Restrição de agravos

Mudar regra processual não resolve morosidade da Justiça

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16 de fevereiro de 2006, 6h00

No dia 7 de fevereiro deste ano, o presidente Lula sancionou a Lei 11.276, que altera diversos dispositivos do Código de Processo Civil. Segundo esta lei, o parágrafo 1º do artigo 518 passa a ter a seguinte redação:

“O juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal.”

Após 90 dias da publicação, esta lei entrará em vigor, passando a ser aplicada no nosso ordenamento a chamada súmula vinculante, instituída pela Emenda Constitucional 45, que alterou o artigo 102 da Constituição Federal.

Atenção: o Agravo de Instrumento já foi restrito a casos excepcionais. Agora limitam, se é que não extinguem, o uso da apelação.

É sabido que o número de feitos em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal é imenso, assustador. Comparativamente, temos, segundo recente estatística, que para cada membro do STF é distribuído, por dia útil, o mesmo número de processos que a Suprema Corte norte-americana julga ao longo de um ano, o que obriga que seja tomada uma pronta medida, ou realmente a estrutura jurisdicional brasileira se inviabilizará.

Estes fatos são conhecidos e são relevantíssimos. A solução que ora se inaugura é que não parece a melhor.

De fato, é inegável que a imensa maioria dos casos submetidos ao Supremo Tribunal Federal é repetição de lides análogas que, com pouca variação quanto à matéria de fato, têm uma mesma e única tese jurídica já examinada e de solução já fixada. Assim, milhares de recursos são sucessivamente propostos, reiterando questões de direito já assentes.

É oportuno destacar que a imensa maioria da reiteração de casos é de iniciativa das fazendas públicas, eis que, por dever de ofício, os respectivos procuradores são obrigados a utilizar todos os recursos cabíveis nos casos sob sua responsabilidade. Assim, por exemplo, casos de pedidos de restituição de depósito compulsório, de verbas confiscadas por planos econômicos, etc., cujos resultados já se conhecem de antemão, são objeto de recursos até chegarem ao Supremo Tribunal Federal.

Muitas vezes, essa prática de movimentar todos os recursos possíveis redunda em prejuízo material para a administração pública. Com freqüência, é mais barato findar a ação do que ficar debatendo ad infinitum, isso sem falar nos juros moratórios e juros compensatórios que vão incidindo, multiplicando os débitos, o que ocasiona a também conhecida impossibilidade de pagamento e daí os famosos e desmoralizados precatórios, os pedidos de intervenção concedidos pelos tribunais sistematicamente descumpridos.

Soluções de algibeira (v. g. mudanças do prazo para as ações rescisórias, concessão de efeito suspensivo a essa ação, restrição do uso do agravo de instrumento, sucessivas medidas provisórias dispondo sobre matéria processual, e outros expedientes) evidentemente paliativas não solucionam, mas pioram a situação que visam combater.

Soluções improvisadas não funcionam e as propostas que, surgem em geral, são toscas e injurídicas. Por exemplo, contra o aumento do número de crimes, surgem projetos como a redução da maioridade penal, o fim do sistema acusatório, a pena de morte, e assim por diante. Aumentou o índice de criminalidade? Mudem-se as leis penais. O Judiciário é moroso? A culpa é do sistema processual. Jamais se admite que o problema esteja na ineficiência administrativa.

O fato é que se atribui ao Poder Judiciário problemas que poderiam ser coibidos pela atividade diligente do Poder Executivo. Pretende-se, ao contrário, remeter ao aplicador do Direito a responsabilidade por problemas alheios à estrita atividade jurisdicional.

A morosidade da Justiça não se soluciona apenas mediante alteração da legislação processual, mas aparelhando o Poder Judiciário. Não é impondo normas legais arranjadas que se resolvem questões do âmbito administrativo. Em tempos não tão remotos, alguns gestores da economia quiseram fixar a taxa de inflação por decreto.

Pois bem, a lei recém sancionada limitando o recurso de apelação tem o evidente escopo de solucionar a imensa carga de trabalho do Judiciário. Mas, outra vez, atropelando a Constituição, agredindo nossa estrutura jurídica e aviltando o aplicador do Direito.

O Direito anglo-saxão adota o sistema de precedentes, que vincula os demais casos iguais, o que implica dizer que a fonte pretoriana exerce poder legiferante. Contudo, nossa cultura jurídica adota sistema bem diverso, em que os poderes são harmônicos e independentes, com funções específicas, quais sejam, executivas, legislativas e judiciárias. Quem legisla não aplica a lei.

Esta função é monopólio do Poder Judiciário, que aplica ao caso concreto a lei, fonte primária do Direito.

Mas quem aplica a lei não as cria. No nosso sistema, as decisões reiteradas passam a consolidar uma orientação uniforme, que são consubstanciadas na jurisprudência que é a interpretação que os tribunais dão a determinadas questões examinadas à luz das normas legais positivas. Vale como orientação predominante para situações análogas e em certas circunstâncias histórico-culturais.

Pois bem. A jurisprudência cristalizada redundará na súmula, significando sumário, resumo, que é um ementário de teses jurídicas assentadas, e que presentemente se quer norma vinculadora.

Ora, a jurisprudência, segundo significativa parte dos doutrinadores, não é uma fonte secundária do Direito. Segundo esses, o artigo 4º da Lei de Introdução do Código Civil estatui expressamente que, na omissão legal, o magistrado recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de Direito.

Ademais, ainda que se considere a jurisprudência uma fonte de Direito, temos que o juiz, ao preencher lacunas, não cria Direito novo, mas apenas desvenda normas que implicitamente estão contidas no sistema.

Portanto, segundo o aspecto técnico, a jurisprudência não vincula e não pode vincular eis que não é norma jurídica nova a ser observada de modo genérico e abstrato.

Fora esse argumento, já se constatam outros posicionamentos contrários à vinculação, como a necessidade de motivação expressa da sentença, o princípio do juiz natural, o duplo grau de jurisdição, o aviltamento da independência da magistratura e muitos outros.

O fato é que juridicamente a súmula vinculante não encontra amparo sob nenhum prisma.

Os que julgam este expediente uma solução para a grande carga de serviço do Judiciário argumentam que as teses repetitivas devem ter solução comum, que a ordem hierárquica deve prevalecer. Dizia o saudoso professor Roberto Campos, grande defensor dessa tese, que os enfermeiros não podem se insurgir contra as ordens do médico, nem os motoristas contra a orientação do guarda.

A imagem não é apropriada porque tanto o ministro do Supremo quanto o juiz do menor grau de jurisdição são igualmente “médicos”, isto é, são ambos revestidos da mesma jurisdição.

Se assim não for, como se modificarão os entendimentos? De que forma a jurisprudência acolherá novos valores? Ou não se mudam mais as posições já perfilhadas?

Resta assim o problema do grande número de processos e dos recursos judiciais. A solução está no âmbito administrativo: no bom aparelhamento material, na autonomia plena do Poder Judiciário. Engessar o Poder Judiciário parece ser a pior das soluções.

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