinismo em nossa pátria.

Malthus (Essays on the Principle of Population) explica que a escassez dos bens econômicos é móvel para a dissensão humana. Isso também pode explicar os móveis que agilizam corações e mentes no trato das utilidades presentes nos predicados do Estado, entre os quais os espaços que tradicionalmente vêm sendo reservados à ocupação por agentes que detenham vínculos de confiança com os que, também pertencentes à estrutura do Estado, são instados a promover escolhas entre alternativas que se considerem válidas.

Quanto ao nepotismo, vem sendo disseminado o entendimento segundo o qual não devem prevalecer as relações parentais como substrato da confiabilidade devida ao Estado enquanto categoria jurídico-política, portanto não se confundindo com a intersubjetividade entre quem indica e quem é nomeado.

Ora, a situação não é de fácil compreensão porque reflete um sentimento que está presente na raiz de nossa formação enquanto sociedade. É claro que, em se tratando de cultura, eventuais vícios dessa ordem de acontecimentos não podem ser simplesmente erradicados por meio de imposição legal estrita. Seria o mesmo que retirar dos sistemas fundamentalistas islâmicos, por exemplo, a pena de morte por decapitação em face de ultraje ao Alcorão, seu livro sagrado. Ou como deixar de considerar uma abjeção compatível com os cenários mais odiosos e dignos de penalidade igualmente capital o adultério em outras tantas sociedades ainda não excepcionalmente incluídas no regime clássico que decorre da consciência humanitária e do advento do sistema de liberdades fundamentais.

Pensando assim, não pode haver justificativa ao azáfama que se descreve de toda uma movimentação midiática no sentido de opor ao Poder Judiciário — e somente a este Poder! — a restrição ao recurso proveniente do costume de que seus membros venham a indicar parentes até o terceiro grau na linha de seus serviços comissionados ou de estreita confiança pública. Efetivamente, não se deve chegar ao ponto de também fazer confusão entre confiança doméstica e confiança pública. Este é, a propósito, um outro capítulo dessa história que comporta uma digressão a respeito, mas não aqui.

Vale ao intento deste escrito suscitar a reflexão coletiva segundo a qual o nepotismo pode, sim, ser tomado como um desvalor social e uma expressão de comprometimento ético. No entanto, tratando-se de um costume histórico, não se terá como erradicá-lo de modo seletivo e pronto mediante afetação ao princípio isonômico, constitucionalmente agasalhado pela Ordem Jurídica, e que não se compraz de igual sorte a todos os segmentos do próprio Estado ao qual se diz proteger em se combatendo o expediente no âmbito exclusivo do Poder Judiciário bem como por reduzir determinado grupo de pessoas (os parentes na linha de vedação) a algum tipo de cidadania mitigada, como se o parentesco fosse capaz, por si só, de retirar de uns e de outros, suas faculdades humanas e a sua própria compostura ética (senso de responsabilidade).

O vício da generalização é sempre eticamente mais grave do que o risco que a generalização intenta evitar.

Com efeito, se se quiser de verdade eliminar da cena institucional brasileira a prática nepótica, só pode existir duas alternativas igualmente esclarecidas e potencialmente eficazes. A primeira delas diz respeito à eliminação, na estrutura funcional do Estado, em todos os seus segmentos e hierarquias, da figura jurídica do “cargo comissionado” ou “de confiança”. A outra alternativa diz com o princípio constitucionalmente ativo da razoabilidade, pelo qual se reclama que a maior gravidade se situa no plano dos abusos, motivo pelo qual comporta disciplinar a possibilidade nepótica para que dela não se venha abusar sob alegação de lacuna ou obscuridade do próprio sistema jurídico.

Depois de décadas de pesquisa em torno do assunto, concluí que não se pode evitar a defraudação quando o intento seja, a fundo, perverter a convivência social. Se hoje se fala em combater o refinamento do denominado “nepotismo cruzado”, mais tarde se terá de enfrentar um suposto “nepotismo triangular” ou a troca de cargos entre instâncias de Poderes diversos, alguns não incluídos no objeto geral de resistência (Legislativo e Executivo), conforme acentuado.

Em O Princípio da Razoabilidade e a Questão Judicial, descrevi também como será possível pensar numa hipótese, já bem acalentada no inconsciente de muitos, do “nepotismo à distância”, pelo qual próceres do presente preparam o terreno institucional para a suas descendências, precisamente como se preordenavam os acontecimentos nas capitanias hereditárias sem o risco das atuações socavadas, sibilinas, embora altamente eficazes.

Desse modo, o intenso debate que se trava nacionalmente em torno do combate ao nepotismo no Poder Judiciário, assim pela forma como na essência de seu conteúdo, não deve causar espécie ao cidadão razoavelmente esclarecido.

Antes traduz uma autêntica conspiração do cinismo, já que não se divisa a solução essencial de um problema de interesse público, mas a desconstrução de situações particulares. Um quadro, aliás, que se observa como recorrente na história política do Brasil.

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