Democracia sem mistério

Não cabe ao STF censurar informações das CPIs, diz ministro

Autor

15 de fevereiro de 2006, 17h41

Não cabe ao Supremo Tribunal Federal interditar o acesso dos cidadãos às sessões dos órgãos que compõem o Poder Legislativo, muito menos privá-los do conhecimento dos atos do Congresso Nacional e de suas Comissões de Inquérito.

O entendimento é do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal que negou pedido de reconsideração de decisão de Jorge Ribeiro dos Santos, dono da São Paulo CCTVM, corretora de valores.

A defesa do empresário pretendia que o STF determinasse aos membros da CPMI dos Correios que não revelassem dados sigilosos a que os parlamentares tiveram acesso e que impedisse o acesso da imprensa ao depoimento, marcado para esta quinta-feira (15/2).

Para o ministro, a liberdade da informação, que compreende tanto a prerrogativa do cidadão de receber informação, quanto o direito do profissional do jornalista de buscar e transmitir os fatos deve preponderar em casos como esse.

“É preciso não perder de perspectiva que a Constituição da República não privilegia o sigilo, nem permite que este se transforme em ‘praxis’ governamental, sob pena de grave ofensa ao princípio democrático, pois, não há, nos modelos políticos que consagram a democracia, espaço possível reservado ao mistério”, observou o ministro.

De acordo com o ministro, “o novo estatuto político brasileiro — que rejeita o poder que oculta e que não tolera o poder que se oculta — consagrou a publicidade dos atos e das atividades estatais como expressivo valor constitucional, incluindo-o, tal a magnitude desse postulado, no rol dos direitos, das garantias e das liberdades fundamentais”.

Sala de aula

Na terça-feira (14/2), Celso de Mello já tinha concedido liminar para assegurar o direito do depoente de ficar calado e não se auto-incriminar. No voto, o ministro acabou montando uma cartilha de orientação para os parlamentares entenderem melhor seus poderes e limitações.

O ministro explicou que as CPIs têm basicamente os mesmos poderes instrutórios que o Poder Judiciário, contudo — como o STF já reafirmou inúmeras vezes — a CPI não dispõe dos poderes elencados pela Constituição na cláusula de reserva de jurisdição. Ou seja: aqueles exclusivos da magistratura.

Celso de Mello, autor dos principais votos condutores nessa matéria, ainda explicou que as CPIs também não podem ordenar interceptação de conversações telefônicas, o que está claro no artigo 5º, inciso da Constituição. E, por fim, as CPIs tampouco podem expedir mandado de busca domiciliar, por força do artigo 5º inciso XI da CF.

Leia a íntegra do voto:

MED. CAUT. EM MANDADO DE SEGURANÇA 25.832-2 DISTRITO FEDERAL

RELATOR

:

MIN. CELSO DE MELLO

IMPETRANTE(S)

:

SÃO PAULO CORRETORA DE VALORES LTDA

IMPETRANTE(S)

:

JORGE RIBEIRO DOS SANTOS

ADVOGADO(A/S)

:

ALBERTO TICHAUER

IMPETRADO(A/S)

:

COMISSÃO PARLAMENTAR MISTA DE INQUÉRITO – CPMI DOS CORREIOS

EMENTA: PRETENDIDA INTERDIÇÃO DE USO, POR MEMBROS DE CPI, DE DADOS SIGILOSOS A QUE TIVERAM ACESSO. INVIABILIDADE. POSTULAÇÃO QUE TAMBÉM OBJETIVA VEDAR O ACESSO DA IMPRENSA E DE PESSOAS ESTRANHAS À CPI À INQUIRIÇÃO DO IMPETRANTE. INADMISSIBILIDADE. INACEITÁVEL ATO DE CENSURA JUDICIAL. A ESSENCIALIDADE DA LIBERDADE DE INFORMAÇÃO, ESPECIALMENTE QUANDO EM DEBATE O INTERESSE PÚBLICO. A PUBLICIDADE DAS SESSÕES DOS ÓRGÃOS DO PODER LEGISLATIVO, INCLUSIVE DAS CPIs, COMO CONCRETIZAÇÃO DESSA VALIOSA FRANQUIA CONSTITUCIONAL. NECESSIDADE DE DESSACRALIZAR O SEGREDO. PRECEDENTES (STF). PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO INDEFERIDO.

DECISÃO: Trata-se de pedido de reconsideração (fls. 40/41) que objetiva, alternativamente, (a) seja determinado, aos membros da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Correios, quando da inquirição do Senhor Jorge Ribeiro dos Santos, que não revelem os dados sigilosos a que os congressistas tiveram acesso, ou, então, (b) seja ordenada, a essa mesma CPMI, a realização de sessão reservada, para a tomada de depoimento do mencionado impetrante, “(…) com acesso vedado à imprensa, limitando-se o fluxo de pessoas na sessão à presença dos integrantes da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, do depoente e de seu defensor, justamente para se assegurar o sigilo dos dados e informações da SÃO PAULO CORRETORA (…)” (fls. 41 – grifei).

Indefiro o pedido de reconsideração, eis que o eventual acolhimento do pleito – objetivando a interdição de uso, pelos integrantes da CPMI em questão, dos dados sigilosos pertinentes à São Paulo Corretora de Valores Ltda. -, além de tornar inócua a quebra de sigilo (que teria sido legitimamente determinada pela referida CPMI), importaria em clara (e indevida) restrição ao poder investigatório desse órgão parlamentar.

Por sua vez, e no que concerne ao outro pedido formulado por um dos impetrantes, também entendo não competir, ao Poder Judiciário, sob pena de ofensa ao postulado da separação de poderes, substituir-se, indevidamente, à CPMI/Correios na formulação de um juízo – que pertence, exclusivamente, à própria Comissão Parlamentar de Inquérito – consistente em restringir a publicidade da sessão a ser por ela realizada, em ordem a vedar o acesso, a tal sessão, de pessoas estranhas à mencionada CPMI, estendendo-se essa mesma proibição a jornalistas, inclusive.

Na realidade, a postulação em causa, se admitida, representaria claro (e inaceitável) ato de censura judicial à publicidade e divulgação das sessões dos órgãos legislativos em geral, inclusive das Comissões Parlamentares de Inquérito.

Não cabe, ao Supremo Tribunal Federal, interditar o acesso dos cidadãos às sessões dos órgãos que compõem o Poder Legislativo, muito menos privá-los do conhecimento dos atos do Congresso Nacional e de suas Comissões de Inquérito, pois, nesse domínio, há de preponderar um valor maior, representado pela exposição, ao escrutínio público, dos processos decisórios e investigatórios em curso no Parlamento.

Não foi por outra razão que o Plenário do Supremo Tribunal Federal – apoiando-se em valioso precedente histórico firmado, por esta Corte, em 05/06/1914, no julgamento do HC 3.536, Rel. Min. OLIVEIRA RIBEIRO (Revista Forense, vol. 22/301-304) – não referendou, em data mais recente (18/03/2004), decisão liminar, que, proferida no MS 24.832-MC/DF, havia impedido o acesso de câmeras de televisão e de particulares em geral a uma determinada sessão de CPI, em que tal órgão parlamentar procederia à inquirição de certa pessoa, por entender que a liberdade de informação (que compreende tanto a prerrogativa do cidadão de receber informação quanto o direito do profissional de imprensa de buscar e de transmitir essa mesma informação) deveria preponderar no contexto então em exame.

Não custa rememorar, neste ponto, tal como decidi no MS 24.725-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO (Informativo/STF nº 331), que os estatutos do poder, numa República fundada em bases democráticas, não podem privilegiar o mistério.

Na realidade, a Carta Federal, ao proclamar os direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º), enunciou preceitos básicos, cuja compreensão é essencial à caracterização da ordem democrática como um regime do poder visível, ou, na lição expressiva de BOBBIO (“O Futuro da Democracia”, p. 86, 1986, Paz e Terra), comoum modelo ideal do governo público em público”.

A Assembléia Nacional Constituinte, em momento de feliz inspiração, repudiou o compromisso do Estado com o mistério e com o sigilo, que fora tão fortemente realçado sob a égide autoritária do regime político anterior (1964-1985), quando no desempenho de sua prática governamental.

Ao dessacralizar o segredo, a Assembléia Constituinte restaurou velho dogma republicano e expôs o Estado, em plenitude, ao princípio democrático da publicidade, convertido, em sua expressão concreta, em fator de legitimação das decisões e dos atos governamentais.

É preciso não perder de perspectiva que a Constituição da República não privilegia o sigilo, nem permite que este se transforme em “praxis” governamental, sob pena de grave ofensa ao princípio democrático, pois, consoante adverte NORBERTO BOBBIO, em lição magistral sobre o tema (“O Futuro da Democracia”, 1986, Paz e Terra), não há, nos modelos políticos que consagram a democracia, espaço possível reservado ao mistério.

Tenho por inquestionável, por isso mesmo, que a exigência de publicidade dos atos que se formam no âmbito do aparelho de Estado traduz conseqüência que resulta de um princípio essencial a que a nova ordem jurídico-constitucional vigente em nosso País não permaneceu indiferente.

O novo estatuto político brasileiro – que rejeita o poder que oculta e que não tolera o poder que se oculta – consagrou a publicidade dos atos e das atividades estatais como expressivo valor constitucional, incluindo-o, tal a magnitude desse postulado, no rol dos direitos, das garantias e das liberdades fundamentais, como o reconheceu, em julgamento plenário, o Supremo Tribunal Federal (RTJ 139/712-713, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Impende assinalar, ainda, que o direito de acesso às informações de interesse coletivo ou geral – a que fazem jus os cidadãos e, também, os meios de comunicação social – qualifica-se como instrumento viabilizador do exercício da fiscalização social a que estão sujeitos os atos do poder público.

Ao examinar pretensão idêntica à ora deduzida nesta sede mandamental, quando do julgamento plenário do MS 23.639/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO (RTJ 177/229-240), tive o ensejo de destacar, a propósito do tema, o que se segue:

Não vejo, contudo, como determinar à CPI/Narcotráfico que se abstenha de divulgar dados ou registros sigilosos, pois não posso presumir que um órgão estatal vá transgredir as leis da República, notadamente em face da circunstância de que a atividade estatal reveste-se da presunção ‘juris tantum’ de legitimidade e de fidelidade ao ordenamento positivo.

Situações anômalas, inferidas de suposta infringência das normas legais, não podem ser imputadas, por simples presunção, a uma Comissão Parlamentar de Inquérito constituída no âmbito das Casas do Congresso Nacional, especialmente se o impetrante – sem qualquer suporte probatório idôneo – não é capaz de demonstrar que o órgão ora apontado como coator vá divulgar, sem justa causa, o conteúdo das informações sigilosas a que legitimamente teve acesso.

Em suma: são estas as razões que me levam a indeferir o pedido de reconsideração de fls. 40/41.

Transmita-se, à Presidência da CPMI dos Correios, cópia da presente decisão, em complementação ao Ofício de fls. 37.

Publique-se.

Brasília, 14 de fevereiro de 2006 (23:45h).

Ministro CELSO DE MELLO

Relator

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!